revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Ruy FAUSTO

uma entrevista inédita de claude lefort

 

(27-04-2004)

 

Em 2004, entrevistei Lefort – que eu conhecia, desde a sua primeira visita ao Brasil em 1953 –, para uma revista que um grupo de amigos organizava, revista que finalmente não saiu. Servime do texto francês que reproduz a gravação da entrevista, e que foi corrigido à mão por Lefort.



Ruy Fausto – Você quer dizer alguma coisa sobre a situação brasileira?


Claude Lefort – Eu não me sinto, de modo algum, competente, para apreciar a situação política no Brasil. E só disponho das informações da imprensa ou de amigos brasileiros, de passagem. A imprensa não é neutra; por outro lado, ela gosta de publicar os acontecimentos que produzem sensação. O próprio Le Monde, por exemplo, deu um lugar bem amplo ao acontecimento que foi a vitória de Lula. Atualmente, ele dá grande destaque às manifestações dos camponeses sem terra, ou a um caso de corrupção nas esferas mais altas do Estado. Todos esses acontecimentos estão no mesmo plano? Tudo o que posso dizer é que o sucesso de Lula me dá uma grande esperança. Há muito tempo, eu me interessei pela figura desse militante que se situa fora dos quadros tradicionais, o qual me parecia romper com todas as formas de populismo que o mundo latinoamericano engendrou. Encontrei, há bem pouco tempo, o texto de uma série de conferências que eu havia feito em 1990, no quadro da Universidade Internacional de Filosofia, portanto logo depois da queda do muro de Berlim. Desde há muito, eu estava convencido do fracasso do sistema soviético, e eu não duvidava da amplitude das oposições que ele havia suscitado na Europa do Leste. A Conferência de Helsinki, que Brejnev pensou aproveitar, se revelava um trunfo considerável para a dissidência, na URSS, e para a oposição democrática, na Tchecoslováquia, Polônia e Hungria. Mas fui surpreendido pela rapidez da decomposição do bloco do leste. Foi nessa conjuntura que eu esforcei por demonstrar que o socialismo só podia ser fecundo se ele levasse em conta as necessidades inerentes à economia de mercado, o estado da técnica e da produção, e se esforçasse por fazer com que se reconheçam e ampliem os direitos de todas as categorias da população, direitos a dispor de condições de vida decente, direito à proteção social e à educação e à cultura etc. Dessa perspectiva – enquanto tentava fazer o balanço do fracasso do sistema soviético, eu evocava a manutenção do capitalismo selvagem no Brasil, a profundidade da fratura social que existia no país, e mencionei um discurso que Lula havia feito dois anos antes, ao se candidatar às eleições, em que ele declarava que devemos fazer a revolução – a luta contra a fome, [pela] propriedade da terra, contra o analfabetismo, e em que ele concluía dizendo: se alcançarmos o capitalismo que eu vi em Portugal e na Espanha, já teríamos feito uma revolução. Essas declarações eram provocadoras, em certo sentido, e fiquei maravilhado com elas, pois, há muito tempo, eu havia criticado e denunciado a distinção convencional entre o reformismo e a ação revolucionária. Desde há muito, eu pensava que o reformismo havia sido desacreditado, porque ele tinha sido associado à timidez da esquerda e àquilo que se chamava de colaboração de classe; mas Lula dava a fórmula de um reformismo radical. Não posso julgar da situação atual, dizia, nem da legitimidade das críticas que se fazem, hoje, contra a sua ação. Pelo menos, eu penso que, na medida em que ele desejava agir no quadro das instituições democráticas, para aplicar o seu programa, ele devia manobrar habilmente, buscar alianças com os grupos progressistas, e, principalmente, não assumir o risco de ver o Brasil boicotado pelas instâncias financeiras internacionais e pelos EUA. Portanto, não me espanto que ele tenha procedido com uma extrema prudência. No total, importa é saber se ele conseguirá pôr logo em prática as reformas fundamentais. Na espera disto, sinto a priori a maior desconfiança em relação a uma fração da intelligentzia de esquerda, que, de resto, se beneficia, nessa sociedade, de privilégios consideráveis – penso em particular nos universitários, que conheço bem – e que se alimenta de uma fraseologia revolucionária. Essa desconfiança não é, de resto, completamente a priori, pois encontrei, no Brasil, intelectuais, e não dos menores, que continuam a admirar [Fidel] Castro. Pouco importa que ele tenha quase liquidado a economia cubana, que ele tenha massacrado dissidentes, impedido toda liberdade de expressão, em resumo, que ele tenha edificado um regime de estilo totalitário; Castro continua sendo o herói da revolução latinoamericana, por ilustrar (pour figurer) uma independência em relação à América.


R.F. – O que você pensa da situação na França? A esquerda acaba de obter uma vitória nas eleições regionais, mas fora as regiões, a direita detém quase todos os poderes...


C.L. – A situação mudou sensivelmente desde essas últimas eleições, que deram a maioria à esquerda nas regiões. A noção de região era bastante nova na França. Aliás, salvo em duas, de resto bastante periféricas, a esquerda ganhou em todas as regiões. É preciso saber que, há dois anos, Chirac havia ganho as eleições, graças ao fracasso relativo do líder socialista, no primeiro turno. Diante do perigo que representava o movimento de extremadireita de Le Pen, a esquerda havia mandado votar em Chirac, no segundo turno, palavra de ordem que havia sido observada de forma maciça. Portanto, o que é digno de nota, o que convém destacar, é que, diante do perigo [que representava] a extremadireita, Chirac foi eleito, finalmente, tanto pela direita como pela esquerda.


Se Chirac podia ter tentado uma política, digamos, progressista, buscando concluir uma aliança relativa entre a esquerda e o centro (porque, até então, a [sua] política era de centrodireita], ele pôs em prática uma política ofensiva, como se fossem os seus partidários que lhe haviam dado autoridade, ignorando [o fato de] que quase a metade dos seus eleitores eram de esquerda. Ele pôs em prática uma política ofensiva. A saber, no plano econômico, uma política de aliança evidente com o patronato; no plano, diria, da sociedade civil, pôs em primeiro plano uma ideologia puramente securitária; no plano social, acelerou as reformas, algumas das quais são necessárias, mas sem verdadeira negociação; no plano cultural, digamos, freou os investimentos nos setores da educação, como no da pesquisa científica. Por isso, o governo fez com que saíssem à rua, em escala nacional, não só os operários e os empregados, mas, sucessivamente, os policiais, os bombeiros, até os próprios magistrados. Foi em popularidade que ele pagou o seu fracasso. Agora, é preciso dizer, estamos diante de uma situação política muito incerta. Porque, por um lado, há uma legitimidade que decorre da maioria de direita no Parlamento, e uma outra legitimidade que decorre da opinião majoritária da esquerda. Sem dúvida, é a primeira que conta do ponto de vista jurídico e efetivo, mas não se exclui, muitos observadores o prevêm, que Chirac não possa chegar ao final do seu mandato presidencial, que expira em dois anos. Isso posto, há uma política de esquerda? A esse respeito, é preciso responder que, por ora, ela é bem obscura. Porque a esquerda é heterogênea. Não penso apenas no fato de que sobrou uma ala comunista que, de resto, não tem mais do que seis por cento dos votos, não penso apenas que o PS deve se aliar com os verdes, mesmo se [alors que], sob certos aspectos, eles estão em desacordo. Penso no fato de que o PS permanece, por um lado, tradicionalmente preso à política que punha em prática Jospin – uma política (como definir?) socialdemocrata empirista, que, antes de mais nada, evitava ser impopular e tomar medidas audaciosas. O PS continua a viver com a imagem que ele cultivou durante décadas. Toda tentativa de definir algo que seria da dimensão da França, o que eu chamei de reformismo radical, isto é, uma aceitação aberta dos problemas que levanta o novo modo de produção, toda tentativa desse tipo, aparece como perigosa, isto é, como questionando, de certo modo, os princípios do PS. Atualmente, o PS está preocupado sobretudo em encontrar uma linguagem que una as tendências, que são distintas. E o que se chama de “segunda esquerda”, isto é, uma esquerda que rompeu abertamente com a tradição marxista revolucionária, esta segunda esquerda se desenha com muita dificuldade. É preciso compreender, digamos, que todas as críticas que se podem fazer, atualmente, ao PS, ou à esquerda em geral, devem levar em conta uma mudança importante [que ocorreu] na situação social. A saber, que, na França, como na maioria dos países mais avançados economicamente, as linhas de classe tornaramse imprecisas (se sont brouillées).E se a gente observar a maneira pela qual se distribuíram os votos nas últimas eleições regionais, constatase que, se, sem dúvida os operários votaram majoritariamente na esquerda, há diferenças consideráveis de voto, conforme se considerem as categorias que, hoje, compõem, grosso modo, a [população de] assalariados. Por outro lado, se observarmos os votos de cada região, [veremos que] não há, no conjunto da população de assalariados, uma linha de ruptura (clivage), que, claramente, dê conta das opções políticas. O que significa que, por causa das transformações do sistema de produção, há hoje um aumento considerável dos tipos de trabalho, grosso modo, de serviços, relativamente ao que era o trabalho operário; o que era outrora um dos grandes fatores determinantes (ressorts) sociais e políticos, a saber, a polarização entre um proletariado concentrado, e categorias de empregos de outro tipo, não existe mais. Ao que, se acrescente [o fato de] que, hoje, a inserção da França no mercado internacional, que provoca as “deslocalizações” de empresa cada vez mais numerosas, cria uma insegurança social considerável. Todo o último período foi marcado pelas vagas de licenciamentos, e, coisa ainda mais digna de nota, o mercado de trabalho tende a se fechar para os jovens, mesmo para aqueles que estudaram, e quanto a quem tem mais de 50/55 anos, para eles, tornouse praticamente impossível encontrar um novo emprego. Assim, estamos em presença de uma sociedade, na qual o divisão clássica tradicional entre classes se combina com uma variação considerável dos percursos individuais. [Pierre] Rosanvallon, principalmente, mostrou bem isso, nos seus artigos recentes. E portanto a esquerda só pode definir uma alternativa política levando em conta [esses fatos], encontrando uma linguagem que responda às expectativas do eleitorado, que são de caráter muito diversificado, marcando ao mesmo tempo a sua oposição, digamos, à política da direita, que, grosso modo, é uma política em favor da defesa dos interesses do patronato. Ver a esse respeito, um artigo recente em Le Monde.


R.F. – O que você pensa da situação atual, no que se refere à Comunidade Européia?


C.L. – Eu lamento que, há muito, não se tenham feito esforços para mobilizar a opinião a propósito da questão das instituições européias. Eu espero que a ideia da Europa será adotada sem dificuldade maior, na França, mas o trabalho de explicação das consequências da inserção da França na Europa não foi feito como ele deveria ter sido feito. Porque o problema não é somente o da integração da França num mercado econômico, mas é, ao mesmo tempo, o da busca de uma interação social na Europa, e de uma integração política. Entendo bem que a Europa permaneça diferenciada. Ela não pode deixar de ser, de resto. As nações não estão ameaçadas nas sua identidade, como querem acreditar os soberanistas. O que importaria é que haja uma orientação social comum (acordos sobre os salários, as aposentadorias, a seguridade social). Mas, apesar de todas essas carências, [devese dizer] que não se marca suficientemente o que, está em jogo, com a Europa, no plano social e político (les enjeux sociaux et politiques de l'Europe). Por que se deve ser europeu? A meu ver, porque esta é a condição para que, daqui por diante, se evitem, nesse imenso espaço, situações de crise e de guerra, como vimos na Yugoslávia; porque se dá segurança aos países da Europa Oriental, em relação à sua [situação de] proximidade em relação à Rússia, e porque, finalmente, se por um lado não parece pensável que os Estadosnações se apaguem, parece importante que, diante dos EUA, haja grandes unidades. E aqui, penso não só na Europa, mas também no Mercosul. O qual, talvez, poderia ser favorizado, acelerado, pela imagem da unificação européia. Unificação, não significa aqui, [digo] mais uma vez, dissolução das partes contratantes. Mas significa mais do que acordos econômicos internos. A Europa me parece estar hoje a caminho, mas ameaçada pela ideologia dita liberal: um primeiro passo consistiria num reagrupamento, no Parlamento europeu, das diversas formações de esquerda, e, por outro lado, na criação de uma frente sindical.


R.F. – Você poderia dizer alguma coisa sobre a sua história política [na revista e grupo] Socialismo ou Barbárie, e mesmo antes que o grupo se formasse?


C.L. – Me admiro do interesse que hoje merece Socialismo ou Barbárie, um interesse que pude constatar no decorrer das viagens que fiz ao exterior. Isso me surpreende tanto mais, pelo fato de que esta revista, quando existia, tinha um número bem ínfimo de leitores, e também porque não se pode dizer que ela tenha tido uma influência política sobre os acontecimentos em curso. Curiosamente, ela foi um sucesso póstumo. Na realidade, Socialismo e Barbárie nós a criamos, [Cornelius] Castoriadis e eu, com alguns camaradas, abandonando o trotskismo em 1948, e nossa idéia era criar uma revista e um grupo que fosse ao mesmo tempo marxista, socialista, no sentido mais forte do termo, mas que fosse ao mesmo tempo claramente antistalinista, e que atacasse, ao mesmo tempo, por um lado o sistema soviético, e por outro, o sistema capitalista. Castoriadis e eu, nos havíamos encontrado no início da criação do partido trotskista na França, logo depois da Libertação. Castoriadis chegava da Grécia, e chegava já armado com uma teoria do capitalismo de Estado. Ele julgava que a URSS representava este último estado (stade) do capitalismo. Eu me situava num outro terreno, diria, mais político, eu achava – logo criei uma tendência com Castoriadis – que, se nós havíamos adquirido a convicção de que havia uma dominação da burocracia na URSS, era absurdo ter uma estratégia que visasse persuadir a classe operária a criar um governo PC/PS/CGT, no momento mesmo em que criticávamos a burocracia na URSS. Era preciso escolher. Se escolhêssemos a via de uma democracia proletária, era preciso desenvolver uma crítica coerente do PC, [partido] cujo objetivo era, sob uma fraseologia involuntária, o de instaurar um regime burocrático do mesmo tipo que o dos países do leste. Permanecemos no interior do partido trotskista, dirigindo uma tendência oposicionista, durante mais ou menos três anos. Depois, criamos a revista e o grupo, em 1949, e eu rompi, junto com um pequeno número de camaradas, em 1958. Nessa revista, houve sempre, no decorrer desses anos, uma tensão entre Castoriadis e eu, a despeito da nossa amizade e do nosso acordo a propósito da crítica da burocracia. Castoriadis queria criar uma nova organização política, eu, de minha parte, pensava que devíamos procurar ter principalmente o papel de suscitar e cristalizar núcleos de operários revolucionários nas empresas, sem tentar assumir o papel de uma direção, isto é, sem nos propor construir o que, a meu ver, seria, inevitavelmente, um novo partido. Nossas divergências apareciam claramente à leitura de Socialismo ou Barbárie. Castoriadis não dizia explicitamente que o nosso movimento devia chegar até a criação de um partido dirigente, mas, a meu ver, suas análises tendiam a isso, necessariamente. A ruptura se produziu – eu dizia – em 1958, no momento da chegada de De Gaulle ao poder. Castoriadis e a maioria do grupo achavam que se cavava um grande vazio social: fracasso dos sindicatos, fracasso dos partidos de esquerda. Eles quiseram passar ao estágio de uma organização política propriamente dita. Eu me retirei.


O que faz a originalidade de Socialismo ou Barbárie é que esta revista foi a única que procedeu a uma crítica política e sociológica do stalinismo, que rompia com a tese trotskista de um “Estado operário degenerado”. Digamos assim: uma crítica do sistema burocrático que existia na URSS, e, ao mesmo tempo, uma crítica da prática do PC na França. Nesse momento, éramos uma minoria muito pequena. Eu mesmo me perguntei sobre as origens da minha oposição em relação ao regime da URSS. E me lembrei que, quando estava ainda no Liceu [segundo ciclo do secundário], em classe de Filosofia – meu professor era MerleauPonty – eu ignorava ainda o que era o trotskismo, quando ele me perguntou sobre as minhas opiniões políticas. Era sob a ocupação alemã, em 1944, portanto numa conversa reservada. Ao me ouvir, ele me perguntou se, por acaso, eu conhecia trotskistas, já que o meu radicalismo parecia muito próximo do trotskismo, mesmo se eu não conhecesse isso. Alguns meses mais tarde, por acaso, fiz uma articulação (noué une liaison) clandestina com um militante trotskista – duplamente clandestina, em relação aos alemães, e em relação aos resistentes comunistas. Isso me levou a entrar no PCI [Partido Comunista Internacionalista, agrupamento trotskista], que fora criado recentemente. Não sem – nesse intervalo – arrastar comigo, para esse aventura, um certo número de estudantes.


O que faço questão de precisar é que, independentemente do que escrevi em Socialismo ou Barbárie, – graças a MerleauPonty, eu publiquei em 1945, nos Temps Modernes, artigos sobre as obras que haviam analisado e criticado precocemente o sistema comunista da URSS, como a de [Boris] Souvarine e a de [Ante] Ciliga.[i] Por outro lado, em 1948, o que na época me punha em posição de ruptura com a opinião dominante, eu escrevi no Les Temps Modernes um texto audacioso sobre Eu escolhi a liberdade de [Vitor] Kravchenko. Kravchenko era um alto quadro do regime soviético, que fugira para os Estados Unidos. Ele relatava a sua experiência na Rússia, e descrevia o processo de burocratização e de corrupção, com uma grande clareza. Ora, Kravtchenko foi acusado, por toda a esquerda, de ser um renegado, chegavase até a dizer que americanos o haviam pago para que escrevesse o livro, e, mesmo, que estes últimos o haviam escrito. De lá para cá, toda a sua análise foi justificada. No prefácio de uma reedição posterior do livro, eu fui designado como o único intelectual na França a ter defendido Kravchenko. Para ver qual era o clima político na época! Isso [foi possível] ­– repito – graças à proteção de MerleauPonty, que nem sempre estava de acordo com as minhas idéias, e que me permitiu escrever nos T.M. até 1953. Tive um conflito com Sartre, que se tornara, de repente, defensor do Partido Comunista, e que me consagrou um longo artigo de uma incrível violência[ii].


R.F. – O fenômeno do terrorismo deu origem a diferentes reações. O que você pensa desse fenômeno?


C.L. – Desde o início, desde o atentado de setembro nos EUA, achei que estávamos no início de um novo tipo de guerra, que teria consequências. Sei que circularam as informações mais estapafúrdias, mais absurdas, que diziam, por antiamericanismo, que os americanos tentavam produzir motivos para intervir no Oriente Médio. Desde quando se relatou como foi montado o atentado, desde que eu soube que ele havia sido longamente preparado, e que Bin Laden tinha enviado os seus agentes para se formar em diferentes países, eu tive a convicção de que se tratava de uma verdadeira organização internacional de um novo tipo. Ora, uma organização internacional tem uma estratégia. Seria estúpido imaginar, como se fez na época, que se tratava de uma nova vaga de nihilismo, como houvera outrora na Rússia. Qual poderia ser essa estratégia? Essa estratégia consistia a obrigar os americanos a aparecer fisicamente, isto é, militarmente, nos países do Oriente Médio. Eles os atraiam para uma cilada. Como um governo americano, pouco importa se fosse democrata ou republicano poderia não atacar o Afeganistão, onde havia terrenos de treinamento dos homens de Bin Laden? Portanto, a organização terrorista os atraia com plena consciência. Ela não podia crer que não haveria resposta militar. Nenhum presidente americano poderia ter feito outra coisa, que não o que fez Bush nesse momento. É bem possível que Bin Laden – o núcleo dirigente – tenha julgado que os americanos teriam tido mais dificuldade do que tiveram no Afeganistão.
Que eles se enterrariam lá. Na realidade, por enquanto, eles não saíram de lá. Mas, enfim, grosso modo, eles conseguiram limpar o território das tropas de Bin Laden. Porém isto era apenas um episódio. O objetivo da organização era criar as condições de uma situação, a termo, explosiva, que suscitasse, nas populações árabes, o ódio contra os americanos e a formação de pequenos grupos terroristas. Ora, por enquanto, é preciso dizer que eles tiveram êxito nessa estratégia, e o tiveram, graças à reação do governo Bush, que decidiu mostrar qual era a sua potência no Oriente Médio. Assim, ocorreu uma conjunção que não era evidente, entre, por um lado, essa estratégia de uma organização terrorista, e de outro, a do governo americano, de extrema direita (é preciso dizer) que acreditou ter encontrado a ocasião de “reconfigurar” o Oriente Médio, e se lançou numa guerra aventureira contra o Irak. A guerra contra o Irak só podia precipitar os americanos numa aventura com consequências imprevisíveis. Numa conferência [que pronunciei] em Boston, diante de um público “liberal” (eu havia sido convidado a ir aos EUA, imediatamente antes da declaração de guerra), eu emitia a ideia de que a iniciativa de uma guerra que não seja aprovada pela ONU não é em si condenável, pois afinal tinha havido uma guerra travada na Yugoslávia para impedir a limpeza étnica no Kosovo, sem a autorização das Nações Unidas. Portanto, não era tanto o argumento jurídico que se poderia invocar. Mas, no caso, a questão essencial (le tout) era saber quais seriam as consequências políticas da guerra, e se os resultados políticos da ação haviam sido efetivamente levados em conta. Ora, a intervenção na Yugoslávia fora pontual, já que se sabia que a Rússia não interviria. Não se tratava, nem mesmo, em princípio, de derrubar o governo de Milosevic, embora se pudesse imaginar que, protegendo o Kosovo, e, principalmente, bombardeando a Sérvia, Milosevic não aguentaria muito tempo. Em compensação – eu dizia –, às vésperas da entrada das tropas no Irak, esta guerra parecia aventureira, porque, qualquer que fosse a superioridade dos Estados Unidos, as consequências eram imprevisíveis. Então vêse bem agora, mesmo se o terrorismo não tem mais um centro que coordene todos os atentados, estes continuam a se inscrever numa mesma estratégia. Tudo depende de saber em que medida os serviços de informação e a cooperação internacional serão eficazes, de maneira a neutralizálos. Mas, por ora, são todos os países europeus que vivem em risco (.....)[iii] vêse bem que eles precisam dispor de meios financeiros consideráveis, para agir desde a Europa até o ExtremoOriente. Temse aí um novo tipo de conflito, que ocupa o espaço do grande antagonismo entre os dois blocos, o qual ficou para trás.


R.F. – Você fez várias viagens ao Brasil. A primeira em 53. A última, não há muito tempo. O que é o Brasil para você?


C.L. – Eu estive, pela primeira vez, no Brasil, em 195354. Eu ensinei no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, então na rua Maria Antonia. Guardo uma lembrança excelente. Quanto ao Brasil, foi uma imensa descoberta para mim, algo que conta muito na minha vida. Todas as notícias concernentes ao Brasil me são preciosas. Estabeleci laços de amizade com inúmeros brasileiros. Fiquei fascinado pelo próprio Brasil. Estive de novo por lá em várias ocasiões. Deve ter havido um intervalo de uns vinte anos entre a minha primeira estada e a segunda, que ocorreu no período final da ditadura. Quando voltei [para a Europa], fiquei muito amigo principalmente de [Roberto] Salinas. Sua morte me chocou muito. Ele era, em extremo, um brasileiro, pela sua sutileza, seu humor, sua sensibilidade, seu sentido da hospitalidade. Voltei ao Brasil duas ou três outras vezes. Estive no Rio Grande do Sul, fiz uma conferência em Porto Alegre há bastante tempo, já havia uma municipalidade petista, e eu me lembro de já ter falado então de um reformismo radical! Estive, evidentemente, em Campinas, no Norte, em Recife, na Bahia. Não posso dizer que conheço bem o Brasil, porque é preciso ficar mais tempo. Finalmente, tive um grande prazer em acolher em Paris, no meu seminário, estudantes de excelente nível (remarquables), que desde então fizeram uma carreira brilhante.































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ilustração: Rafael MORALEZ



Tratase do Stalin, de Boris Souvarine, que é de 1935, e do livro No pais da mentira desconcertante, publicado primeiro (em 1935), sob o título No pais da grande mentira.

[ii] Ver em Les Temps Modernes, n­º 89, abril de 1953, Lefort, “Le Marxisme et Sartre”, e Sartre, “Réponse à Lefort”. Sartre escreve, por exemplo: “... se eu fosse um jovem patrão, eu seria lefortista”. Ou: “...você quer provar .... que você serve melhor ao proletariado se ancorando na burguesia intelectual..... E porque não na burguesia inteira?”.

[iii] Correção manuscrita de leitura dificil. Sentido provável: “como os EstadosUnidos“.