revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

apresentação

 

A vida intelectual brasileira se enriqueceu muito nos últimos anos, porém é difícil dizer que a lucidez tenha aumentado na mesma proporção. O juízo pode parecer excessivo, mas se revela plausível se considerarmos de perto o que se passa nas nossas escolas. Uma tendência para uma especialização extrema e precoce vem junto com uma preocupação acentuada pela “carreira” e pelos postos. Isto converge – o que só na aparência é paradoxal – com opções políticas cristalizadas, frequentemente radicais, espelhadas e alimentadas por um público interno que se julga universal. A confusão a que se presta esta radicalidade é supor que a pequena política de “seu” público é a política tout court. Porém, isso, que por si só é um problema considerável, não esgota o problema de pensar a esquerda.


A questão não é brasileira nem latino-americana, mas no Brasil, e na América Latina, toma formas muito agudas. Se é difícil fazer um diagnóstico geral, poderíamos dizer que, em matéria de opções políticas, reina muita confusão. Há muito boas razões para não se gostar do capitalismo (o que não nos dispensa de dizer que capitalismo é este), e esse descontentamento acaba de ser aguçado por uma crise que por ora só fica atrás de 1929. Mas, vale notar, de natureza diversa: muito menos sangrenta que a crise de 1929, o que ela põe em questão é menos se o sistema sobreviverá e mais como ele refundará seus próprios critérios de acumulação e concentração, estes sim, postos na berlinda. O mais grave desta crise parece não ser o hoje, mas o amanhã. De todo modo, a soberba proverbial dos defensores do neoliberalismo, donos da bola e da verdade até ontem, se transformou em humildade e incerteza. O mínimo que se pode dizer é que os  chamados “estatistas” não eram tão arcaicos assim. Revanche dos críticos do sistema, Marx certamente, mas também Keynes. Entretanto, mesmo com a crise mostrando ainda uma vez que a racionalidade do sistema é bastante irracional, uma simples atitude crítica em relação a ele é insuficiente. Também este é um novo dilema com o que se defronta a esquerda: sem o condão mágico da supressão absoluta e sem custos do capitalismo, ela pouco tem a dizer além do bordão « eu já sabia... », que em todo caso é recurso muito duvidoso.


Assim, em primeiro lugar, é necessário dizer precisamente o que se critica (o capitalismo, certamente, mas também a democracia?). Depois, e a partir disso, é preciso propor modelos alternativos. Já se foi o tempo em que a esquerda podia remeter simplesmente à “História” como depositária da solução. Sabemos hoje (mas, a rigor, sempre se soube) que na história há determinação e indeterminação, e que por isso mesmo toda idéia crítica do futuro histórico remete a projetos e os exige. Ora, em matéria de projetos, a desorientação é muito grande. Digamos que, no limite, na América Latina a história continua sendo pensada sobre o fundo de uma vulgata marxista, e que os projetos políticos, de uma forma direta ou indireta, ainda estão marcados por esta vulgata. Diríamos mais: que existe não só um substrato marxista na visão da história e da política por parte de setores consideráveis da intelectualidade – entendida em sentido amplo –, mas aqui existe, para além disto, um substrato leninista. Bem entendido, isso vale para uma parte dessa intelectualidade, talvez para o setor mais jovem. Entre os mais velhos, reina talvez uma visão mais complexa, que seria preciso examinar em outro lugar, uma mistura de Marx com Escola de Frankfurt lida à maneira gauchista, uma dose de Arendt, porém lida de forma estranha, ao lado de um jurista alemão brilhante, mas de alma totalitária (para dizer o mínimo), tudo temperado por alguns teóricos pós-modernos de rigor duvidoso.


Dir-se-ia que a consciência da esquerda latino-americana tende a operar um salto do marxismo ortodoxo para essa mistura insólita, de gosto anti-humanista. “Salto”, porque entre a ortodoxia e as receitas ideológicas da moda houve, no tempo, um trabalho teórico notável acompanhado de uma atividade política muito limitada, mas à sua maneira importante, que girou em torno da crítica do totalitarismo. Mesmo se o totalitarismo por ora sumiu do mapa, ou quase, é impossível pensar a política contemporânea sem se referir a ele. E isso por duas razões, que correspondem, respectivamente, aos dois totalitarismos. Por um lado, que uma nova direita tenha chegado a uma política de extermínio de massa e de conquista brutal do mundo (para muito além do imperialismo tradicional), não é coisa que se possa esquecer remetendo-a ao passado. A chama se apagou, mas as brasas continuam ardendo aqui e ali, e podem se acender de novo. Do outro lado, que um movimento socialista tenha desembocado num regime que exterminou milhões de pessoas e criou uma economia de escravidão, não é fenômeno que se possa relegar como capítulo da história do século. Não só restam alguns remanescentes dessa “época de ouro”, remanescentes tão modestos quanto ameaçadores, porém – mais importante que isso – uma parte da consciência de esquerda na América Latina continua rezando pela mesma cartilha. Ao contrário do que se supõe em certos meios de direita, a diferença entre esquerda e direita não desapareceu. Ela se complicou: ela cruza com a diferença entre totalitários (autoritários) – adeptos ou simpatizantes – e antitotalitários (anti-autoritários). (Em tempo: o fato de que a democracia, na boca dos néo-liberais seja pura ideologia – eles não são democratas, basta ver a atitude de Bush em relação ao Congresso americano – não põe em cheque nem o rigor nem o valor paradigmático da idéia de democracia).


Boa parte da esquerda brasileira pensa a política mundial como se fazia, digamos, antes de 1917, só que com uma dose maior de pessimismo. Os elementos novos que ela introduz, ou parece introduzir, remetem em geral a uma constelação teórica de brilho fácil, cujo efeito é – um pouco paradoxalmente, sem dúvida – o de reforçar as teses mais ortodoxas (entre outros motivos, pelo fato de obliterar de novo a crítica do totalitarismo). Nesse sentido, e apesar das aparências em contrário, a crítica do leninismo, com os estudos históricos que ela exige, – junto com alguns outros temas – é atual e urgente. Bem mais urgente, diga-se de passagem, do que a leitura infinita do Capital de Marx. Este livro genial se transformou em texto sagrado e bloqueia o estudo do que importa. Seja dito, de passagem, que estudar “o que importa” – no nosso caso, em primeiro lugar, a história muito mal conhecida da esquerda no século XX –, para além da leitura repetitiva dos clássicos, mesmo se geniais, define bem a atitude do próprio Marx, que não é a de todos os marxistas. Quanto à crítica a Marx, ela cabe, mas, se rebarbativa, também se transforma em obstáculo. Para retomar uma expressão do próprio: mesmo se críticos, os críticos da teologia continuam a ser teólogos.


Se nos fixarmos nos problemas nacionais, a situação não é mais favorável.


Temos um cenário bastante complexo com a chegada ao poder do Partido dos Trabalhadores. O PT, de fato, teve o mérito de ser a primeira grande experiência política após a ruptura produzida pelo golpe de 1964 – ruptura esta que, com intenção deliberada, fragmentou e bloqueou a formação política da esquerda nacional, então orbitando em torno do eixo da política populista. O PT surge como uma nova experiência política, programaticamente antipopulista, que aparece após a ruptura de 1964 e do novo mundo criado pelo PAEG, de Octávio Bulhões e Roberto Campos, e pelo Milagre dos anos setenta, nosso “grande salto à frente” (e por suas consequências: a crise da dívida e a crise fiscal dos anos oitenta).


Como um novo ator que se consolida após 1964, o PT, dadas as circunstâncias de exceção da ditadura militar, constitui-se fora dos limites estreitos da representação política, e desconfiando criticamente do papel desta. Constitui um ponto de vista de fora do jogo eleitoral, apoiando-se em setores que se organizaram no interregno da ditadura e que viveram a experiência da não-representação. Dadas as características de nosso processo de democratização – marcado, em alguma medida, mais pela continuidade do que pela ruptura –, a desconfiança crítica do PT se reforça (há outros elementos que não convém elencar aqui).


O PT participa do processo de representação democrática na medida em que, além de estar ancorado nas práticas de certas organizações populares, também é partido, mas sofre os constrangimentos de uma democracia ainda precária no Brasil. A extrema esquerda preferiria que ele ficasse fora do jogo da representação democrática, alegando que sua legitimidade, em última instância, não vem de seu coeficiente eleitoral, mas de setores para quem a prática política prescinde do processo eleitoral. Queriam que o partido continuasse a viver seus anos heróicos. O PT era o partido “do contra” porque era o partido contra a representação e lhe cabia fazer a metacrítica do nosso incipiente sistema representativo.


De fato, o PT teve por muito tempo um papel ambíguo na recém estabelecida (moldada finalmente pela Constituição de 1988) institucionalidade democrática: punha-se como outsider para criticá-la, pretendendo estar « fora » do sistema ao mesmo tempo em que o reconhecia, participando ativamente da política democrática. Esse jogo funcionava porque o PT estava estruturalmente ligado a certas organizações populares, as quais não legitimavam apenas eleitoralmente o partido, mas também o sentido crítico da sua atuação. Essa era a ligação que fornecia o « fora » de que o PT, nos anos heróicos, não podia prescindir para ser consequente com seu projeto crítico. Mas isso não significa que sua inserção no processo eleitoral tenha sido, em si mesma, um mal. O que não funcionou foi a forma pela qual o PT se inseriu nele. Inversamente: não se deve idealizar o que se fez e faz fora da “representação”. Isto é, uma crítica mais ampla da representação política no Brasil não pode deixar de lado a crítica das próprias organizações que surgiram na esfera da “sociedade civil”. A opinião conservadora critica essas entidades por seu conteúdo popular. A crítica sugerida aqui é bem outra: trata-se de problematizar suas formas, ao mesmo tempo autoritárias e paternalistas, que hipotecam o seu futuro, senão pior.


Quando finalmente o PT se tornou um partido competitivo (na verdade, ele já nasce muito competitivo, porque assume como sua base os setores populares mais organizados do país), o PT passa a falar de «dentro» da representação para sua base social, mas substitui a crítica incisiva pela adesão pura e simples. Insistamos: não se trata de criticar o PT por ter aceito o processo eleitoral. A rigor, ele faz isso desde sua fundação, e é bom que faça. A questão é o sentido que ele passa a dar à situação do partido: esta situação começa a ser pensada em torno de uma alternativa perigosa. Esvazia-se o sentido crítico do PT: ou ele ficaria de fora do processo eleitoral, ou ele aderiria a este, mas então deveria aceitar todas as práticas que dominaram a política brasileira até aqui – corrupção, alianças estratégicas (outrora criticadas) com partidos fisiológicos e com coronéis da oligarquia nordestina inclusive. A idéia de um partido que, embora participando do processo eleitoral, fosse diferente dos outros, se perdeu.


A eleição presidencial de 2002 não inventou a realpolitica dentro do PT, mas lhe deu dimensão e escala que não tinham sido, até então, experimentadas pelo partido. E parece que é nesse momento que o PT reencontra-se com a história da esquerda pré-1964: as correntes dominantes do partido, lideradas por uma figura educada pelo stalinismo, darão corpo a esse processo, instaurando como novo paradigma do partido um realismo adesista que exige que os de « fora », a base social do partido, aceite as regras « de dentro » (no mau sentido). Tudo isso em nome de certo fim pelo menos formalmente legítimo (igualdade social, melhor distribuição de renda, um país mais justo, etc). Transmuta-se o sentido das vocações partidárias. O partido desloca seu discurso de sua prática (mas, oportunisticamente, não abre mão dele) e passa a se legitimar com base quase exclusiva no processo eleitoral.


O crescimento e a mudança doutrinária do partido passaram a exigir outra coisa. Os novos quadros deveriam, ao assumir um posto na máquina – partidária e governamental – estar aptos a aceitar e a fomentar a nova doutrina partidária decorrente dessa passagem mal entendida de “fora” para “dentro” . Aos recalcitrantes restaria aceitar que aqueles que lá estão, homens de disciplina e partido, assumissem o “útil” em vez do “honesto”. Essa evidente regressão política esvazia o sentido propriamente político do projeto petista. Mesmo sem maioria numérica, o PT opera hegemonicamente no dispositivo da representação democrática, juntando a experiência de quem criticava de fora com o adesismo na prática de dentro. Desde antes do escândalo e da crise de 2005, a direção partidária faz esse jogo, de certo modo invertido, do « fora » e do « dentro », e vai funcionando, a despeito da crise.


No campo conservador, há dois fatos marcantes. Primeiro, o deslocamento para a direita de um partido que, na origem, se apresentava como de centro-esquerda. Aparte as convicções pessoais de seus quadros, cabe ressaltar um ponto mais objetivo: na disputa com o PT por espaços eleitorais, o PSDB acabou se tornando, desde a ascensão de Fernando Henrique Cardoso à presidência, a opção do eleitorado conservador e antipetista. Como PT e PSDB se tornaram também as duas grandes agremiações do sistema partidário atual e, para além de seus respectivos votos “cativos”, ambos passaram a disputar a extensa faixa do chamado “voto independente”, de centro, o resultado é uma forte convergência dos discursos, confundindo os eleitores mais claramente definidos à esquerda e à direita. Algo parecido ocorre em suas disputas dentro do Congresso Nacional. Esse dado – que não é exclusividade brasileira, mas nem por isso menos preocupante – enfraquece a capacidade de a representação política orientar os cidadãos a respeito do que está em jogo no conflito entre os partidos.


O segundo fato a destacar é que, desde há alguns anos, vem se cristalizando um jornalismo de conteúdo conservador muito agressivo, mais ou menos articulado com mobilizações de mesma tendência no campo de uma classe média ressentida com a mobilidade social recente do país, simbolizada pela própria ascensão de um ex-líder sindical à presidência da República. A sua truculência e amoralismo, realmente sinistros, imita a imprensa neoconservadora americana. Esse jornalismo empobrecido, que, em parte, tem a nostalgia da ditadura militar, se alimenta do duplo déficit democrático das esquerdas dominantes. E, por isso, se tal jornalismo deve ser enfrentado desde já, ele só poderá ser combatido com pleno êxito se a esquerda tiver uma atitude verdadeiramente intransigente em relação a neototalitários e autoritários, tanto no plano da prática quanto no da teoria, e se ela tiver uma postura igualmente intransigente diante das práticas corruptas e patrimonialistas de todos os partidos, inclusive os de esquerda.


A acrescentar: os altos e baixos da política brasileira se dão não só no contexto de uma crise violenta do sistema econômico mundial, mas também no de uma relativa exacerbação das tensões internacionais, em que se confrontam capitalismos liberais clássicos, formações sui-gêneris de tipo capitalista-burocrático, países “emergentes” e movimentos fundamentalistas, tudo isso sobre o fundo de uma deterioração constante das condições ambientais. Há alguns fatos políticos positivos a assinalar com a vitória de Obama nos Estados Unidos, mas, nem do ponto de vista estritamente político, nem no plano ecológico, há razões para muito otimismo (sob esse último aspecto, o fracasso da conferência sobre o clima de Copenhagen é um bom exemplo dos bloqueios que nos desarmam).


Fevereiro tentará contribuir para que essas dificuldades (nacionais ou internacionais) sejam mais bem delineadas. Em primeiro lugar, oferecendo aos homens e às mulheres de esquerda democrática, um lugar onde possam exprimir amplamente as suas idéias. Em segundo lugar, Fevereiro pretende ser também um espaço aberto para a publicação de textos que não representam a posição da equipe que a dirige, mas que ofereçam interesse teórico ou simplesmente prático. Ela publicará também, é claro, toda contribuição interessante no plano da literatura, da crítica literária e da crítica de arte, em geral.


Por que Fevereiro é uma revista eletrônica? Porque, se ainda há espaço para publicar em papel uma revista acadêmica, ou ligada a governos ou partidos políticos, uma revista independente, de esquerda, que não dispõe dos fundos, é obrigada a se contentar com a forma eletrônica, forma moderna, mas ainda minoritária.


Fevereiro foi o mês de várias revoluções que mudaram ou tentaram mudar a face do mundo. Primeiro, as revoluções europeias de 1848, “primavera dos povos“, afogadas em sangue pelos grandes da Europa Ocidental e Oriental. Depois a revolução russa que derrubou o czar (fevereiro de 1917, segundo o calendário russo de então) e poderia ter aberto o caminho para uma experiência socialista democrática inédita, não fosse liquidada pelos golpes complementares de uma centro-esquerda que sucumbiu diante do chauvinismo belicista (que, antes, fora a causa direta do colapso do regime czarista) mais a uma aliança a qualquer custo com os liberais, e de uma extrema-esquerda jacobina que conduziu o país a um regime totalitário genocida e, depois, à volta do pior capitalismo. Fevereiro foi também o mês da última ofensiva popular contra o bolchevismo, em 1921, que culminou na revolta de Cronstadt, em favor (entre outras coisas) de eleições livres para os soviets.


Mas e o Brasil? Não seria impossível encontrar “fevereiros” heróicos e populares na história do Brasil, mas a evocação seria artificial. Mais do que nada, fevereiro é entre nós o mês do carnaval. Não importa, ou tanto melhor. Para uma revista que, acima de tudo, não será sectária, nem carente de humor, embora se pretenda rigorosa e intransigente, a evocação da festa popular – poluída embora pelos interesses, a droga e quejandas misérias – não é em si mesma perturbadora. Aliás, “Carnaval” é também o nome de um livro de poemas de Manuel Bandeira. Que, com os manes da melhor tradição socialista democrática e libertária, também nos iluminem os manes de uma festa popular, mais a mensagem dos melhores entre os melhores da nossa literatura, são os votos de Fevereiro para nós mesmos e para os nossos leitores. E podemos concluir, já que o mencionamos, com o pedido do poeta, que também é o nosso: “Eu quero a estrela da manhã, onde estará a estrela da manhã?”































fevereiro #

1


ilustração: Rafael MORALEZ