revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Daniel Golovaty CURSINO

a política externa lulista e as esquerdas

 

O voto brasileiro contra o Irã no Conselho de Direitos Humanos da ONU marca uma primeira diferença importante da diplomacia do governo Dilma Roussef em relação aos oito anos do governo Lula. Mas qual seria o verdadeiro alcance da mudança em curso? Tal pergunta ganha relevância frente ao fato de que a diplomacia lulista não foi meramente o resultado de características idiossincráticas do ex-presidente, mas sim esteve informada por um conjunto de coordenadas ideológicas hegemônicas no partido governante, as quais, tendo em vista a necessidade de uma consistente correção de rota, precisam ser adequadamente elucidadas e criticadas.


Faz-se necessário, sobretudo, entender por que certa esquerda vislumbrou na política externa conduzida pela dupla Marco Aurélio Garcia e Celso Amorim o que seria o aspecto mais avançado e elogiável do governo Lula. Mas antes se impõe a tentativa de responder a uma questão maior, a saber: o que é (ou deveria ser) uma política externa autenticamente de esquerda? Percebe-se aqui que um grande leque de problemas se abre. Em primeiro lugar, é preciso dizer que quando se fala de “esquerda” – e, de resto, também de “direita”- deve-se sempre usar o plural, pois já se foi o tempo em que era possível, qual um Danton ou um Robespierre, erguer a voz da tribuna e, ingenuamente, bradar: “nós, da esquerda”...


Com efeito, se é verdade que as experiências totalitárias do século XX não aboliram as noções políticas de direita e esquerda, também verdadeiro é que elas as fraturaram irremediavelmente. Pois diante da evidência irrefutável de que movimentos de esquerda deram origem a regimes que praticaram o genocídio e reviveram o trabalho escravo, deve-se reconhecer que um abismo se abriu no interior da esquerda, abismo que separa e opõe uma esquerda democrática, que se deu conta da enormidade do acontecido – e, enquanto esquerda, implicou-o em sua própria história -, e outra esquerda autoritária (ou totalitária), que continua confundido a crítica ao capitalismo com a crítica à democracia e agindo como se o destino trágico das revoluções do século XX não lhes dissesse respeito.


Assim, quando falo aqui de uma política externa autenticamente de esquerda, isto é, que encarne os valores históricos da igualdade e da liberdade enquanto críticas da exploração e da dominação de classes, o que está no centro do debate é a ideia de democracia, pois sem ela não há sequer política civilizada, não há liberdade e mesmo a igualdade se torna ilusória. Mas como empreender concretamente uma política externa de esquerda, que deve caracterizar-se, antes de tudo, pelo internacionalismo, num ambiente em que Estados-nações lutam unicamente por seus interesses? Não seria isto expor-se à acusação de utopismo ingênuo? Afinal, como não cansam de repetir os liberais, não é verdade que os governos nacionais deveriam cingir-se a defender os interesses da nação que representam, e não embarcar em aventuras ideológicas de partidos ou facções?


Ora, em primeiro lugar, é preciso qualificar este pragmatismo dos interesses nacionais como ideologia em seu grau zero, visto que em uma sociedade democrática a interpretação dos interesses nacionais não é a dado de uma só vez, mas sim algo que está perpetuamente em disputa. É perfeitamente possível, por exemplo, defender uma relação mais equânime do Brasil com o Paraguai na questão de Itaipu - mesmo que para isso seja preciso aceitar alguma perda econômica para o nosso país – em nome do fato de que relações regionais mais equilibradas e justas terminam, a longo prazo, por beneficiar a todos os envolvidos, ou senão pelo simples imperativo moral de que os interesses econômicos não devem estar acima de valores como a justiça. É claro que um governo de esquerda não pode se furtar a certo realismo na política externa, nem tampouco a defender interesses nacionais estratégicos, políticas de Estado que variam pouco ao longo do tempo. Há, porém, uma diferença muito grande entre realismo, qualidade de levar em conta as circunstâncias para uma política eficaz, e o cinismo da Realpolitik que, imolando os princípios no altar de ganhos imediatos e interesses estreitos, simplesmente abole a distância entre ser e dever ser.


Se há uma coisa de que não se pode acusar a política externa do governo Lula é de falta de ambição.  A pugna por uma liderança inconteste e exclusiva na América do Sul; o incremento do prestígio internacional do Brasil através da atuação em uma grande quantidade de fóruns; o aumento da autonomia política e econômica do país por meio da diversificação de sua inserção no sistema capitalista globalizado, tudo isso aliado a um crescimento econômico expressivo conferiu ao Brasil um status diferenciado no sistema internacional, tornando quase natural a sua postulação a uma vaga de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, ao lado da Índia e da África do Sul, dois outros grandes representantes do “Sul”. Nada aqui, em princípio, é censurável e faz-se necessário reconhecer os méritos inegáveis de tal política. Entretanto, estes não são elementos que permitam caracterizar a política externa lulista como sendo de esquerda e, portanto, não explicam o entusiasmo de certa esquerda por esta política.


Uma boa forma de avaliar o quão a política externa de Lula foi adequada a uma esquerda democrática seria a de elencar alguns princípios norteadores e averiguar até que ponto o governo Lula os seguiu. Proponho os seguintes: a) promoção de uma ordem internacional pautada pela equidade nas relações entre as nações, através da construção de mecanismos de regulação e controle do Capital por instituições democráticas; b) política agressiva na defesa do meio ambiente, que vá além do discurso já vulgarizado e esvaziado do desenvolvimento sustentável, expondo a incompatibilidade entre um capitalismo desregulado (e, no limite, entre o capitalismo tout court) e a causa ecológica; c) autêntica política de paz através do fortalecimento de instituições internacionais responsáveis pelo desarmamento e pela resolução negociada de conflitos; d) defesa dos Direitos Humanos, não somente os direitos de indivíduos e grupos contra violências estatais e para-estatais (embora estes sejam irrenunciáveis), mas também os direitos dos trabalhadores a condições dignas de trabalho e de vida e, por fim, e) política ativa de promoção da democracia e combate às ditaduras.


A questão central de uma ordem internacional equânime diz respeito à construção de mecanismos democráticos capazes de regular e controlar os fluxos globais de capital que atualmente impõem seu diktat aos Estados nacionais, dificultando por meio da chantagem especulativa que estes desenvolvam políticas econômicas autônomas. Para a esquerda, que se define pela recusa em naturalizar o mundo criado pelos movimentos do Capital, este “sujeito automático” (Marx), tal ponto é incontornável, visto que, na ausência de um parlamento e um governo mundiais, a vontade popular só pode se efetivar no âmbito dos Estados nacionais com seus mecanismos democráticos de proposição, ação e controle. Neste campo, a realização mais importante da política externa do governo Lula foi sua participação na criação do G-20 comercial, um feito relevante, mas limitado à defesa da liberalização do comércio de commodities como forma de beneficiar os países periféricos.


Também há a participação brasileira no G-20 financeiro. Entretanto, este fórum ainda está muito longe de implementar efetivos mecanismos de controle do capital financeiro, bem como mecanismos de sanções à atuação muitas vezes predatória das transnacionais. É bem verdade que, dada a composição deste G-20, não se pode esperar muito neste sentido e não é difícil imaginar que um país que propusesse algo mais radical ficaria falando sozinho. Entretanto, ser capaz de “falar sozinho” às vezes é fundamental, pois somente assim pode-se produzir um campo de dissenso capaz de orientar a construção de projetos realmente transformadores.


Em suma, do ponto de vista de uma esquerda socialista, o que faltou à política externa do governo Lula nesta área é algo do que ela costuma muito se gabar: ousadia. E o mesmo se pode dizer a respeito da defesa do meio ambiente no governo Lula, uma área em que o Brasil, dada sua matriz energética relativamente limpa, poderia assumir uma verdadeira posição de vanguarda.  Ao invés disso, o que vimos em Copenhague foi a adesão brasileira à duvidosa e contraproducente tese da “responsabilidade histórica” dos países desenvolvidos, tática que deixa o Brasil a reboque dos “interesses” de países como Índia e China.


Na questão relativa à busca da paz, a diplomacia lulista aparentemente caracterizou-se por um grande ativismo. Afinal, o Brasil pretendeu apresentar-se como um fiador da paz no Oriente Médio e estabeleceu, juntamente com a Turquia, um acordo com o Irã que pretendia por fim às ameaças de guerra devidas às suspeitas que pairavam ( e ainda pairam ) sobre os reais objetivos do programa nuclear daquele país. Mas vistas as coisas mais de perto, este ativismo pacifista foi apenas de fachada e o que realmente parece ter motivado tais iniciativas brasileiras foi, a um só tempo, o objetivo de projetar internacionalmente o país como, para usar o jargão, um player de estatura mundial e também como um campeão do “Sul” face às grandes potências. Senão, o que impediu o Brasil de discutir os termos do acordo com os principais países envolvidos, antes de, como muitos notaram, brandi-lo de mãos dadas com Ahmadinejad como um troféu de campeonato futebolístico, para usar uma metáfora cara ao nosso ex-presidente?


A frágil alegação de que a reação negativa das potências, EUA em primeiro lugar, ao acordo deveu-se unicamente ao seu suposto melindre pela circunstância de países como Brasil e Turquia tomarem-lhes a frente não resiste à análise do fato de que a quantidade de LEU (urânio levemente enriquecido) de que o Irã dispunha na época do acordo com o Brasil e a Turquia era consideravelmente maior do que sete meses antes, quando a mesma quantidade em termos absolutos (mas não relativos) lhe fora proposta para enriquecimento externo, antes de ser recusada. Tudo leva a constatar que o acordo selado com o Irã não fornecia garantias credíveis de que este país não iria continuar enriquecendo urânio para fins militares. Além disso, em seu item 10, onde diz que Brasil e Turquia "apreciaram o compromisso iraniano com o TNP e seu papel construtivo na busca da realização dos direitos na área nuclear dos Estados membros", o acordo procurava desautorizar todas as resoluções da ONU a respeito, fornecendo um conveniente biombo diplomático para o Irã prosseguir em seu projeto de obter a bomba.


Esta aproximação entre Brasil e Irã, já descrita como “parceria estratégica”, ganha contornos mais sombrios quando vista pelo prisma nacionalista de Samuel Pinheiro Guimarães, ex-secretário geral do Itamarati. Em um documento como chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Lula, intitulado “O mundo em 2022”, Guimarães classifica o TNP como o centro de um processo de “concentração de poder militar”. Somando-se a isto a reiterada oposição deste senhor a que o Brasil assine o Protocolo Adicional ao TNP, concebido para tornar as inspeções mais rigorosas e dificultar a proliferação nuclear, pode-se legitimamente questionar até que ponto a diplomacia do governo Lula não acalentou o inconfessável objetivo estratégico de contornar a proibição constitucional de o Brasil produzir armamento atômico.


É bem verdade que sempre se poderá argumentar que o TNP é um dispositivo essencialmente injusto, pois não objetiva senão consolidar um clube restrito de potências nucleares, impondo com isto uma situação desvantajosa e até humilhante para a grande maioria dos países do mundo. A tal objeção, a resposta deve ser direta: sim, o TNP é arbitrário e injusto, mas, neste caso, o imperativo de evitar uma catástrofe nuclear e preservar a vida de milhões de pessoas vem antes de uma justiça abstrata, pois se a proliferação ocorrer, a pergunta deixará de ser se vai haver uma guerra nuclear para ser quando esta guerra ocorrerá. O mortífero lema fiat justitia et pereat mundus deve ser categoricamente recusado por toda esquerda democrática, a qual não se define pela designação soberana de um inimigo (embora tenha vários), mas pela dívida contraída com todos os homens e mulheres que já lutaram contra a opressão e a injustiça sociais, uma dívida que se paga através do cuidado com o mundo presente e do empenho na construção de um outro mundo possível.


É bem verdade que sempre se poderá argumentar que o TNP é um dispositivo essencialmente injusto, pois não objetiva senão consolidar um clube restrito de potências nucleares, impondo com isto uma situação desvantajosa e até humilhante para a grande maioria dos países do mundo. A tal objeção, a resposta deve ser direta: sim, o TNP é arbitrário e injusto, mas, neste caso, o imperativo de evitar uma catástrofe nuclear e preservar a vida de milhões de pessoas vem antes de uma justiça abstrata, pois se a proliferação ocorrer, a pergunta deixará de ser se vai haver uma guerra nuclear para ser quando esta guerra ocorrerá. O mortífero lema fiat justitia et pereat mundus deve ser categoricamente recusado por toda esquerda democrática, a qual não se define pela designação soberana de um inimigo (embora tenha vários), mas pela dívida contraída com todos os homens e mulheres que já lutaram contra a opressão e a injustiça sociais, uma dívida que se paga através do cuidado com o mundo presente e do empenho na construção de um outro mundo possível.


Com relação ao conflito israelense-palestino, dado que judeus e árabes convivem em nosso país em relativa harmonia, o Brasil até teria boas condições para desempenhar um papel político construtivo para uma paz negociada e justa. A diplomacia brasileira fez bem em reconhecer a Palestina, mas perdeu a credibilidade com sua aproximação ao regime iraniano, que acintosamente nega o Holocausto e que não reconhece o direito à existência de Israel, declarando repetidamente sua intenção de “riscá-lo do mapa”. Além disso, do ponto de vista simbólico, a estranha recusa de Lula, quando de sua viagem a Israel, em visitar o túmulo de Herzl (fundador do movimento sionista ), alegando problemas de agenda, teve um impacto profundamente negativo, contribuindo ainda mais para desacreditar o Brasil como um mediador isento ante o público israelense.


Este mesmo problema de descrédito por falta de isenção impossibilitou que o Brasil atuasse pela paz na própria América do Sul, região onde possui real influência. Ao penhorar acriticamente seu apoio aos regimes ditos refundadores (Venezuela, Equador e Bolívia) e a se recusar a condenar incondicionalmente a narcoguerrilha das Farc, o Brasil pouco pôde fazer para apaziguar as relações entre a Venezuela e o Equador, de um lado, e a Colômbia, de outro. Pela mesma razão, também caiu em descrédito a condenação à Colômbia devido à concessão por este país de bases para uso dos norte-americanos, uma vez que não foi acompanhada nem de uma condenação da aproximação militar entre Caracas e Moscou,  nem da proposição de alternativas para combater as Farc, cujo notório apoio por parte de Chaves - o que, aliás, se configura em clara ingerência em país vizinho -, igualmente nunca foi objeto de condenação pela diplomacia do governo Lula.


Foi na área dos direitos humanos que a política externa do governo Lula mais decepcionou. Como se sabe, a defesa dos direitos humanos, assim como da democracia, não é apanágio da esquerda, mas faz parte de um campo comum em defesa do que poderíamos chamar de política de civilização. Deste consenso, que também envolve o centro político e setores da direita, a esquerda deveria se destacar por uma abordagem a um só tempo ampla e radical, no sentido de aprofundar a democracia com a efetiva participação popular e de aplicar os direitos humanos também às condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, tal como constam da declaração da ONU, fato que muitos liberais tendem a “esquecer”.  Assim, poderíamos esperar da diplomacia do governo Lula no campo dos direitos humanos a proposição de mecanismos internacionais de controle e punição a governos e empresas que promovem condições degradantes de trabalho. Entretanto, nada parecido com isso foi seriamente defendido e o que se viu não foi muito mais do que os vagos apelos de Lula em fóruns internacionais em prol do combate à fome no mundo.


Mas se no campo dos direitos humanos referidos às condições de trabalho a política externa lulista deixou a desejar, já no que se refere à proteção dos direitos de indivíduos e grupos ela escandalizou. Pois foi no governo Lula que o Itamaraty se notabilizou por sua sistemática ação obstrutora no Conselho de Direitos Humanos da ONU, prática que muito agradou aos grandes violadores que, desde o facinoroso Ahmadinejad, passando pelo “cachorro louco” da Líbia e chegando ao genocida sudanês Omar Bashir, acostumaram-se a ver no Brasil um país aliado e a tratar Lula literalmente por amigo. Somando-se a isto o hábito do nosso ex-presidente de elogiar déspotas, chegamos à constatação desconcertante do menoscabo pela democracia por parte de um governo de pessoas de esquerda que se formaram politicamente na luta contra a ditadura militar brasileira.


Independente dos possíveis méritos da diplomacia Sul-Sul do governo Lula, desde o início ficou patente que ela encontrava seu calcanhar-de-aquiles justamente na questão da democracia e dos direitos humanos, dada a quantidade de ditaduras existentes na África e na Ásia. O difícil problema de aprofundar relações comerciais sem compactuar com regimes sórdidos foi desprezado através de um discurso antiimperialista que tudo justificava em nome da prioridade de contrastar a hegemonia mundial norte-americana. E aqui tocamos o ponto que explica o porquê do apoio entusiástico de certa esquerda à política externa do governo Lula.


O esquema ideológico é o mesmo de outros tempos. O inimigo a se combater é o capitalismo, mas este é apreendido abstratamente, isto é, pairando acima dos regimes políticos concretos que caracterizam as diversas nações. O capitalismo encontra-se na sua fase imperialista e, portanto, sua conservação e reprodução encarnam-se nas grandes potências. Assim, opera-se uma clivagem de estrutura entre países imperialistas e países periféricos, pela qual se sai da crítica da economia política e se adentra o campo de uma mitologia maniqueísta e totalizante que opõe, de um lado, o “capitalismo-imperialismo” e, de outro, “os povos”. O fato de que estes povos vivam também em sistemas capitalistas e sejam governados por regimes tirânicos torna-se secundário e somente é denunciado caso estes regimes sejam aliados dos imperialistas. Caso contrário, o que deve prevalecer é a unidade do “campo antiimperialista” frente às potências que encarnam a ordem capitalista, cuja quintessência encontra-se nos EUA e em seu “gendarme” israelense. Assim, a crítica marxista do fetichismo do capital e de sua dominação impessoal cede lugar a um discurso regressivo, binário e paranóico, que não raro degenera em antiamericanismo e antissemitismo.


Em tal esquema de certa esquerda alérgica à democracia, o “imperialismo” (como, aliás, também o “sionismo” ) torna-se uma verdadeira palavra-amálgama, deixando de ser um conjunto determinado de políticas de domínio, ligadas à manutenção de interesses circunscritíveis, para transformar-se em um poder metafísico que sintetiza o princípio mesmo do Mal no mundo, por meio do qual este adquire inteireza, coerência e inteligibilidade. E, por oposição, aqueles que compõem o “campo antiimperialista”, podem sentir-se participando de um todo sólido e homogêneo (“os povos” ), que a um só tempo lhes confere segurança, garante suas certezas e os livra da responsabilidade sobre seu pensamento e sua ação. Se tudo se reduz a combater o princípio do “Mal” é porque, no fundo, o “Bem” já nos pertence, basta que o mundo seja purificado. Se o que guia minhas ações é uma “necessidade histórica”, então não me cabe responder por elas: torno-me inabalável.


Portanto, se os ideólogos antiimperialistas pretendem exortar “os povos” ao combate implacável contra o “Império”, não é tanto por solidariedade àqueles, mas pelo apego a este princípio metafísico do Mal que eles mesmos criaram e do qual são, mais que tudo, dependentes. O que os incomoda, o que verdadeiramente temem, não é a suposta onipotência desta entidade fantasmática que se comprazem em odiar, mas, ao contrário, a revelação do fato – que, no fundo, já sabem – de que o “imperialismo realmente existente” não corresponde ao seu ideal, que seus poderes são limitados e sua ubiquidade, uma fantasia, de modo que nem todas as misérias e conflitos do mundo podem ser simplesmente subsumidos à clivagem “revolução x contra-revolução”, “Império x povos”, “vítimas inocentes x opressores conspiradores”.


É disso que nada querem saber, pois ao admiti-lo seriam obrigados a questionar a si mesmos e a se confrontar com sua própria vontade de potência. Ao dar-se conta de que o antiimperialismo ou o anticapitalismo não vão, necessariamente, em direção à emancipação, perderiam o princípio negativo absoluto que lhes confere identidade e segurança, tendo que fazer face à contingência do presente e ao fato de que o futuro é algo essencialmente aberto.


Há algo de relativamente novo, contudo, no atual discurso desta esquerda antiimperialista, que consiste na adição de um elemento culturalista, através do qual as práticas mais abomináveis de opressão e obscurantismo são contemporizadas em nome de um abusivo e distorcido direito à diferença. No último ano de seu mandato, em 2010, Lula justificou assim a abstenção brasileira sobre uma resolução da ONU que condenava a prática da lapidação de mulheres por adultério: "Eu sei que cada país tem suas leis, sua Constituição, sua religião - e, gostando ou não, temos que respeitar o procedimento de cada país".


Tal justificativa, como base da política externa de um governo de esquerda, constitui o que propriamente deve ser chamado de traição, a qual só tem paralelo no endosso sistemático da corrupção na política interna. Traição a tudo o que a esquerda sempre representou através das lutas contra a opressão social e de seu clamor universal por justiça e igualdade. Mas traição também a essa matriz comum da política moderna, tanto liberal quanto socialista, que o pensamento iluminista representou enquanto crítica intransigente de todas as tradições opressivas e ultrajantes à dignidade humana.


Samuel Pinheiro Guimarães, no texto supracitado, qualificou a promoção dos "direitos humanos ocidentais" como política destinada a dissimular, "com sua linguagem humanitária e altruísta, as ações táticas das Grandes Potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". Há um duplo erro aqui. O primeiro consiste em entender os direitos humanos como mera peculiaridade ocidental, o que reflete uma confusão conceitual entre gênese e essência. Pois, se é verdade que a formação dos conceitos de direitos humanos e de democracia está especialmente ligada à história ocidental, daí não decorre que eles possam ser reduzidos à condição de simples traços culturais idiossincráticos do Ocidente, visto que eles são o produto de uma crítica interna do Ocidente às suas próprias tradições. Como conquistas da razão e da moralidade humanas, eles são universais e, portanto, patrimônio da Humanidade.


Da mesma forma, se é inegável que as grandes potências muitas vezes utilizam os direitos humanos de forma seletiva e cínica, segundo a distinção “amigo” e “inimigo”, isto não significa que, mesmo para essas grande potências, eles possam ser reduzidos a meros dispositivos táticos. Tal redução tornaria ininteligíveis eventos e processos da magnitude do engajamento inglês para pôr fim à escravidão africana no século XIX, ou o consenso internacional que, no século XX, isolou e derrubou o regime do Apartheid. Também não se entende a derrota norte-americana no Vietnã fazendo abstração da pressão democrática que, internamente aos EUA, desmoralizou a guerra e impôs a retirada final. E, embora não exista ocupação boa, sem levar em conta o fato de que os EUA são um país democrático seria impossível explicar a diferença entre a atual ocupação do Iraque e, por exemplo, a ocupação nazista da Polônia.


A moderna democracia, historicamente, não foi um produto espontâneo do capitalismo, mas, ao contrário, resultou das lutas sociais que a ele se opuseram. E assim como a democracia, a partir de certo ponto, entra em contradição com o capitalismo, ela entra também (mas, a rigor, sempre esteve) em contradição com as políticas imperiais das potências capitalistas. A grande ironia da história contemporânea é que a ideologia dos “neocons”, baseada na defesa de que a ideia democrática teria um papel revolucionário a jogar no Oriente Médio, está provando, para o desassossego de seus autores, ter um núcleo de verdade...


É por isso que, para a esquerda, mimetizar o cinismo de certa direita quando esta fala em direitos humanos e democracia não é apenas uma falha moral, mas também um suicídio político. Cabe entender as contradições entre a prática e o discurso das grandes potências democráticas não como meramente formais, mas como contradições reais que devem ser politicamente exploradas até o seu limite. É esta ruptura conceitual que toda esquerda democrática deve desejar para a política externa da presidente Dilma Roussef.































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