revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Ruy FAUSTO

esquerda/direita:
em busca dos fundamentos, e reflexões críticas

 

(continuação)1

 

III. Totalitários e antitotalitários. O “quadrado político”

2. Observações sobre III, 1 (ver Fevereiro, número 3).2  – E esquerda e direita, no plano internacional

O resultado a que chegamos, até aqui, tem dois aspectos. De um lado, tratava-se de reafirmar a validade da distinção esquerda/direita, que, hoje, às vezes, é posta em dúvida, – e o primado da igualdade (não da igualdade absoluta), na linha do que escreve Bobbio, foi o traço principal que encontramos para caracterizar a esquerda. Por outro lado, tentei mostrar que essa distinção, embora válida e atual, era em si mesma insuficiente. À dualidade esquerda/direita seria preciso acrescentar a polaridade totalitários/antitotalitários (ou pró-totalitários/antitotalitários). Essa exigência, pode-se dizer, é antiga. Ela gesta, como um problema, com o próprio desenvolvimento da idéia de “esquerda”. Desde, pelo menos, a Revolução Francesa. Problema que vai se tornar agudo no século XX, pela emergência histórica de formações totalitárias, do tipo das que eu chamei de “igualitaristas” (não de “igualitárias”). Qualquer que tenha sido o destino dessas formações, o surgimento delas exige a posição de uma segunda polaridade, que, sob pena de confusão teórica e de funestos mal-entendidos políticos, não pode mais permanecer em forma simplesmente implícita, o que significa, não-posta. Teríamos assim dois eixos, e portanto quatro possibilidades ou opções: esquerda totalitária, esquerda democrática, direita totalitária, direita democrática. Mas aí põem-se vários problemas. Vou discutir alguns deles, antes de continuar a apresentação.

Depois de propor as quatro possibilidades, citei uma passagem de Bobbio para mostrar que, no seu livro (Destra e sinistra, op. cit.), ele chegara também, se não, às mesmas quatro possibilidades, pelo menos a quatro possibilidades. Na realidade, embora eu tenha feito alguma ressalva ao resultado a que chega Bobbio e insistido nos limites gerais do seu estilo teórico, faltou assinalar com clareza o que havia de insuficiente, de incorreto mesmo, na sua resposta.3É no nível do “socialismo democrático” – como de resto, observei, mas em forma insuficiente – que o problema aparece. Bobbio tende a pensar como “democrático”, isto é, como antitotalitário – uso aqui a minha terminologia, não a de Bobbio, ele fala em socialismo liberal – apenas a social-democracia. Ou, se se preferir: ele tende a supor que as tendências totalitárias aumentam necessariamente com o radicalismo da esquerda, ou que o não-totalitários de esquerda são necessariamente social-democratas. Ora, ainda que seja preciso voltar ao problema da relação entre legitimação da violência e totalitarismo (vou discuti-lo no final), é preciso dizer, por ora, pelo menos – como de resto o meu texto assinalava, mesmo se numa nota – que há esquerdas ao mesmo tempo radicais e libertárias. Eu dava os exemplos clássicos do jovem Trotski e de Rosa Luxemburgo (se não desenvolvi mais o tema, foi também porque o fiz, em alguma medida, em outros lugares, e porque pretendia voltar a ele no final). A eles se poderia aduzir o caso do anarquismo ou, pelo menos, de uma parte do movimento anarquista. – Assim, se há uma esquerda antitotalitária e moderada – digamos, reformista – pode haver também, e há, efetivamente, sem prejuízo de uma discussão posterior sobre a coerência ou estabilidade dessa posição, uma esquerda ao mesmo tempo radical e antitotalitária, libertária, se se preferir (em sentido muito amplo). É essa circunstância que arruína um esquema mencionado no meu texto, mencionado, mas criticado (em proveito do esquema mais simples dos dois eixos), que pensa o conjunto das posições políticas como constituindo um espaço curvo.4É preferível – mesmo que o esquema pareça menos rico ou brilhante – distinguir simplesmente dois eixos num plano. Mais adiante, haverá lugar para uma terceira dimensão, isso, porém, através da introdução de um elemento novo.

Um problema logicamente anterior a este é o de saber se existe efetivamente um totalitarismo de esquerda, ou – o que remete à mesma coisa – se os totalitários (pensemos nos mais terríveis deles) são mesmo de esquerda. Stálin era de esquerda? Seguindo o critério proposto, poderíamos dizer, a rigor, que não, e de fato há certa violência em afirmar que ele teria sido um homem de esquerda, embora isso tenha sido, durante muitos anos, uma verdade inabalável e de senso comum. De fato, a desigualdade que reinava na sociedade stalinista era muito grande, segundo alguns dos que a teorizaram (Castoriadis) mesmo maior do que no ocidente, embora este não pareça ser o caso para todas as sociedades totalitárias. Porém, apesar de tudo – e por isso mesmo, chamei essa modalidade, de totalitaritarismo “igualitarista”, não entretanto de “igualitário” – há razões para situá-la à esquerda (e Stálin com ela) embora não seja fácil provar essa tese, tão evidente há sessenta anos. É que o totalitaritarismo igualitarista não é simplesmente uma “paródia” do pensamento e dos movimentos de esquerda, embora, sem dúvida, também o seja. Ele é, na realidade, e mais ou menos literalmente, um parasita do pensamento e da prática da esquerda. Mas isso significa que ele ocupa um espaço na “região” da esquerda, que ele se enraíza, ou se enraizou nela.5

Porém isto significa que, com a emergência do totalitarismo igualitarista, o “ser de esquerda” deixou de ser o nec plus ultra de uma política lúcida visando o progresso social. Ele é apenas condição, condição necessária. Por si só, é ao mesmo tempo muito (pois, precisamente, é condição necessária) e bem pouca coisa, e não só no sentido inerente a todas as condições necessárias – o de que elas podem estar presentes sem que o condicionado se produza – porém mais do que isso: no sentido de que a política de certos partidos que satisfazem à “condição necessária“ pode ser pior do que a de outros que não a satisfazem... Como afirmei na parte III, seção 1 (publicada em Fevereiro, número 3), de um modo geral, uma direita democrática é preferível a uma esquerda totalitária, por exemplo, um regime stalinista é pior do que qualquer capitalismo ocidental. Afirmação que pode parecer paradoxal, mas a história é fértil em tais paradoxos. E por aí se vê como, contrariamente às aparências – é a experiência que se tira dessa discussão – considerar Stálin “de esquerda” representa uma atitude ou perspectiva muito mais radical do que considerá-lo um político de direita. Porque é uma atitude mais crítica. O Stálin, homem (monstro) de esquerda, levanta um problema grave a discutir. Um Stálin, suposto de direita, encerra a discussão. Se o excluímos da esquerda, não nos obrigamos a pensar os problemas que essa figura levantaria enquanto “participante” da história da esquerda. Vamos dormir tranquilos.

Isso posto, podemos voltar à linha central da discussão. Distinguimos dois eixos independentes, respectivamente, esquerda/direita, e totalitários/antitotalitários. Tentei explicar o conteúdo dos pólos (muito mais os da primeira dualidade, pois o segundo, em si mesmo, oferece menos problemas de identificação). Porém, esses quatro pontos “cardiais” foram pensados principalmente num plano nacional. Entretanto, se a confusão entre os dois pares gera muitas dificuldades mesmo quando não saímos do plano da política de uma nação, ela se potencia quando o contexto é internacional. A falácia da posição tradicional é a de supor que há apenas um eixo, esquerda e direita; e a de que se situar à esquerda é condição necessária e suficiente de uma política justa. Eventualmente, diz-se também que é preciso estar “bem” à esquerda, que tal ou tal político é preferível, porque está “mais” à esquerda. Vimos que, pelo fato da emergência de um segundo eixo, tais argumentos – embora contenham um elementos de verdade – são enganosos. E enganosos porque ocultam o fenômeno totalitário, e as suas encarnações em partidos ou personalidades políticas. Ora, se esse engano é frequente, já no plano nacional, ele o é muito mais no plano internacional. No plano nacional, perde-se de vista o caráter totalitário de um partido (de uma direção, de um governo) sob a alegação de que ele é “de esquerda”. No plano internacional, onde, com freqüência, encontramos figuras (regimes, partidos...) totalitários, ou protototalitários – na realidade, em muitos casos, a figura que aparece agora é a dos populismos tendendo mais, ou menos, ao totalitarismo – a ocultação se faz pela idéia de que se trata de partidos ou líderes que encarnariam e praticariam uma política “anti-imperialista”. Agora a dualidade matricial esquerda/direita vem recoberta pelo par anti-imperialista/imperialista. Ora, se a atitude da esquerda radical clássica – refiro-me ao bolchevismo, e ao seu prolongamento-negação, o stalinismo –, no plano nacional, era a de optar sempre pela “esquerda”, pouco importando se se tratava de esquerda totalitária ou não (o próprio conceito de “totalitarismo” era, de resto, obliterado), no contexto internacional, a ordem era apoiar em termos mais ou menos absolutos o líder ou partido “anti-imperialista”, pouco importando se a sua política tinha caráter totalitário – mesmo inclinado à direita, no limite – ou não. Supunha-se uma congruência sem falha, pelo menos no plano prático, entre “anti-imperialista” e “esquerda”, ou entre “imperialista” e “direita”. Daí a possibilidade da transposição. Um texto clássico, nesse sentido, é, a meu ver, uma passagem de uma entrevista de Trotski, de setembro de 1938, que, curiosamente, se refere ao Brasil. O sindicalista argentino Mateo Fossa quer saber a posição de Trotski em relação à guerra que se anuncia, e em relação à luta sindical e nacional nos países latino-americanos. Troski se recusa a reconhecer diferença entre o campo democrático e o campo fascista, e diz que a “próxima guerra será ainda mais imperialista rapace do que a de 14-18”. Para explicar a sua posição, ele observa: “Tomo o exemplo mais simples e mais evidente. Domina hoje no Brasil um regime semifascista que nenhum revolucionário pode considerar sem ódio. Suponhamos entretanto que, amanhã, a Inglaterra entre num conflito militar com o Brasil. Eu pergunto: de que lado estará a classe operária? Responderei, da minha parte, que, nesse caso, estarei do lado do Brasil “fascista” contra a Inglaterra “democrática”. Por quê? Porque, no conflito que os oporia, não se trataria de democracia ou de fascismo. Se a Inglaterra ganhasse, ela instalaria no Rio de Janeiro um outro fascista e encadearia duplamente o Brasil. Se pelo contrário o Brasil ganhasse, isto poderia dar um impulso considerável à consciência democrática e nacional desse país e conduzir à derrubada da ditadura de Vargas. A derrota da Inglaterra aplicaria ao mesmo tempo um golpe no imperialismo britânico e daria um impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês. Realmente, é preciso não ter nada na cabeça para reduzir os antagonismos mundiais e os conflitos militares à luta entre fascismo e democracia. É preciso aprender a distinguir sob todas as máscaras os exploradores, os escravistas e os ladrões!”6Tudo está dito aí. E nada mais enganoso do que um texto como este, embora ele contenha certa – mas só “certa”– verdade (ou por isso mesmo). Digamos que a posição corrente da extrema esquerda até os nossos dias é uma paráfrase das palavras de Trotski. Mas o que serve e o que não serve nessas palavras? Poderíamos dizer que no caso específico – embora muito improvável e portanto mais ou menos fictício – de uma invasão do Brasil, governado por Vargas, perpetrada pela Inglaterra, não seria incorreto dizer que o “melhor” lado seria mesmo o Brasil – apesar de Vargas –, e não a Inglaterra. Isso supondo um caso de invasão imperialista “pura”, sem nenhum outro tipo de componente, por exemplo, o fato eventual de que o Brasil tivesse sido invadido pela Alemanha, ou outra circunstância dessa ordem. (A propósito do cruzamento entre esquerda/direita e totalitários/anti-totalitários, se eu disse que, em princípio, um esquerdista totalitário é pior do que um direitista democrático, disse também que essa regra não é simples, e pode se modificar conforme a situação). A opção de Trotski, justificável provavelmente nas condições que indiquei, poderia ser generalizada para outros casos, isto é, para outras lutas de governos “fascistas”, ou totalitários, contra governos democráticos (ou “democráticos”, se se preferir)? Ora, para pensar em que medida essa posição poderia ser justificável nos nossos dias, ou, em geral, em outras situações grosso modo “análogas”, seria preciso considerar os seguintes elementos: 1) a natureza do poder “fascista” (ou “totalitário”): não é indiferente saber se se trata de um dirigente populista, digamos do tipo Cárdenas, ou um ditador sanguinário como Bocassa ou Amin-Dada; 2) O estado das relações entre os países mais desenvolvidos e os países subdesenvolvidos como se dizia até há pouco, ou “emergentes”, como se diz agora para uma parte deles. É também importante conhecer o peso político que tem, em cada caso, o centro sobre a política dos países periféricos e o grau de eficácia nacional e internacional de cada um desses governos periféricos, ou de vários deles em concerto.7Ora, se examinarmos a evolução das relações internacionais do tempo de Trotski aos nossos dias, é evidente que, por mais que se conserve a eficácia dos instrumentos de hegemonia, é certo que os países do chamado terceiro mundo, pelo menos no que se refere aos chamados “emergentes”, têm um campo de manobra consideravelmente aumentado em relação ao que existia há 70 anos, e isso por várias razões: evolução das relações centro/periferia através da própria história dessas relações, enfraquecimento do poder americano, surgimento de novos poderes internacionais (emergentes ameaçadores como a China), desenvolvimento econômico considerável dos emergentes etc. Por outro lado, o impacto negativo das ditaduras protototalitárias nos países ditos periféricos é hoje de uma ordem incomparável. Basta ver os seus efeitos virtuais ou reais no plano da propaganda fundamentalista ou do terrorismo, ou nos dois planos. Nesse sentido, é a ideia mesmo que estava na base do argumento de Trotski, a de uma congruência entre “anti-imperialismo” e “esquerda”, isto é, a de que a vitória de um poder quasitotalitário significa ou anuncia uma vitória popular, é completamente falsa.8Assim, para dar nome aos bois, quando Lula legitima a farsa eleitoral sangrenta de Ahmadinejad, ele não está ajudando em nada o povo iraniano. Esse povo, como outros – o que Trotski não vê – não quer apenas mais igualdade, quer também democracia. A mesma coisa quando se sustenta Castro, ou até Kadhafi, ou se lava as mãos diante da ditadura síria – tudo em nome dos “interesses progressistas”. Quando não se reivindica abertamente a Realpolitik, a qual, nas mãos dos “subdesenvolvidos” se transmutaria milagrosamente em política socialista ou pelo menos progressista. O que se faz, em nome da luta anti-imperialista é, na realidade, ajudar uma ditadura sangrenta a esmagar o movimento popular, cai-se no que há de mais reacionário em matéria de política internacional. Aliás, voltando ao texto de Trotski. Eu disse que, no caso preciso, a posição proposta, dentro de certas condições, poderia se justificar. Mas ela é enunciada no interior de uma argumentação destinada a provar que na guerra de 39 (que se anunciava) não haveria campo melhor... Isto é, seria indiferente que Hitler ganhasse, ou que ganhassem a Inglaterra, a França e os Estados Unidos... Todo o irrealismo suicida de Trotski está presente naquela entrevista. Trotski manteve, aliás, essa posição, mesmo depois do início da guerra, por ocasião do desembarque na Noruega que ocorre meses ante do seu assassinato por um agente de Stálin. Assim, o quadrado político tem de ser o quadro de referência não só no plano nacional, mas também no plano internacional. Bem entendido, neste último há uma dimensão a ser considerada: a da luta colonial. Ela não coincide sem mais com o eixo esquerda/direita. Há aí um novo elemento, mas que, a meu ver, não constitui, propriamente, um pólo autônomo, que devesse constituir um novo par de opostos, como fizemos para o totalitarismo. A luta colonial é um novo fator a ser considerado para julgar e tomar posição diante de uma situação histórica, fator que não elimina as duas polaridades consideradas até aqui, mas que as modifica, em maior ou menor medida, conforme a situação.

A luta anticolonial tem a ver, em primeiro lugar, com a liberdade. É luta pela autodeterminação de uma nação (se é válido continuar falando assim). O princípio de autonomia individual, que está na base da luta antitotalitária e democrática, prolonga-se em princípio da autonomia de cada nação, autodeterminação das nações, a qual, na prática, poderia se refletir em autonomia individual no plano nacional; poder-se-ia dizer, também, paralelamente – mas a transposição tem alguma coisa de artificial – que aquela luta também tem a ver com a igualdade – é luta pela igualdade entre as nações – a qual, do mesmo modo, poderia se prolongar em igualdade interna. Assim: 1) a luta anticolonial insere-se, de certo modo, como prolongamento das duas dualidades fundamentais; 2) ela se situa, em princípio, por definição, no terreno externo, mas tem, de direito, uma dupla face. De fato, o lado externo é inseparável, de direito, da situação interna. Aparentemente, o erro da perspectiva clássica da (extrema) esquerda – lá onde ela erra pela complacência para com ditaduras “anti-imperialistas” – poderia ser esquematizado da seguinte maneira: no que se refere à liberdade, ela privilegia de forma abusiva o lado externo, tomando-o como mais ou menos independente do interno (ou, se se quiser, ela perde de vista a liberdade interna como, de resto, costuma fazer). No que se refere à igualdade, ela se situa de um modo um pouco diferente: eu diria que, explícita ou implicitamente, ela supõe, sem muito esforço, que a luta anticolonial serve à igualdade interna, mesmo se a médio ou a longo prazo. Há assim, ao mesmo tempo um eclipse da liberdade interna e algo como uma promessa implícita, às vezes a médio ou a longo prazo – promessa ilegítima ou pelo menos excessiva na maioria dos casos – de uma igualdade interna.

[Segunda Unidade]

IV. Igualdade, liberdade, violência... (β)9

1. Esquerda pró-violência, e esquerda contra a violência, em torno do século XIX – Socialismo e comunismo em torno do século XIX.

a) introdução – Trata-se agora de analisar o ramo “não-revolucionário”, ou mais precisamente “não-violento”10, mas, como a análise do outro ramo foi parcial, eu retomo as duas vertentes. – Ao acompanhar a história da vertente “não-violenta” (na realidade, como no caso anterior, só de umas quantas figuras ou movimentos), meu interesse será também o de estudar a “deriva” possível do movimento (ou, mais precisamente, como na outra vertente, de uma parte dele). Mas aqui essa deriva não é a rigor uma “hibris”. De um certo modo, é mesmo o contrário dela; e em virtude precisamente desse seu caráter, ela não vai constituir uma nova polaridade. De fato, se no primeiro caso construímos ou reconstituímos pouco a pouco uma história (ou pré-história) do “totalitarismo”, que vai se cristalizando como um dos pólos de uma nova dualidade, aqui, sendo a deriva antes a adesão ao sistema, não aparece, a rigor, um novo “ismo”. Sem dúvida, existem os conceitos de “reformismo” ou de “revisionismo”, de que se fez grande uso, bom ou mau, em determinados momentos. Vou me ocupar deles (ou do que eles conotam) mais adiante, mas quaisquer que sejam os “estragos” que eles tenham produzido no corpo do movimento socialista, pelo próprio fato de ser, no fundo, uma forma de “adesismo” ao regime, aquela deriva não tem uma realidade propriamente substantiva (pelo menos no sentido em que o totalitarismo a tem). O que não prejulga nada, ou só muito pouco, sobre a gravidade do fenômeno.

Como expliquei na parte II, seção 1 (publicada no número anterior de Fevereiro), a distinção, relativa aos meios, entre partidários e adversários da violência, não se confunde com a distinção, relativa aos fins, que também está no século, e que separa (principalmente) comunistas e socialistas. Há uma certa congruência entre “não-violentos” e “socialistas”, e entre “violentos” e “comunistas”. Mas ela não é absoluta. Às vezes, as determinações se cruzam. Mas eu privilegiei aqui o problema dos meios. E permiti-me até mesmo chamar, em geral, de “socialistas” os adversários da violência. Talvez haja uma certa arbitrariedade da minha parte nesse procedimento, mas pareceu-me que ele se justifica, já que as afinidades internas entre cada um dos dois grupos que se opõem quanto aos meios é muito grande, senão decisiva, e, de certo modo, absorve a outra diferença.

Isso posto, vamos à história. Encontramo-nos diante de séries de figuras muito diferentes umas das outras, principalmente no que se refere aos “adversários da violência”.11Tentarei percorrer alguns temas, citando autores das duas vertentes, não incluindo Marx e Engels, fora breves alusões. (Ocupei-me um pouco de Marx e Engels na parte II, mas volto a eles, depois da caminhada pelo século XIX, como um caso especial, que merece um tratamento particular). É claro que o que farei estará muito longe de ser um verdadeiro balanço teórico do “socialismo” e do “comunismo”, em torno do século XIX. Interessa, essencialmente, pôr em relevo, principalmente entre os “socialistas”, um certo número de conceitos e de teses, que se revelam especialmente importantes para pensar as dificuldades do que seria a teoria hegemônica da esquerda a partir da última década do XIX, o marxismo. Mas interessa mostrar também, sobretudo entre os “comunistas”, certos temas ou conceitos que, se não são propriamente pré-totalitários, trazem uma carga “holística” que leva água para projetos autoritários. Selecionei e agrupei alguns temas: a) Ideologia e meios de intervenção; b) Liberalismo econômico, economia política, propriedade. comunismo; c) Estado, ditadura, democracia; d) Moral, fundamentação ética.

a) Ideologia e meios de intervenção

Pode-se dizer que o ponto de partida – tanto para “socialistas” como para “comunistas” – é a idéia de que se constata uma insuficiência entre o que prometiam os ideais da Revolução Francesa e o seu resultado. A liberdade e a igualdade alcançada se revelam ilusórias. “Qual é (...) o princípio que preside a esses trabalhos diversos [agricultura, indústria, comércio, RF]? É a igualdade, sob o nome da livre concorrência. A mais atroz desigualdade (...) reina, de fato, nesse ponto. (...) Proclamando a concorrência, a sociedade não fez mais, até aqui, de que uma grande ironia”.12“Os privilegiados do século enumeram com complacência os progressos da liberdade, da filantropia (...) ironia cruel (...)”.13Desse descompasso, nasce a expressão que se encontra por toda parte, nos textos da esquerda do século – “a verdadeira igualdade”, “a verdadeira liberdade”... (até “a verdadeira propriedade”), ou “a igualdade real”, “a liberdade real” etc.14A efetivação da liberdade e da igualdade se fará, para alguns, pela violência, para outros por meios pacíficos: educação, luzes simplesmente, ou luta política não-violenta. – Blanqui: “Não existe, entre as duas metades desiguais da sociedade, outra relação que não a da luta, outra necessidade senão a de se fazer o maior mal possível”.15O que contestarão os pacifistas. Desde antes da virada do século, William Godwin escreveria em Political Justice...: “Talvez, nenhuma revolução importante tenha sido não-sangrenta. (...) À observação (...) [sobre] o derramamento de sangue, se pode acrescentar que as revoluções são necessariamente brutais (crude, grosseiras) e prematuras. (...) As revoluções, em vez de serem realmente benéficas para a espécie humana, não satisfazem a outro propósito que não o de frustrar (mar) o progresso salutar e ininterrupto, que se poderia esperar obter através da verdade política e do amelhoramento (improvement) social. Elas suspendem o avanço salutar (wholesome) da ciência, e desconcertam (confound) o processo da natureza e da razão”.16Owen escreve, no mesmo sentido, vinte anos depois: “Uma reforma de qualquer uma das nossas grandes instituições nacionais, sem preparar e pôr em prática meios de bom treinamento, instrução e emprego vantajoso da grande massa do povo, criaria inevitavelmente [uma] revolução imediata, e daria estímulo novo e extenso a todo tipo (every) de má paixão: seguir-se-ia violência; e, em pouco tempo, este império e toda a Europa e as Américas estariam mergulhados num panorama geral de anarquia e confusão terrível, da qual a passada Revolução Francesa nos dá apenas uma pálida antecipação”.17Proudhon, como se sabe, vai no mesmo sentido: “A teoria que lhes proponho tem como finalidade mostrar, se se dispuserem a isto (si vous le voulez bien), como nenhuma revolução ocorrerá mais”.18E na famosa carta a Marx: “Talvez você ainda guarde a opinião de que nenhuma reforma é atualmente possível sem um ‘coup de main’, sem aquilo que se chamava outrora de revolução, e que não é mais do que um tremor (secousse). Essa opinião, que eu concebo (...) já que durante muito tempo acreditei nela, (...) meus últimos estudos fizeram-me abandoná-la completamente. (...) Não devemos pôr a ação “revolucionária” como meio de reforma social, porque esse pretenso meio será simplesmente um apelo à força, ao arbitrário, em resumo, uma contradição. (...) Eu creio saber o meio de resolver, a curto prazo, o problema: eu prefiro cozinhar (faire brûler) a Propriedade em fogo baixo, e não lhe dar uma nova força, fazendo um São Bartolomeu de proprietários”.19Os dois lados representam posições opostas, e, entretanto, é curioso constatar o elogio de Owen que faz o comunista Buonarotti, no seu famoso livro sobre a conjuração de Babeuf: “O que os democratas do ano IV não puderam executar na França, um homem generoso, recentemente, tentou pôr em prática por outros meios, nas ilhas britânicas e na América. O escocês Robert Owen”, que quer organizar “estabelecimentos (...) onde vários milhares de homens vivam pacificamente sob o doce regime da perfeita igualdade. (...) Babeuf tentou reunir um povo numeroso numa única e grande comunidade; Owen, colocado em outras circunstâncias, gostaria de multiplicar num país as pequenas comunidades, que, unidas (...), se tornariam tantos indivíduos de uma grande família. Babeuf queria que (...) se apropriassem da autoridade suprema (...); Owen espera ter êxito através da predicação e do exemplo. Que ele possa mostrar ao mundo que a sabedoria pode operar um tão grande bem sem o recurso da autoridade!”.20Inversamente, veremos que, de um modo surpreendente, o grande leitmotiv dos não-violentos, a educação, tem um peso considerável também entre os comunistas. – Se há acordo, em geral, sobre o descompasso entre as duas liberdades (ou igualdades) – no limite, mas só no limite, a primeira aparece como simplesmente falsa –, e desacordo quanto aos meios de eliminar esse descompasso, diferenças aparecem também quando se trata de precisar qual o peso respectivo das palavras que compõem a grande divisa herdada da Revolução, “liberdade, igualdade, fraternidade”. Alguma delas tem privilégio? Os comunistas são certamente os campeões da igualdade. “A igualdade será a primeira lei, escreve Blanqui. A fraternidade e a liberdade torna-se-ão suas companheiras naturais, sempre por necessidade (...)”.21No livro de Buonarotti, publicado meio século antes, a “igualdade” é, sem dúvida, a noção dominante (o tema é, de resto, a Conspiração dos Iguais), mas a “liberdade” não está ausente. No comunismo filosófico de Hess tem-se também liberdade e igualdade. A presença da “liberdade” em autores como Hess deve ser entendida se se precisar qual é a idéia de liberdade do autor. Nos partidários da revolução violenta, ela, mutatis mutandis, tem em geral alguma afinidade com a “liberdade dos antigos”, na célebre distinção de Constant. Por outro lado, Hess, numa linha oposta à de Leroux, tende a unificar igualdade e liberdade. – A discussão sobre o primado de um ou outro conceito, dá-se também no interior do campo socialista. Assim, o primado da liberdade em Proudhon é um dos pontos da célebre polêmica entre Leroux e Proudhon. “(...) dos três termos (...) você só vê um, o termo liberdade, o que faz tratar com desdém (...) aqueles que (...) desde há muito tempo, mostraram ter o mesmo cuidado (attachement) (...) em relação aos três termos”.22Leroux insiste na necessidade de guardar os três, mas coloca a fraternidade no centro, como princípio unificador: “Ponho a fraternidade no centro da fórmula, porque ela serve de laço entre a liberdade de cada um e a liberdade de todos ou igualdade”.23

b) Liberalismo econômico, economia política, propriedade, comunismo

Até aqui, tratei grosso modo da herança dos direitos do homem, que pode ser considerada como uma das expressões do liberalismo político. Passemos ao liberalismo econômico e à economia política. O pensamento comunista é nitidamente adversário da economia política. O comunista Buonarotti faz dos economistas os grandes inimigos, e os opõe a Rousseau, que é reconhecido como o ancestral ilustre. “(...) Numerosos escritores fizeram com que a prosperidade da nação consistisse na multiplicidade das suas necessidades, (...) numa imensa indústria, num comércio ilimitado, na rápida circulação dos metais em forma de moeda (monnoyés) e, em última análise, na inquieta e insaciável cupidez dos cidadãos“.24As instituições econômicas são mal recebidas pelos comunistas, para não dizer mais. O melhor exemplo é talvez o do dinheiro.25 A atitude dos socialistas26para com a economia política não era, em princípio, muito diferente. Proudhon escreve no Système des Contradictions Économiques...: “(...) não considero como ciência o conjunto incoerente de teorias ao qual, a partir de mais ou menos cem anos, se deu o nome de economia política, e, que, a despeito da etimologia do nome, não é ainda senão o código ou a rotina imemorial da propriedade”.27“O socialismo conclui declarando a economia política uma hipótese falsa, uma sofística inventada em benefício à exploração do maior número pelo menor (...)”.28

Leroux não escreve de modo mais favorável a respeito da economia política: “Durante a Restauração, alçou-se uma espécie de ciência vazia e sutil, que tinha ousado tomar o nome da mais bela das ciências, e que, sem coração, sem olhos nem orelhas, pretendeu ser, entretanto, a reitora (rectrice) da sociedade: ela se chamava economia política. (...) Seu princípio universal, seu único axioma era a liberdade e a concorrência. Cada um por si, e, em definitivo, tudo para os ricos, nada para os pobres, eis o resumo dela; liberal em aparência, assassina (meurtrière), na realidade. (...) Essa pretensa ciência era a própria negação de toda ciência social (...)”.29Proudhon e Leroux criticam a economia política “realmente existente” mas não o projeto mesmo de uma economia política (ou “economia social”), ciência que, para Proudhon seria a “ciência superior e final, da qual as outras não são mais do que instrumentos e meios”.30Mas é talvez na Grã-Bretanha (ou, de modo mais geral, no mundo anglo-saxão) que se encontra o mais interessante corpus pré-marxista de crítica da economia política, a saber, nos autores, como Hodgskin, Ravenstone, Bray, e um anônimo, autor de The Source and Remedy of the national Difficulties.31

A questão da propriedade é conexa à crítica da economia política. Com Owen – a posição de Godwin é muito crítica, mas, mesmo no horizonte, ele não se inscreve, de forma absoluta, contra a propriedade privada32– tem-se uma crítica radical, embora “no horizonte” da propriedade privada. Owen: “Sob o Sistema Racional da sociedade – depois que as crianças tiverem sido treinadas de modo a adquirir novos hábitos e sentimentos, derivados de um conhecimento das leis da natureza humana – não haverá propriedade privada inútil (there shall be no useless private property)”.33

Proudhon tem fama de crítico radical da propriedade, por causa do seu Qu’est-ce que la propriété ? (1840), mas, se considerarmos o conjunto da sua obra – ele afirma, de resto, não ter mudado de opinião –, Proudhon aparece, pelo contrário, como um defensor da propriedade. É interessante analisar, a esse respeito, entre outros textos, o Système des Contradictions Économiques... e o seu livro póstumo Théorie de la Propriété. “Desse ponto de vista, a propriedade se distingue por uma tendência à justiça, que se está longe de encontrar na comunidade.”34Mas é na Théorie de la Propriété que se tem uma ampla reabilitação da propriedade, sem rejeitar, entretanto, o texto de 1840. “A propriedade é a liberdade!”35“A propriedade é o roubo; a propriedade é a liberdade: essas duas proposições são igualmente demonstradas e subsistem uma ao lado da outra no Système des Contradictions...”36“(...) a propriedade é a maior força revolucionária que existe e que se pode opor ao poder.”37“(....) nesse feixe de abusos, se deslinda uma funcionalidade enérgica, que desperta imediatamente no espírito a idéia de um destino altamente civilizador, favorável tanto ao direito quanto à liberdade.”38

A defesa da propriedade no Système des Contradictions Économiques... será objeto da crítica do filósofo comunista Moses Hess. Se num primeiro momento (1843) ele ataca o famoso livro de Stein39por ter separado comunistas de socialistas40, na sua resenha (1847, publicada só em 1931)41do livro de Proudhon, ele é implacável com as “‘semimedidas’ (Halbheit) socialistas”:42“Proudhon quer unificar, por um método puramente ‘especulativo’, dois opostos que se excluem reciprocamente, a propriedade privada e o comunismo. Ele pega um pedaço de comunismo, a associação, e um pedaço da propriedade privada, a aquisição privada, e crê salvar, através da ‘unificação’ deles, por um lado a igualdade, e por outro a liberdade pessoal (...). Ele não vê que está sentado entre duas cadeiras, e que com o seu método especulativo ele não obteve nem a propriedade privada, nem o comunismo, nem a igualdade, nem a liberdade (...) mas só a imaginação de todas essas belas coisas.”43O texto mais famoso de Hess é “Über das Geldwesen” (“Sobre o dinheiro”), (1843/44, publicado em 1845).44Nele se encontra, entre outras coisas, boas ou más, a célebre distinção entre “pré-história” e “história” – no sentido de pré-comunismo e comunismo – que Marx retomaria. É interessante notar o lado fortemente anti-individualista do texto. “Elevar o indivíduo a fim, e rebaixar a espécie a Meio, esta é a inversão que caracteriza a pré-história. A relação autêntica é aquela em que o “homem oferece conscientemente sua vida individual à espécie, quando ocorre uma colisão entre os dois.”45O comunista Moses Hess tinha motivos para atacar Proudhon. O Système des Contradictions Économiques... não é menos crítico em relação ao comunismo do que em relação à propriedade privada. De fato, é bem visível no livro a crítica em duas frentes. A “comunidade”, isto é, o comunismo – na figura de Villegardelle, e em parte de Cabet – é criticado principalmente no famoso capítulo XII (nona época), do segundo volume do Système des Contradictions Économiques.... Proudhon vai insistir inicialmente sobre a incompatibilidade entre a comunidade (o comunismo) e o indivíduo tal como a história o constituiu: “(...) como efeito de um instinto irresistível ou por força de um preconceito fascinador, que remonta aos tempos mais remotos da história, todo operário aspira empreender, todo companheiro quer se tornar mestre, todo trabalhador agrícola quer se estabelecer (mener train), todo plebeu quer se tornar nobre (...)”.46A esse argumento geral, ele acrescenta uma análise crítica das dificuldades de funcionamento e das incoerências da comunidade, tal como ele a encontra em Villegardelle, a quem o texto é dirigido, e em Cabet. (Assim, Proudhon levanta microquestões do tipo: todas refeições serão em comum? Cabet admite exceções, mas por que algumas exceções e não muitas?)47O comunismo é, para Proudhon, a outra face da economia política: “A primeira coisa que me pôs em guarda contra a utopia comunista (...) é que a comunidade é uma das categorias da economia política, dessa pretensa ciência que o socialismo tem como missão combater. Como a propriedade é o monopólio elevado à segunda potência, assim a comunidade não é outra coisa senão a exaltação do Estado, a glorificação da polícia (...). O comunismo reproduz pois, mas num plano inverso, todas as contradições da economia política. Seu segredo consiste em substituir cada uma das funções sociais (...) pelo homem coletivo. E como (...) nunca concilia nem resolve nada, ela chega fatalmente, tanto quanto as precedentes, à iniquidade e à miséria”.48Estamos assim, diante de dois abismos: “A humanidade, como um homem ébrio, hesita e cambaleia entre dois abismos, de um lado a propriedade49e de outro a comunidade: a questão é de saber como ele passará esse desfiladeiro, em que se perdem a cabeça, tomada de vertigem, e os pés.”50A solução proposta é a da “terceira forma social”: “A comunidade busca a igualdade e a lei: a propriedade, nascida da autonomia da razão e do sentimento do mérito pessoal, quer sobre todas as coisas a independência e a proporcionalidade. Mas a comunidade, tomando a uniformidade pela lei, e o nivelamento pela igualdade, torna-se tirânica e injusta: a propriedade, pelo seu despotismo e suas intromissões, logo se mostra opressiva e insociável”. A “terceira forma de sociedade, síntese da comunidade e da propriedade, nós a chamamos liberdade.51A posição de Leroux não é diferente desta. O texto decisivo, a esse respeito, é, a meu ver, “De l'Individualisme et du socialisme” (1833), onde se deve entender “socialismo”, como o autor explica em edições posteriores, por “socialismo absoluto”. “Atualmente, somos (...) presa desses dois sistemas exclusivos, do individualismo e do socialismo, repelidos (repoussés) que somos da liberdade, por aquele que pretende fazê-la reinar, e da associação, por aquele que a prega.”52“Estamos assim entre Caríbide e Sila, entre a hipótese de um governo concentrando nele todas as luzes e toda a moralidade humana, e a de um governo destituído pelo seu próprio mandato, e de toda luz e de toda moralidade; entre um papa infalível de um lado, e um vil gendarme do outro. Uns chamam de liberdade o seu individualismo, eles o chamaram de bom grado uma fraternidade: os outros chamam de família o seu despotismo. Preservemo-nos de uma fraternidade tão pouco caridosa, e evitemos uma família tão invasiva (...).”53E Leroux utilisará também a imagem do desfiladeiro (mesmo se num contexto um pouco mais particularizado, o da legitimidade da intervenção do Estado): “Dois abismos bordam a rota que o Estado deve seguir: ele deve caminhar entre esses dois abismos (...)”.54

c) Estado, ditadura, democracia

No pensamento radical do século XIX, encontramos um número importante de autores que fazem a crítica do Estado, e, mais do que isto, que propõem, a médio ou a longo prazo o fim do Estado. Digamos que há a idéia da morte do Estado no horizonte; mas há também a do fim do Estado a um prazo mais curto; e, nos dois casos, tem-se tanto o modelo pró-violência como o modelo antiviolência. Na hipótese da revolução violenta aparece a questão do poder revolucionário, e a do (eventual) emprego da violência não só antes, mas também depois da revolução. Assim, nessa hipótese, a questão do destino do Estado inclui a da (eventual) ditadura revolucionária, questão que ela mesma pressupõe a do destino do Estado após a revolução. A consideração do Estado, nos põe diante de um conceito quase não mencionado até aqui, o de anarquismo.

Godwin representa a figura, original sem dúvida, do aufklärer anarquista. Aufklärer anarquista em estado puro. Godwin, já vimos, é alérgico a todo tipo de violência (até à das leis!), e acredita no peso em última instância sempre determinante da razão e da verdade. Mas o progresso das luzes não ficará no meio do caminho. Se ele não propõe o fim da propriedade privada, ele supõe e deseja a abolição final do Estado: “Todos os governos correspondem, em certa medida, àquilo que os gregos chamavam de tirania. A diferença é que, nos países despóticos, o pensamento (mind) é oprimido (depressed) por uma usurpação uniforme; enquanto que, nas repúblicas, ele preserva uma grande porção da atividade dele, e a usurpação se conforma mais facilmente com as flutuações da opinião”.55

“Este é um dos estágios mais memoráveis do progresso humano. Com que prazer (delight), cada bem informado amigo da humanidade espera o período auspicioso da dissolução do governo político, daquela máquina brutal (brute engine), que tem sido a única causa perene dos vícios da espécie humana, e que, como apareceu abundantemente no curso do presente trabalho, tem inconvenientes (mischiefs) de vários tipos incorporados na sua substância, e que não são removíveis a não ser através do seu total aniquilamento.”56Assim, Godwin é radical em relação ao Estado, como Owen o é para com a propriedade privada. De Godwin a Proudhon vai mais ou menos meio século.57Já no Système des Contradictions Économiques..., encontram-se os elementos da sua crítica do Estado.58Mas ela está presente, principalmente, em Confessions d'un révolutionnaire (1849)59e em Idée générale de la révolution au XIXe siècle60: “É necessário, pois, para entrar na verdade orgânica, política, econômica ou social, pois aqui tudo é uno (...) dar como base ao poder eclesiástico como a todos os outros poderes do Estado, o sufrágio dos cidadãos. Por esse sistema, o que hoje é Governo não é mais do que administração (...) apenas pelo fato de sua iniciativa eleitoral, o país se governa a si mesmo (...) ele não é mais governado”61. “Não mais autoridade! Isto é, dívidas pagas, servidões abolidas, hipotecas liquidadas (....) despesas da Justiça e do Estado suprimidas (...), não mais antagonismos, não mais guerra, não mais centralização, não mais Governos (...) Não é a sociedade que saiu da sua esfera, caminhando em posição inversa, de cabeça para baixo (sans dessus dessous)?”62“Não há nada, absolutamente nada no Estado, do alto da hierarquia até em baixo, que não seja abuso a reformar, parasitismo a suprimir, instrumento de tirania a destruir.”63(Na medida em que esse apelo à destruição do Estado é, ao mesmo tempo, uma recusa do recurso ao Estado como instrumento de reforma social, o discurso de Proudhon poderia ser contraposto ao estilo de Lassalle, que faz da intervenção do Estado um meio essencial de reforma). Leroux, com quem Proudhon polemiza, escreve, pelo contrário: “Quem quer que fale de ciência social fala de associação, e quem quer que fale de associação, fala de governo; mas quem quer que fale de governo ou de autoridade, seja no Estado, seja na Comuna, seja na oficina não é um intrigante e um déspota; pois não se trata de uma autoridade monárquica, saiba bem, mas da autoridade republicana; e é isto que você não compreende, você, que não compreende a associação”.64Até aqui, a propósito do Estado, só tratei de socialistas (entre os quais, inclui Godwin, pelas razões indicadas), alguns favoráveis ao Estado, outros, adversários dele. O comunista Blanqui, como é a regra entre os comunistas, é um inimigo do Estado, e quer liquidá-lo no final do processo. “O homem da comunidade é aquele que nem engana nem comanda (mène).”65“[Na comunidade, o] crime [terá] desaparecido com o capital e a religião, seu pai e sua mãe.”66“Eis quarenta a cinquenta milhões de homens (...) armados dos pés à cabeça contra a violência e a astúcia (...). Nada daquela coisa execrável e execrada que se chama governo poderia mostrar o nariz no meio deles; nem uma sombra de autoridade, nem um átomo de coação, nem um sopro de influência!”67Mas a comunidade, para Blanqui, virá só no final de um longo processo, que começa com um oposto da ausência de governo, a ditadura revolucionária: “Governo, Ditadura parisiense (...) Um ano de ditadura parisiense em 48 teria poupado à França e à história o quarto de século que termina. Se dessa vez forem necessários dez anos, que não se hesite”.68Em sua forma geral (não na natureza particular da ditadura etc) esse projeto, como se sabe, foi também o de outros radicais. Original é a maneira como Blanqui concebe o trabalho da ditadura revolucionária. Não se deve atacar imediatamente a propriedade: “Importa à preservação (salut) da revolução, que ela saiba unir a prudência à energia. O ataque ao princípio de propriedade seria tão inútil quanto perigoso”.69A ditadura revolucionária blanquista é uma ditadura aufklärer: “Longe de se impor por decreto, o comunismo deve esperar seu advento das resoluções livres do país, e essas resoluções só podem vir da difusão geral das luzes”.70“Entre essas duas coisas instrução e comunismo, o laço é tão estreito que uma não poderia dar, sem a outra, nem um passo adiante, nem um passo atrás. Elas marcharam constantemente juntas (de conserve) e ao mesmo tempo (de front), e não se distanciarão jamais de uma linha até o final da sua viagem comum.”71“Trata-se de impor o comunismo a priori? De modo algum. Limitamo-nos a prever que ele será o resultado infalível da instrução universalizada. Quem poderia condenar o desenvolvimento rápido das luzes?”72“Que a civilização tenha como coroamento inevitável a comunidade, seria difícil negar essa evidência (...) Tudo está em plena marcha na direção desse desfecho. Ele não remete senão à instrução pública, e em consequência à nossa vontade.”73Tem-se assim, ditadura, portanto conservação do Estado, mais instrução.74Se, do lado comunista, aparece a idéia de ditadura, entre os que chamei de socialistas, tem-se a idéia de democracia. Godwin, adversário do Estado, é, entretanto, um defensor da república e da democracia, como a melhor das formas – enquanto houver Estado. “A democracia é o sistema de governo, para o qual, cada membro da sociedade é considerado como um homem e nada mais. (...) [Ela] é o mero reconhecimento do mais simples de todos os princípios morais, todo homem é considerado igual. Os talentos e a riqueza, onde quer que existam não deixarão de obter certo grau de influência, sem requerer instituição positiva que fecunde a sua operação. (...) Com todos esses erros a imputar, Atenas exibiu um espetáculo mais ilustre e invejável do que todas as monarquias e aristocracias que existiram. (....) A democracia restaura ao homem a consciência do seu valor, ensina-o, ao remover a autoridade e a opressão, a ouvir somente as sugestões da razão, dá-lhe confiança para tratar todos os outros homens com franqueza e simplicidade, e o induz a olhá-los não mais como inimigos contra os quais nos pomos em guarda, mas como irmãos a quem ocorre assistir. Quando olha para opressão e a injustiça que prevalecem nos países em torno, o cidadão de um estado democrático não pode deixar de nutrir uma inexprimível estima pelas vantagens de que ele goza, e a mais inalterável determinação de preservá-las”.75Em Leroux também se tem uma crítica da democracia e do governo representativo, mas, como em Godwin (por caminhos diferentes), uma crítica que reconhece a sua superioridade: “Nós consideramos a democracia como uma religião que se forma, acreditamos numa lei moral progressiva na humanidade; acreditamos que um grande desenvolvimento da lei moral se prepara. (...) A Democracia deve um dia substituir por uma religião verdadeira, a religião do passado (...)”76“O governo representativo, na nossa fé profunda, não é apenas um instrumento de transição, como o pretenderam [alguns]. (...) Para nós, o governo representativo é, pelo contrário, o instrumento permanente e necessário do progresso, e a forma perfectível mas indestrutível da sociedade do futuro.”77Mas Leroux sabe que por trás da representação democrática há luta entre “dois interesses contrários”78, “os proletários e os burgueses”79e quer o “progresso da Democracia”.80Nesse sentido, propõe “uma representação especial para os proletários”81, uma espécie de câmara dos lordes às avessas, algo como um “soviet” (!) democrático, que coexistiria com uma outra câmara onde predominaria a burguesia.82

d) Moral, fundamentação ética

Uma linguagem moralizante é a regra entre os socialistas. Mas não está ausente da literatura comunista. A palavra dominante é provavelmente “justiça”, a qual compete com o vocabulário ideológico-político, em particular com a noção de igualdade.

Se Godwin sofre alguma influência de Helvetius, ele parece depender também e talvez muito mais – como sustenta o editor da Political Justice... – de um modelo ético racionalista83em que a noção de justiça tem um papel fundamental. No capítulo II, “Da justiça”, do livro II, “Princípios da sociedade”, ele escreve: “(...) o assunto da presente investigação é, falando estritamente, uma divisão (departement) da ciência da moral (science of morals). A moralidade (morality) é a força da qual se deve tirar os seus axiomas fundamentais, e eles se tornarão de algum modo mais claros no presente contexto (instance), se assumirmos o termo justiça como a denominação geral de todo dever moral”.84 Se não um apelo explícito a um fundamento ético, o recurso a uma linguagem permeada por um vocabulário moralizante, está presente também nos textos dos autores comunistas. O termo Gerechtigkeit (justiça, equidade) é do vocabulário de Hess: “Mas lá onde a liberdade é negada, também não pode haver (bestehen) igualdade alguma, justiça alguma (keine Gleicheit, keine Gerechtigkeit)”.85Se em Buonarotti, o termo dominante parece ser a virtude, na sua acepção jacobina, a “justiça” e também a “moral” estão presentes em Blanqui: “(...) a moral, flor da árvore do pensamento, não é mais do que a expressão mais ou menos poderosa do instinto humanitário que proíbe aos homens que eles se matem entre si, e os conclama a se ajudarem mutuamente. (...) Uma trilogia simples e clara, que exprime a dedicação (dévouement), o dever, o direito, se tornará a aplicação da moral ao governo da humanidade. Faz aos outros o que você gostaria que lhe fizessem... é o ideal. Não faz a ninguém o que você não gostaria que lhe fizessem... é a justiça. Far-se-á a você como você faz aos outros... é a lei. A lei não é senão uma reivindicação da justiça. (...) Vê-se, a moral é a reciprocidade. (...) Tudo o que entrava, tudo o que perverte esses dois elementos essenciais da humanidade [a consciência e o pensamento, RF] deve ser julgado (est justiciable) pela moral.”86Mas a justiça é também, e muito mais ainda, uma palavra-chave dos socialistas. Veja-se os dois “frères ennemis”, Leroux e Proudhon. “A terra, repito, está prometida à justiça e à igualdade (...)”,87escreve Leroux em 1833. “Amo a justiça e só encontro o acaso.”88“Assim, isolado no meio da Humanidade do século XIX, o homem é mais pobre em ciência, em certeza, em moral, do que jamais o foi nas idades menos avançadas da humanidade.”89Mas, para ele, a igualdade passa antes da justiça: “Esta igualdade [a igualdade reconhecida pelos homens RF] vem antes (est avant) da justiça, é ela que a causa e a constitui.”90Não é o caso em Proudhon.91“Que é com efeito essa Justiça, senão a essência soberana que a Humanidade adorou em todos os tempos sob o nome de Deus; que a filosofia, por sua vez, não cessou de procurar sob nomes diversos (...).”92Mas o que é a justiça? “(...) razão [é] a faculdade [do homem] de sentir sua dignidade na pessoa do seu semelhante, como na da sua própria pessoa, e de se afirmar ao mesmo tempo como indivíduo e como espécie. (...) A Justiça é o produto dessa faculdade: é o respeito, espontaneamente sentido (éprouvé), e reciprocamente garantido da dignidade humana, em qualquer pessoa e em qualquer circunstância em que ela se encontre comprometida, e qualquer que seja o risco que nos expõe a sua defesa.93Mas a noção de justiça é, ao mesmo tempo, objeto de um investimento, e aí, ela é inseparável da idéia de equação e de equilíbrio, em particular nas trocas de produtos e de serviços: “(...) ponho como ponto fixo, lei da natureza, do espírito e da consciência, esse fato universal: Justiça, igualdade, equação, equilíbrio, acordo, harmonia”.94“Vantagem por vantagem, utilidade por utilidade, serviço por serviço, produto por produto, apreciação equitável dos valores e serviços trocados, sem nenhum privilégio e situação (...) sem nenhum favor legislativo em benefício de uma das partes. (...) Eis a verdade, eis o direito, eis a justiça! É o que se chama de ‘mutualidade’ (mutualité).”95“A utilidade vale a utilidade; a função vale a função; o serviço vale o serviço; a jornada de trabalho equilibra (balance) a jornada de trabalho; e todo produto será pago pelo produto que custara a mesma soma de sacrifícios (peines) e de gastos.”96Só que, pelo fato mesmo de que uma contabilidade das horas de trabalho97coexiste com o critério da utilidade, e que tudo depende do “motivo justo” fundado na “consciência universal”98, o elemento não quantitativo e moral subsiste como elemento fundante.

A tendência a fundar o socialismo em valores morais iria florescer anos depois, para além de Marx. Quebrando os limites temporais em que me movi até aqui, é necessário introduzir – finalizando esse desenvolvimento  –  os projetos posteriores de fundação ética do socialismo, ou antes, um desses projetos, o mais famoso. Refiro-me a Bernstein.

Em Bernstein – autor pouco lido, o que é lamentável, porque, qualquer que seja o valor dos seus resultados, a polêmica com Kautsky e outros é interessante, sob mais de um aspecto, e não se pode dizer que Bernstein se saía mal ao discutir com Kautski – tem-se, com todas as letras, no interior de uma atmosfera intelectual e política bastante diferente da que vimos, até aqui – Marx já havia morrido e o marxismo se tornava a teoria hegemônica – a ideia da necessidade de introduzir uma dimensão ética explícita no projeto e, no limite, de fundá-lo numa ética.99Bernstein critica “a oposição [por parte de Marx e dos marxistas, RF] à derivação (Ableitung) do socialismo a partir de princípios éticos”.100 Em (alguma) continuidade com Proudhon101, a referência essencial será Kant. “(...) Não posso subscrever a frase ‘a classe operária não tem nenhum ideal a realizar’, vejo nela antes apenas um produto de uma autoilusão, se não for um simples jogo de palavras do seu autor. E nesse sentido, há tempos, contra os clichês (cant) que procuram se incrustar no movimento operário e aos quais a dialética hegeliana oferece um abrigo confortável, eu fiz apelo ao espírito do grande filósofo de Königsberg, o crítico da razão pura (...) a social-democracia necessita de um Kant, que, examinando de forma crítica (kritisch-sichtend) julgue com plena acuidade, a doutrina (Lehrmeinung, dogma) tradicional, mostre como (wo) o aparente materialismo é a mais alta (höchste) e por isso a mais enganosa ideologia (...).”102“Até certo ponto, a meu ver, o ‘De volta a Kant’ vale também para a teoria do socialismo.”103“Na teoria de Marx em nenhum lugar se remonta à ética (como força fundante [grundlegende Kraft]).”104“Por que a degradação do discernimento (Einsicht), da consciência do [que é] direito (Rechtsbewusstseins)  (...)? Considero tudo isso insustentável e supérfluo.”105

e) Balanço, considerações gerais

Chegamos assim ao final desse périplo em torno do socialismo e o comunismo do século XIX. Deixei de tocar em alguns pontos importantes, um principalmente: a história. Deixo-a para a parte final desse texto.106Lá também será o lugar em que vou me referir um pouco a uma figura de que quase não me ocupei até aqui: Fourier – alguém que interessa, entre outros motivos, precisamente pela sua visão original, nada linear, do processo histórico. Faltaria, também, entre outras coisas – mas não o farei neste artigo, ou só o farei muito limitadamente – discutir os dois textos “maiores” de Blanqui, L‘Eternité par les astres, e as Instructions pour une prise d‘ armes. Curiosamente, eles nos reconduzem a Fourier e à história. O primeiro, que interessou muito a Benjamin e a outros críticos, introduz um tempo cíclico que não exclui o progresso, tudo numa atmosfera pré-surrealista, que lembra Fourier. Quanto ao segundo, a multiplicação de detalhes faz dele uma espécie de quase-Falanstério, mas não Falanstério de sociedade sem exploração realizada, mas do processo que levaria a essa sociedade. A ruptura, em Blanqui, é dada pela insurreição, que, entretanto, como vimos, vai instaurar uma continuidade. A ruptura em Hess (nos textos em torno de 1844/45) é a referida passagem da pré-história à história.

Como escrevi na seção II, a referência dos comunistas no que tange ao século XVIII é, principalmente, Rousseau. (Hess é um caso um pouco à parte: ele deve a Fichte, e, pelo menos nos primeiros textos, também a Espinosa.) As referências dos socialistas são muitas e diversas. Se também Rousseau, em geral, não o Rousseau do Contrato...;107também Helvétius, Paine, Smith, certos aspectos do utilitarismo, o romantismo108, e Kant. Quase não falei de Deus e da religião, que estão presentes por quase todo lado, inclusive entre alguns comunistas. O socialismo/comunismo ateu é, essencialmente, alemão (embora a religiosidade não seja estranha à extrema esquerda alemã: ver pelo menos um dos textos de Weitling).109Mas o que me interessava nesse percurso – ao qual, como anunciara, não integrei Marx e Engels, senão excepcionalmente – era, por um lado, pôr em evidência, principalmente entre os socialistas, certos conceitos ou temas que, de algum modo se perderiam no marxismo, e que me parecem válidos para uma reconstrução atual do socialismo. Por outro lado, em contraponto, interessava assinalar alguns motivos, digamos, holistas (se não pré-totalitários) que já se encontram no comunismo do século XIX.110Sobre esse segundo aspecto, limito-me a remeter à concepção quase instrumental do indivíduo – o indivíduo se sacrificando em benefício da espécie – no “Über das Geldwesen“ de Hess. Interessa mais, aqui, o primeiro trabalho, o de pôr em evidência conceitos e temas críticos. Creio que, a esse propósito, conviria assinalar os seguintes temas ou conceitos (sobre os quais ainda volto): 1) A defesa da não-violência; 2) a crítica do comunismo, solidária da idéia de que existe não um “abismo”, mas dois (comunismo e propriedade privada, pensada em termos absolutos); 3) a defesa da democracia e do governo representativo; 4) a defesa da propriedade individual e a ênfase na exigência de trocas “justas” (o que significa a justificação daquilo que Marx chamaria de “circulação simples”, por oposição à produção-circulação do capital).

Como já escrevi, em relação ao ramo comunista, o risco era uma deriva de natureza robespierrista-terrorista, e, mais tarde, totalitária. Se no caso do comunismo o perigo era assim a hibris da violência, no dos socialistas era o da adaptação à sociedade capitalista, e aos poderes dominantes. E de fato, quaisquer que sejam os méritos da tradição socialista – assinalei logo acima alguns temas e teses essenciais que se originam dessa tradição –, e mesmo se houve quem resistisse bem, ela foi constantemente ameaçada na sua legitimidade, pelas ilusões com os poderes e pela tentação de capitular diante deles (mas a definir o que significa “capitular“) quando – menos capituladora do que impotente – ela (ou parte dela) não se mostrou simplesmente incapaz de encontrar opções políticas viáveis. Se quisermos dar exemplos históricos (sem dúvida, heterogêneos), teríamos: o que parece ter sido a impotência dos socialistas e radicais franceses em 1848;111num outro plano, a capitulação – ou quase-capitulação – de Proudhon diante de Napolenão III, como a de Lassalle diante de Bismarck. O revisionismo de Bernstein, se não deixou de levantar importantes problemas teóricos ou práticos (denúncia da “langue de bois”, análises da formação das novas classes médias etc), introduziu uma visão excessivamente aufklärer e otimista do que seria o futuro do capitalismo, além de se perder no projeto ilusório de uma política colonial “justa”.112Depois vem a triste história dos partidos social-democráticos, o alemão em especial, diante da guerra de 14, começando pelo voto favorável aos créditos de guerra. Mas aqui, para o caso alemão pelo menos, seria importante destacar que a “degenerescência” parece vir menos da ideologia, do que do peso da burocracia interna do partido. Esta acaba levando até à política sanguinária de Noske.113– Como já expliquei também, se a deriva robespierrista ou totalitária do comunismo obriga a introduzir uma nova dualidade (para além do par direita/esquerda: precisamente totalitário/não-totalitário), a socialista não constitui propriamente uma nova figura, apesar da complexidade histórica do fenômeno e da sua gravidade.

(conclui em Fevereiro, número 5)































fevereiro #

4



1 Início do texto em Fevereiro, número 3.

2 Por engano, foi omitido o 1 na numeração da primeira seção de III (III, 1), que tratava de algumas questões prévias e em seguida expunha o “quadrado político”. – Outro engano (também em Fevereiro, número 3): há um I a mais, no título geral do artigo. Em lugar dele, colocar “primeira unidade”. Os números romanos I, II, III etc, correspondem à numeração das diferentes partes do texto.

3 Na realidade, só cheguei a esclarecer suficientemente esse ponto depois de uma discussão com meu velho amigo Michael Löwy – com o qual, deixo claro, tenho divergências bem importantes, ainda que no interior de um universo comum de esquerda – cujo talento polêmico é sempre muito estimulante ao trabalho, sempre necessário, de  pensar e repensar as próprias posições.

4 De fato, admitindo esse espaço, imagina-se – ou pode-se imaginar – que, supondo a “esquerda” situada, digamos, sobre pontos de um paralelo da esfera que configura esse espaço, se nos deslocarmos partindo de um ponto nessa região, digamos, para o “oeste”, a partir de um certo limite entramos na região dos totalitarismos, região habitada também pela direita, que a encontra pelo caminho inverso. O esquema tem certa validade, porque um projeto de igualdade absoluta descamba, pelo menos segundo o que a experiência sugere, em formas totalitárias. Mas, além do fato que assinalei de que, se o projeto de igualdade absoluta tende ao totalitarismo, o totalitarismo em si mesmo, não só não é igualitário, mas não procede, a rigor, de um excesso na implementação da igualdade, há a dificuldade de que, se o projeto de igualdade absoluta tende ao totalitarismo, não é verdade que à medida que radicalizamos a exigência de igualdade nos aproximamos necessariamente do totalitarismo. Por outras palavras, é só no limite que essa passagem parece ocorrer, não anteriormente a ele, mesmo que se tenha ido longe no sentido de um projeto de igualdade radical. Assim, há anarquismos libertários, e até marxismos mais ou menos libertários (Luxemburgo, principalmente), deixando em aberto, por ora, repito, o problema da sua consistência lógica ou possibilidade histórica.

5 Isso não implica, entretanto, que seja válido às organizações socialistas-democráticas fazer, com ele, alianças que impliquem o risco de conduzi-lo ao poder. Mas o problema é complicado: como saber com certeza se há ou não há risco? A questão das alianças se põe, precisamente por que ele “cola” no movimento de massas. Simplificando muito, alianças podem se justificar pela situação, um pouco como se justificam as que se fazem com a direita democrática, quando há ameaça imediata, ou opressão efetiva, do totalitarismo-igualitarista. A analogia não é perfeita, entretanto: o risco é maior quando se lida com formas totalitárias.

6 Trotski, Oeuvres, sob a direção de Pierre Broué, França (sem menção da cidade), “Publications de l'Institut Léon Trotsky”, 1984, vol. 18, junho 1938 a setembro 1938, respectivamente, p. 324 e p. 326.

7 As duas coisas não são estritamente correlativas: um país periférico pode ser dominado pelo centro nas suas relações para com este, mas funcionar por sua vez como um centro dominador nas suas relações regionais.

8 Comecei a escrever esse texto antes ou no início das “revoluções árabes”, em todo caso, antes do movimento contra Kadhafi. O que veio depois – incluindo a gesticulação de uma extrema-esquerda que oscilava entre a neutralidade e um quase-apoio ao “anti-imperialista” Kadhafi – confirma, creio, o que escrevi.

9 Esta parte  IV retoma, nesta segunda unidade, o título e o tema da parte II (na primeira unidade, ver  Fevereiro, número 3) mas considerando outras figuras. Daí a indicação (β).  O título da parte II era “Igualdade, liberdade, violência (α) [alfa]”. Ao indicar esse título no número 3,  faltou o (α) [alfa]. Acrescentar.

10 Prefiro utilizar as expressões “partidário da violência” e “adversário da violência” (ou mesmo “violento” e “não-violento”), para designar a oposição em matéria de meios, em lugar das expressões “revolucionário” e “não-revolucionário”. Há ambiguidade em tal uso da noção de “revolucionário”. E quando passamos às distinções relativas aos fins – no nosso caso, a mais importante é a que separa “comunistas” e “socialistas” – a ambiguidade ainda se agrava. (Principalmente evite-se reservar o qualificativo de “revolucionários” aos comunistas, e o de “não-revolucionários” aos socialistas).  Porém, a ambiguidade está ligada ao contexto, isto é, às distinções de que se fez uso. Falarei de “revolução“ e de “revolucionário“ mais adiante, em contexto diferentes, no interior dos quais o emprego dessas noções parece se justificar.

11 Para facilitar a leitura, indico desde já os principais autores e atores a que recorri. No que se refere aos partidários da violência (aproximadamente, os comunistas): o revolucionário babuvista Buonarotti; o filósofo comunista Moses Hess; Blanqui; e, em menor medida, o artesão comunista alemão, Wilhelm Weitling. Quanto aos adversários da violência (aproximadamente “socialistas”), principalmente Proudhon e Leroux, mas também William Godwin (embora este seja mais um anarquista aufklärer inimigo da violência) e Robert Owen (antes um comunista “no horizonte”, embora também adversário irredutível da violência). Soma-se a isso, umas poucas referências a Saint-Simon e ao Saint-Simonismo. Omito outras alusões menores. Como indico mais adiante, por razões que ficarão mais claras quando a parte final desse artigo for publicada, por ora deixo de lado Fourier (ao qual me referi brevemente na parte II [ver o número anterior de Fevereiro]), para me ocupar dele, em alguma medida, nas partes finais desse texto, a publicar. – Na linha do que disse, esta apresentação é balizada pela oposição entre partidários e adversários da violência (que chamo, às vezes, respectivamente, de comunistas e socialistas), oposição, em parte presente “objetivamente“ nos seus textos, em parte refletindo polêmicas que os personagens efetivamente tiveram. Às que se fazem em torno do eixo principal, somam-se algumas polêmicas internas, essencialmente no interior do ramo “socialista”.

12 Pierre Leroux, “Egalité” (1838), artigo da Encyclopédie Nouvelle (1834-1840), in Anthologie de Pierre Leroux, inventeur du socialisme, editada por Bruno Viard, Paris, Éditions Le Bord de L'Eau, 2007, p. 217. O editor se refere ao texto, na p. 13. Lá está, também a alusão à passagem que cito em seguida, da Doctrine de Saint-Simon, Exposition. Ele indica, ainda, que também Linguet, nos seus Annales poliiques, civiles et littéraires fala da “triste ironia”.

13 Doctrine de Saint-Simon. Exposition (por B.-P. Enfantin e outros) (1830), documento eletrônico, Bibliotèque Nationale de France, NUMM 85469, p. 106.

14 Auguste Blanqui, carta a Maillard (1852), in Maintenant, il faut des armes, textos escolhidos e apresentados por Dominique Le Nuz, Paris, La Fabrique éditions, 2006, p. 179; Philipe Buonarotti, Conspiration pour l’Égalité dite de Babeuf, Paris, Baudouin Frères, 1830, tomo I, p. 224. Pierre Leroux “Le Carosse de M. Aguado”, (Revue Sociale, 1847), in Anthologie de Pierre Leroux..., op. cit. p. 323 etc etc. Naturalmente, há um leque de posições na determinação do que seja precisamente a liberdade ou a igualdade “não-reais” ou “não-verdadeiras”, desde a idéia de que se tratava de “falsidade”, até a concepção segundo a qual lá havia uma liberdade (ou uma igualdade) “insuficiente”. A posição de Marx no seu famoso artigo “A Questão Judaica” para os Anais Franco-Alemães exemplifica bem a primeira posição.

15 Auguste Blanqui, “Allocution à la Société des Amis du Peuple” (1832), citado por Dominique Le Nuz, in Maintenant, il faut des armes, op. cit., introdução, p. 32.

16 William Godwin, Enquiry concerning political justice and its influence on morals and happiness, (1795) editado por F.E.L. Priestley, Toronto, University of Toronto Press, 1946, vol. I, p. 271-274.

17 Robert Owen, Selected works of Robert Owen, editado por Gregory Claeys, William Pickering, Londres, 1993, vol. I, 196-197 (texto de 1817). Mais tarde, lê-se no mesmo Owen: “(...) evitar (...) que a revolução do erro à verdade, ou da miséria à felicidade, seja feita pelo povo, em vez de ser pelas medidas judiciosamente previstas e concebidas pelos governos”. (Robert Owen, Selected works of Robert Owen, op. cit., vol. III, Book of the New Moral Word, sétima parte, 1844), p. 380.

18 P.-J. Proudhon, Théorie de la Propriété, (1886, póstumo), Paris, l’Harmattan, 1997, p. 218, 219,

19 P.-J. Proudhon, Correspondance de P.-J. Proudhon, editada por J.-A. Langlois, 1875, Genebra, Slatkine Reprints, 1971, vol. II, p. 199. Carta de Proudhon a Marx, de 17 de maio de 1846.

20 Philipe Buonarotti, Conspiration pour l‘Egalité dite de Babeuf, op. cit., primeiro tomo, p. 296. Não esqueçamos de que, se Buonarotti é partidário da violência e Owen adversário dela, este, como já disse, é a rigor um comunista, mesmo se o seu comunismo, além de vir por vias pacíficas, só se efetivará como objetivo último. Contrapondo comunistas e socialistas nas primeiras tentativas de crítica da economia política, Marx situa Owen entre os primeiros, e Saint-Simon e Fourier entre os últimos (ver Marx-Engels, Theorien Über den Mehrwert, in Werke, Berlim, Dietz, vol. 26.3, 1968, p. 234).

21 Auguste Blanqui, “O Comunismo, futuro da sociedade” (1869-1870), capítulo de “La Critique Social“ (póstumo, 1885) in Maintenant, il faut des armes, op. cit., p. 224.

22 Pierre Leroux, “Réponse à Proudhon” (“Qu‘est-ce que le gouvernement, qu’est-ce que Dieu”) [não fica claro se título e subtítulo estão também no original], artigo publicado no jornal La République, de 10 de novembro de 1849. Documento informático. Procurar no Google, “Pierre Leroux, tous les messages sur Pierre Leroux, Claire Obscurité”. Claire Obscurité de 15 de novembro de 2010.

23 “Aux Politiques”, publicado na Revue Indépendante, artigo publicado de dezembro de 1841 a julho de 1842, in Anthologie de Pierre Leroux..., op. cit., p. 265 (e, parcialmente, p. 30) (grifos do autor;  salvo indicação em contrário, os grifos são dos autores).

24 Philiphe Buonarotti, La Conspiration pour l‘Égalité..., op. cit., tomo I, p. 6-7. “(...) para muita gente a liberdade não é outra coisa senão a faculdade ilimitada de adquirir” (Idem, p. 7).

25 Ver Moses Hess, “Über das Geldwesen” (escrito em 1843/44, publicado em 1845) in Philosophische und Sozialistische Schriften 1837-1850, antologia, edição e introdução de Auguste Cornu e Wolfgang Mönke: “O dinheiro é o sangue social, mas o sangue extraneado (entäusserte), o sangue vertido” (p. 345). E o artesão comunista alemão Wilhelm Weitling: “ Com a introdução do dinheiro, a miséria alcançou esse ápice incalculável...” (Weitling, Garantien der Harmonie und Freiheit (1842), com uma introdução e anotações de Bernhard Kaufhold, Berlim, Akademie-Verlag, 1955, p. 51).

26 Para simplificar, passei a escrever “socialistas” e “comunistas” sem as aspas. O leitor levará em conta, minhas observações anteriores. Na realidade, o problema só se coloca no caso de Owen e de Godwin. Não para os outros – das duas vertentes – a saber: Proudhon (mesmo se há a questão do “anarquismo” proudhoniano), Leroux, Buonarotti, Hess, Blanqui etc.

27 Pierre-Joseph Proudhon, Système des Contradictions Économiques ou Philosophie de la Misère (1846), in Oeuvres Complètes, nova edição, sob a direção de C. Bouglé e H. Moysset, Genebra-Paris, Slatkine, volume I, 1, p. 66.

28 P. J. Proudhon, Système des Contradiction Économiques..., in Oeuvres Complètes, op. cit., vol. I, 1, p. 68.

29 Pierre Leroux, “[Aux Politiques] De la Philosophie et du christianisme“ (1832), (“Trois Discours sur la situation actuelle de la société et de l’esprit humain”) in Aux Philosophes, aux artistes, aux politiques. Trois discours et autres textes>, editado e prefaciado por Jean-Pierre Lacassagne, posfácio de Miguel Abensour, Paris, Payot, 1994, p. 182-183.

30 Correspondance de Proudhon, op. cit., vol. III, tomo V, p. 106, citado por Pierre Haubtmann em La Philosophie Sociale de P._J. Proudhon, Presses Universitaires de Grenoble, 1980, p. 260. Não tentarei definir aqui, de forma mais precisa essa espécie de crítica moral e sociológica (ver o conceito de “força coletiva”) da economia que nos oferece Proudhon.

31 A maioria desses autores ficou conhecida pelo capítulo a respeito nas Theorien über den Mehrwert de Marx (Marx-Engels, Werke, Berlim, Dietz, vol. 26.3, 1968, cap. 21, p. 234 e s.). Ver, a propósito, meu texto “Sobre o jovem Marx” in Discurso, nº 13, 1980. Há duas idéias essenciais nesses autores. Uma é a  posição nominalista diante das categorias econômicas: o capital não teria realidade, senão fantasmagórica. A outra, que nos interessa aqui especialmente, é a de que só há equivalência naquilo que Marx chamaria de circulação simples, não havendo equivalência – o que, diga-se de passagem (apesar do que se escreve frequentemente), Marx a rigor não dirá – na troca entre (força de) trabalho e capital.

32 Ver o livro VIII, “Of Property” da Political Justice... (op. cit, vol. 2) e a introdução de F.E.L. Priestley (Political Justice..., vol. 3, particularmente IV, “Economic Thought”, p. 62 e s.)

33 Robert Owen, Book of the new moral world, sexta parte (1844) In Selected Writings, op. cit., vol. 3, p. 328. A passagem é citação de um texto anterior, de Owen. Que esse “inútil” (useless) não é propriamente restritivo, fica claro através da leitura de outros textos, ver Selected Writings, op. cit., vol. 2, p. 373-4, Development of Socialism, (parte publicada em 1841); vol. 3, p. 327-8 (Book of the New Moral World, sexta parte, 1844); e as observações do editor, v. 1, p. l.

34 Proudhon, Système des Contradictions Économiques..., op. cit., vol. I, 2, p. 297. O “ponto de vista” é a consideração da “tendência [da propriedade] à distribuição comutativa do bem, e à não-solidariedade (insolidarité) do mal”. Volto logo mais ao confronto entre propriedade e comunidade em Proudhon. Sobre a propriedade no Système des Contraditions Économiques..., ver o capítulo XI, “Huitième Époque – La Propriété”, Idem, p. 158 e s.

35 P.-J. Proudhon, Théorie de la Propriété, op. cit., p. 37. O texto é, na realidade, uma citação das Confessions d'un Révolutionaire (1849), Oeuvres Complètes, vol. VII, p. 179.

36 Ibidem.

37 Proudhon, Théorie de la Propriété, op. cit., p. 136-137.

38 Idem, p. 173.

39 Lorenz von Stein, Der Socialismus und Communismus des heutigen Frankreichs. Ein Betrag zur Zeitgechichte, Leipzig, Wigand, 1842.

40 Ver Moses Hess, Philosophische und Sozialistische Schriften, 1837-1850, op. cit., p. 204, (“Socialismus und Comunismus” (1843)). Entretanto, Hess não confunde, aí, socialistas e comunistas, apenas vê, então, a literatura socialista, como um momento que conduzirá à doutrina comunista.

41 Ver p. 48, Edmund Silberner, Moses Hess, an annotated bibliography, N. York, Burt Franklin, 1951, p. 48.

42 Moses Hess, Philosophische und Sozialistiche Schriften..., op. cit., p. 400.

43 Moses Hess, Philosophische und Sozialistische Schriften..., op. cit., p. 397.

44 Essa precisão importa, porque, quando Marx publica seus artigos nos Anais franco-alemães, ele conhecia o artigo de Hess.

45 “Über das Geldwesen”, art. cit. in, Philosophische und Sozialistische Schriften..., op. cit., p. 333-334.

46 Proudhon, Système des Contradictions Économiques..., Oeuvres complètes, op, cit, I, 2, p. 264.

47 Blanqui critica e ridiculariza essa exigência de explicitação de todos os meandros da sociedade comunista. Ver Blanqui, “Le comunisme, avenir de la société”, in Maintenant, il nous faut des armes, op. cit., p. 209 e s.

48 Proudhon, Système des Contradictions Économiques..., in Oeuvres Complètes, op. cit., vol. I, 2, p. 258.

49 A propriedade, entendida de forma acrítica.

50 Idem, p. 266.

51 Proudhon, Qu'est-ce que la propriété? ou Recherches sur le principe du droit et du gouvernement (première mémoire, 1840), Oeuvres Complètes, op. cit., vol. IV (introdução e notas de Michel Augé-Laribé), p. 342.

52 Pierre Leroux, “De l'individualisme et du socialisme” (1833), in Aux Philosophes, aux Artistes, aux Politiques, trois discours et autres textes, op. cit., p. 246.

53 Idem, p. 248-249.

54 Pierre Leroux, discurso parlamentar de 30 de agosto de 1848, in Anthologie de Pierre Leroux, op. cit., p. 347.

55 Godwin, Political Justice..., op. cit., vol. 2, p. 212. Como veremos, esse juízo não impede que Godwin venha a escolher a forma menos ruim.

56 Idem, p. 212.

57 Entre os dois está Saint-Simon. Saint-Simon era partidário de uma “associação, em que a dominação e a autoridade seriam reduzidas a um mínimo” (Juliette Grange in Comte de Saint-Simon, Écrits politiques et Économiques, anthologie crítique, Paris, Pocket, 2005, p. 229). De fato, o ideal de Saint-Simon, que é também um “não-violento”, é o de uma autoridade reduzida a um mínimo – um Estado que simplesmente garante a ordem, mas não se trata do Estado-gendarme dos liberais –,  a verdadeira “direção” vindo dos sábios e não sendo de natureza estatal: “(...) época feliz para a espécie humana, na qual as funções governamentais serão reduzidas a não ser mais do que da natureza dos ‘vigilantes’ dos colégios, que são encarregados da tarefa (soin) de manter a ordem; é aos professores que se confia a direção do trabalhos dos alunos. Deve ser o mesmo no Estado: os sábios, os artistas e os artesãos devem dirigir os trabalhos da nação; os governantes só devem se ocupar da tarefa de impedir que os trabalhos sejam perturbados” (Claude-Henri de Santi-Simon, L‘Organisateur, deuxième lettre (1819) in Oeuvres de Claude-Henri de Saint-Simon (1869), Genebra, Slatkine Reprints, 1977, p. 42-43).

58 Ver Pierre Ansart, Proudhon, textes et débats, Paris, Librairie Générale Française, 1984, p. 124. E, do mesmo autor, Socialisme et Anarchisme, Saint-Simon, Proudhon, Marx, Paris, PUF, 1969, segunda parte, cap. 4, p. 233 e s.

59 Confessions d'un révolutionnaire pour servir à l'histoire de la révolution de février, in Proudhon, Oeuvres Complètes, op. cit., vol. VII (introd. e notas de Daniel Halévy).

60 Proudhon, Oeuvres Complètes, op. cit., vol. II (introd. e notas de Aimé Berthoud).

61 Confessions d'un révolutionnaire..., in Oeuvres Complètes, op. cit., vol. II, p. 233.

62 Idée générale de la Révolution au XIXe siècle, in Oeuvres Complètes, op. cit., vol. II, p. 343.

63 Oeuvres Complètes, op. cit., vol. II, p. 376. Proudhon critica Louis Blanc. O texto é de um artigo publicado na Voix du Peuple, em 3 de dezembro de 1849, parte de uma série, em que Proudhon polemiza contra Louis Blanc e Pierre Leroux.

64 Pierre Leroux, “Réponse à Proudhon”...,, art. cit. Junto com o Estado (ou o governo), Leroux defende também Deus e a religião.

65 Blanqui, “Le communisme, avenir de la société” in Maintenant, il nous faut des armes, op. cit., p. 199.

66 Idem, p. 206.

67 Idem, p. 209.

68 Blanqui, “Dispositions immédiates“ (em “La Critique Sociale“) in Maintenant, il faut des armes, op. cit., p. 220-221.

69 Idem p. 221.

70 Ib. Grifo de RF.<

71 “Le communisme, avenir de la société“ (1869-1870), in Maintenant, il nous faut des armes, op. cit., p. 199.

72 Idem, p. 207.

73 Idem, p. 214. Jaurès aprecia muito esse elogio surpreendente do “ritmo lento” no pensamento de um radical. Ver suas referências elogiosas a Blanqui, que ele cita amplamente, em Jean Jaurès, Préface aux Discours parlementaires (1904), apresentados por Madeleine Ribérioux, Paris-Genebra, Ressources, 1980, p. 78 e s.

74 Este não é, evidentemente, o programa de Bakunin, que vai representar uma última posição no conjunto de possibilidades (processo pacífico/ processo violento, Estado/ não-Estado, longo prazo/ curto prazo). Bakunin propõe o fim do Estado num prazo não extremo, mas não à maneira de um “anarquista” não-violento como Proudhon; como para Blanqui, o ponto de partida é a insurreição. “A Grande Revolução, que ilustrou o final do século XVIII, pôs de novo a França, na frente. Ela criou um novo ideal, comum à humanidade inteira, ideal de liberdade completa do indivíduo, mas de ordem; esse ideal trazia consigo uma contradição insolúvel, e por isso, irrealizável estritamente política, pois a liberdade política sem igualdade econômica, isto é a liberdade no Estado é um logro“ (Michel Bakounine, Étatisme et Anarchie (1873), traduzido do russo por Marcel Body, introd. e notas de Arthur Lehning, in Oeuvres Complètes de Bakounine, publicado para o Instituto de História Social de Amsterdam por Arthur Lehning, vol. IV, Paris, Éditions Champ Libre, 1976 (1967), E.J. Brill, Leiden, Holanda, p.239, o segundo grifo é de RF). “Quem diz Estado diz necessariamente dominação e, em consequência, escravidão; um Estado sem escravidão, confessada ou ocultada é inconcebível, eis porque somos inimigos do Estado” (Idem, p. 346). Assim, a idéia de ditadura revolucionária seria contraditória (o que Proudhon diz da violência). A contraposição desses textos, mostra o lugar complexo que tem o “anarquismo” na política do século XIX, e se pode dizer, em geral. Ele, de certa forma, vem romper o nosso quadro, porque há anarquistas e anarquistas, compare-se Godwin com Bakunin, passando por Proudhon. A diferença entre Bakunin e Kroptkine será igualmente notável.

75 Godwin, Political Justice..., op. cit., vol. II, p. 114-120.

76 Pierre Leroux, “Aux Politiques. Des principes, ou du législateur”, in Pierre Leroux, Oeuvres (1825-1850), (primeiro tomo, Paris, 1850,) reimpressão, Genebra, Slaktine Reprints, 1978, p. 170-172. (A versão de “Aux Politiques... “nas Oeuvres não coincide inteiramente com a do volume editado por Lacassagne e Abensour).

77 Idem p. 171, grifo de RF.

78 “[Aux Politiques] De la Philosophie et du Christianisme”, in Aux philosophes, aux artistes, aux politiques..., op. cit., p. 177.

79 “De la nécessité d'une répresentation pour les prolétaires” (1832), in Aux philosophes, aux artistes, aux politiques..., op. cit., p. 226.

80 Idem, p. 215.

81 Idem, p. 213.

82 Idem, p. 213-214 nota a. Para os problemas mais gerais concernentes à democracia e à representação em Leroux, ver Armelle Le Bras-Chopard, De l‘égalité dans la différence, le socialisme de Pierre Leroux, Paris, Presses de la Fondation National des Sciences Politiques, 1986, principalmente I, 5, p. 206 e s.

83 Ver a introdução do editor, F.E.L. Priestley, no terceiro volume da Political Justice, op. cit., vol. 3, principalmente p. 14-27. O autor insiste na necessidade de “decriptar” a linguagem, quase utilitarista de muitos textos de Godwin.

84 Godwin, Political Justice, op. cit., vol. 1, p. 125.

85 Hess, “Socialismus und Communismus” in Philosophische und Sozialistische Schriften..., op. cit.,  p. 207. Cf. idem, p. 229. É verdade que esses textos foram escritos relativamente cedo (1843); mais tarde, pelo menos, se tomarmos os artigos mais conhecidos, não se encontra a mesma linguagem. Entretanto, Hess já se declara comunista nesse momento (ver, no mesmo volume, a introdução de Auguste Cornu e Wolfgang Mönke, p. XXXII, e a n. 73, à p. 467).

86 Blanqui, editorial de Candide (3 de maio de 1865), in Maintenant, il nous faut des armes, op. cit., p. 248-9. É verdade que ele escreve o seguinte, visando a história aquém da comunidade: “Pois a inteligência, que faz do homem um deus mortal só tem poder real se ele for moral, isto é útil às massas (...)” E também: “Nossa bandeira, é a igualdade” (Libérateur, nº 1, 2/2/1834), in Maintenant, il nous faut des armes, op. cit., p. 107.

87 Leroux, “De l'individualisme et du socialisme”, art. cit., Aux philosophes, aux artistes, aux politiques, trois discours et autres textes, op. cit., p. 242.

88 Leroux, “Aux philosophes“, art. cit., in Aux Philosophes, aux artistes..., op. cit. p. 212.

89 Idem, p. 86.

90 Leroux, “De l‘Inégalité”, citado por Miguel Abensour, pósfácio a Aux Philosophes, aux artistes,op. cit., p. 304, (No texto de Abensour, a passagem citada é datada de 1845).

91 Em alguns textos a igualdade é quase identificada à justiça, mas a justiça enquanto tal, o que a justiça é na “ordem mais elevada” vem antes. Proudhon escreve também que a justiça “não se subordina a nada, não reconhece nenhuma autoridade fora dela, nem mesmo a liberdade” (Proudhon, De la Justice dans la Révolution et dans l‘Eglise in Oeuvres Complètes, op cit., vol. VIII, 1, introd. de G. Guy-Grand, estudo de Gabriel Séailles, notas de C. Bouglé e J.-L. Puech, p. 224, grifo de RF).

92 Idem p. 223. Proudhon remete a Kant em mais de uma passagem, e se declara seu discípulo. Ver Théorie de la Propriété, op. cit., p. 202. Na realidade, ele começa com um flirt com o hegelianismo (um hegelianismo, em parte ilusório) e depois passa a Kant. Não vou tentar analisar aqui, mais de perto,  o significado dessa passagem.

93 Proudhon, De la Justice dans la Révolution et dans l‘Eglise in Oeuvres Complètes, op cit., vol. VIII, p. 423.

94 Proudhon, Théorie de la Propriété, op. cit., p. 217, grifo de RF.

95 Proudhon, De la capacité politique des classes ouvrières in Oeuvres Complètes, op. cit., vol. 3 (introd. e notas de Maxime Leroy), p. 402. A noção de mutualidade em Proudhon aponta tanto para a reciprocidade e equação nas trocas, como para a idéia de cooperação e os projetos que ela inspira. Mas o primeiro aspecto parece ser logicamente anterior ao último: “(...) a mutualidade, segundo a sua etimologia, [consiste] antes na troca de bons ofíciais e de produtos do que no agrupamento das forças e na comunidade de trabalhos” (Idem, p. 142).

96 Idem, p. 146.

97 Ver Idem, p. 149-150.

98 Idem, p. 154.

99 Em Lassalle, muito influenciado por Fichte, já se tem alguma coisa que vai no sentido de uma fundação do socialismo, porém tratar-se-ia antes de uma fundação jurídica, não de uma fundação ética. Ver a respeito, o livro de Bernstein sobre Lassalle, que só obtive, em linha, numa tradução francesa,: Eduard Bernstein, Ferdinand Lassalle, réformateur social, trad. de Victor Dave, Paris, Marcel Rivière, 1913, documento eletrônico, Bibliothèque Nationale de France, catálogo, ref. NUMM 66006.

100 Bernstein, “Das realistische und das ideologische Moment im Socialismus” (1898), in Zur Geschichte und Theorie des Socialismus, Berlim/Berna, Akademischer Verlag für sociale Wissenschaften Dr John Edelheim, 1901, p. 277.

101 Bernstein tem Proudhon em boa conta. Ver, por exemplo, “Dialektik und Entwickelung” (resposta a um artigo de Kautski), (Die Neue Zeit, 1898-1899), in Zur Geschichte und Theorie des Socialismus, op. cit., p. 359. Bernstein escrevera anteriormente sobre Proudhon na Neue Zeit.

102 Eduard Bernstein, Die Voraussetzung des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokatie (1899), introd. e posfácio de manfred Tetzel, Berlim, Dietz Verlag, 1991, p. 211. “Kant e não cant”, era a palavra de ordem de Bernstein. Voltarei, mais adiante, ao problema do anti-hegelianismo de Bernstein.

103 Bernstein, “Das realistische und das ideologische Moment im Socialismus” (1898), in Zur Geschichte und Theorie des Socialismus, op.cit., p. 263 (nota introdutória à primeira publicação do artigo).

104 Idem, p. 277.

105 Bernstein, “Drei Antworten auf ein Inquisitorium” in Zur Geschichte und Theorie des Socialismus, op. cit. p. 294-295.

106 A ser publicada em Fevereiro, número 5.

107 Para a crítica de Leroux ao Contrato..., ver “Discours sur la Docrine de l'Humanité” (Revue Sociale, 1847) in Anthologie de Pierre Leroux. op. cit., p. 318. Para a crítica de Proudhon ao Contrato..., ver Proudhon, Idée Générale de la Révolution aux XIXe siècle, in Oeuvres Complètes, op. cit., p. 189-195, cf. Pierre Ansart, Socialisme et Anarchisme..., op. cit., p. 244. Para a crítica da idéia de contrato social em Godwin, ver os capítulos II e III do Livro III, do Political Justice... (op. cit., vol. 1, p. 183 e s.); para a opinião de Godwin sobre Rousseau, e particularmente sobre o Contrat Social, ver id, libro V, cap. XV, (vol. 2, p. 128-130).

108 Leroux, crítico literário, era grande amigo de George Sand, e admirador de Byron.

109 Num recente colóquio de Cerizy, Les Socialismes, doctrines fondatrices et lectures contemporaines, (junho/ julho de 2011, dirigido por Juliette Grange e Pierre Musso), um jovem pesquisador, Jean Numa Ducange, comentando a recepção dificil na França do projeto dos Anais Franco-Alemães de Marx e Arnold Ruge, observava o quanto o ateismo dos comunistas alemães foi um fator que contribuiu para o fracasso do projeto, na sua dimensão internacional.

110 Isso não quer dizer que os socialistas não tenham as suas taras e graves: basta falar na misoginia fanática de Proudhon. Mas eles não vão, em geral, na direção de um pré-totalitarismo.

111 Sobre 48, ver François Furet, La Révolution, de Turgot à Jules Ferry 1770-1880, Paris, Hachette, 1988, cap. 8, “La deuxième République”, p. 381 e s.

112 Bernstein votou os créditos de guerra, mas logo se arrependeu, e sempre considerou sua posição em agosto de 14 como um grave erro. Ele viria a fazer parte do Partido Social-Democrata Independente, onde estariam também Kautski e até Luxemburgo.

113 Ver, a respeito da burocratização, o livro clássico de Robert Michels Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie, Untersuchungen über die oligarschischen Tendenzen des Gruppenlebens (1911), Stuttgart, Alfred Kröner Verlag, 1989. No início de um capítulo que escreveu especialmente para a primeira edição em inglês (1915) incorporando os dados da crise de agosto de 1914, Michels resume com muita força e clareza as suas teses (ver R. Michels, Political Parties, A sociological Study of the Hierarchical Tendencies of Modern Democracy, trad de Eden e Cedar Palo, introd. de S.M. Lipset, N.York-Londres, The Free Press, VI, 3, “Party-Life in War-Time, p. 357 e s.). Robert Michels descambaria politicamente, mais tarde, aderindo ao fascismo mussoliniano.