revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Ana PORTICH 1

o jusnaturalismo e a expressão do sentimento no teatro

 

Resumo

No momento em que Grócio publica suas teorias sobre o direito natural, o teatro tematizava diversos assuntos abordados no Direito da guerra e da paz. Na Espanha, Lope de Vega defendia o tiranicídio em peças como Fuenteovejuna e Peribãnez ou O comendador de Ocanã, enquanto Grócio limitava o direito de resistência aos casos de ameaça de morte. Cervantes via na iniciativa de Lope de Vega uma perigosa concessão política ao vulgo, implicando a ocultação da técnica empregada por atores e dramaturgos, e a consequente exacerbação do apelo emocional do teatro. Grócio, por sua vez, demanda que o direito se expresse em linguagem racional, na medida em que a lei só se afirma como sanção coletiva – ao passo que o sentimento se encerra na interioridade.





O direito da guerra e da paz, que Grócio publica em 1625, notabiliza-se por reconhecer, pela primeira vez na história do direito moderno, o jus gentium ou direito internacional, fundamental naquele momento – dada a carência de legislação referente ao assunto – para a resolução de conflitos em torno da conquista do Novo Mundo.2 Para compreender o jus gentium, no entanto, é preciso abordar o paradigma jurídico que, segundo Grócio, está em sua base: o jusnaturalismo.

Grócio parte do princípio de que todo direito é natural, embora consista em um agenciamento racional, regulamentando a convivência em sociedade. Nessa versão, a sociabilidade é uma tendência natural que a razão apenas traduz em um sistema de leis. Grócio contesta assim teorias que desde muito definiam o estado de natureza como discórdia generalizada3, o que situa a guerra em um campo pré-jurídico, isento de responsabilidades e sanções. Se o direito e a sociedade são considerados antinaturais e a guerra um retorno à agressividade primitiva, qualquer atrocidade dentro ou fora da Europa, e mesmo o genocídio de povos inteiros seriam justificáveis como algo atávico, impossível de conter nos estreitos limites da razão.

Segundo Grócio, o direito pode ser dito de natureza porque o homem "possui nele mesmo um pendor dominante que o leva ao social [...]. A natureza do homem que nos impele a buscar o comércio recíproco com nossos semelhantes, mesmo quando não nos faltasse absolutamente nada, é ela própria a mãe do direito natural".4As leis podem ser verificadas mas, não tendo como princípio gerador o homem, e sim a natureza, não foram instituídas por ninguém. De modo que sua origem não é determinada pela utilidade que eventualmente possam ter para as pessoas que as cumpram.

Já o direito civil, também derivado da tendência natural à sociabilidade, difere no entanto do direito natural por 1) ser promulgado por autoridades, 2) visar a obter vantagens para toda a comunidade ou para alguns. O direito civil distingue-se por ser positivo e referir especificamente um povo, enquanto o jus gentium diz respeito à inter-relação de todos os povos ou parte deles. Ao passo que o direito civil é pautado por leis escritas e tem utilidade para "cada associação de homens em particular", o direito natural, prescrito pela natureza, e o jus gentium, estabelecido pelo consenso dos povos, são constituídos por leis "perpétuas e válidas para todos os tempos".5

Enquanto os pleitos decididos em tribunais, e não à mão armada, obedecem ao direito positivo, apropriado para tempos de paz, o jus gentium vige tanto na paz quanto na guerra, ao contrário do que propõem juristas referidos por Grócio, segundo os quais na guerra ocorre a suspensão de todo direito.6É de direito, portanto, que a força das armas deva ser empregada ao se esgotarem as negociações por via judicial.

O direito natural, tal como é entendido por Grócio, somente pode ser captado por meio da razão. Antagonistas diriam que esse contato se estabelece pela emoção, pois a razão visa a ocultar o direito natural, dado seu comprometimento com injunções políticas particulares ou com o direito positivo. "O direito natural nos é ditado pela reta razão, que nos leva a conhecer que uma ação [...] é ou não conforme à natureza racional"7, ou seja, fazer justiça não depende de um movimento interno que nos leve a moderar as paixões, mas implica exercer uma ação sobre objetos (exteriores) que, eles sim, provocam afetos (interiores).

No âmbito das artes, em especial a preceptiva do ator, a emergência do direito natural como paradigma jurídico corresponde ao incremento do estímulo sensorial e da atração sentimental exercida por atores sobre os frequentadores de teatro. O jurista e teólogo dominicano Domingo de Soto (1494-1560) afirmava que “os ditames da lei da natureza [...] já foram ‘inscritos em nosso coração’ por Deus”.8 Portanto, devido à natureza decaída do homem, a razão muitas vezes pode se equivocar, ao passo que o sentimento, mesmo sem ter por que, sempre será capaz de reconhecer a verdade.

A preparação do ator preceituada na tratadística do espetáculo que se constitui então dá muito mais destaque ao sentimento do que aos aspectos da representação que denotam o emprego da razão. O discurso lógico trava embate com estágios pré-conceituais da fala, responsáveis por passar a impressão de arrebatamento e descontrole. À linguagem natural vincula-se a expressão das paixões, ao passo que a linearidade discursiva dá a ver artifícios racionalmente concebidos. Nesta acepção das artes cênicas, representar um papel com naturalidade consiste em fazê-lo com sentimento.

Isso explica toda uma querela em torno do rebaixamento de tom ocorrido no teatro a partir do século XVI. O predomínio do sentimento fez florescer gêneros dramáticos marcados por figuras de linguagem, tais como o entremez, entreato ou intermezzo. Miguel de Cervantes, no prólogo de Oito Comédias e Oito Entremezes publicados em 1615, mesmo ano em que saiu a segunda parte de Dom Quixote, dizia que "a linguagem dos entremezes é própria das figuras que neles se introduzem."9Uma dessas peças curtas, apresentadas durante intervalos de outras de maior extensão, Cervantes denominou O Retábulo das Maravilhas.10Maravilhas realizadas por comediantes que se aproveitavam da parvoíce de espectadores provincianos, descrevendo cenas que diziam estar ocorrendo no palco, mas ninguém além deles conseguia ver. As próprias autoridades do lugar não ousavam desmentir os comediantes, com medo de incorrer em necedade e sobretudo em heresia.

Em contrapartida, Cervantes denuncia como herética a própria vulgarização do espectador pois, embora os assuntos humanos estejam abaixo das coisas divinas, nem por isso os homens, dotados de intelecto por Deus, devem se rebaixar, comportando-se como bestas ou reduzindo-se à condição de "Repolho" e "Capacho" – nomes de personagens da peça. Peca o público por excesso de credulidade, como pecam, por má-fé, o dramaturgo e o intérprete.

A questão teológica andava de par com as razões políticas que levaram Cervantes a se mostrar contrário ao anti-intelectualismo crescente no teatro da época; os recursos técnicos de incremento do espetáculo, produzindo forte impacto sensorial e emocional, constituíam uma ameaça ao bom funcionamento da sociedade de corte. O principal alvo das censuras de Cervantes foi o dramaturgo Lope de Vega, que elegera o vulgo como público preferencial. Conquanto seus oponentes desaprovassem esta opção, para Lope de Vega o termo 'vulgo' não tinha conotação pejorativa, justamente por referir um rebaixamento política e teologicamente lícito.

Lope de Vega, em sua peça Peribáñez ou o Comendador de Ocaña, publicada em 1614, faz uma apologia daquele que, embora simples camponês, é "homem de raça pura, duma raça que não está manchada de sangue mouro ou judeu".11 fiança que garante ao lavrador Peribáñez defender a honra de sua esposa, matando o lúbrico comendador a quem deveria obediência. O rei de Espanha, magnânimo, absolve Peribáñez desse crime, julgando mais grave a conduta desregrada do comendador do que o assassinato de um nobre, cometido pelo plebeu Peribáñez.

O tiranicídio também foi tematizado por Lope de Vega em 1618, na peça Fuenteovejuna, cidade espanhola onde, em 1476, havia ocorrido o seguinte caso verídico: o senhor de Fuenteovejuna traiu os reis católicos Fernando e Isabel para aliar-se ao pretendente à coroa portuguesa. Além disso, "violava as donzelas e roubava os bens" dos habitantes de sua comarca. Assim, ocorre um motim popular apoiado pelo próprio alcaide, e a cidade decide em assembléia que "Tiranos e traidores morram!" Por fim, o senhor de Fuenteovejuna é trucidado pelos amotinados mas os Reis Católicos os absolvem, por terem padecido "excessiva tirania e insuportável crueldade".12

Ao estabelecer um contato imediato com a platéia pelo impacto de sua expressão corporal e mediante o emprego da oralidade pré-discursiva, o comediante escolhe o vulgo como melhor receptor. Mais do que provocar reações puramente físicas, limitadas à efusão sensorial do espetáculo barroco, os sentimentos evocados em cena têm como finalidade produzir significados para aquela faixa de público.

O dramaturgo que abusa de inversões e expressões com sentido figurado, a fim de maravilhar o espectador, ou até mesmo subverte momentaneamente as regras e desarticula os referenciais do espectador, incorre, sim, em desobediência às autoridades, mas às autoridades tais como são definidas por Lutero: "nossa tarefa inicial consiste em [encontrar] um firme alicerce para a lei secular e a espada, de modo a remover qualquer possível dúvida quanto a ambas estarem no mundo como resultado da vontade e da providência divinas".13

Lutero defende essa tese com base na seguinte passagem da Epístola de São Paulo aos Romanos – "Cada um se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação".14Os contrarreformistas, no entanto, diziam que Deus havia dotado os homens da capacidade de estruturar a vida política sem necessidade de Sua interferência, o que implicou a defesa católica da laicização política.

Note-se que em ambas as peças de Lope de Vega a reação popular se volta contra príncipes menores, nunca contra os reis de Espanha – a autoridade central –, amparados pelo direito divino. Apenas no tocante às pequenas autoridades, os reinos católicos continuavam refutando a premissa luterana de que toda autoridade política emanasse de Deus.15

À laicização da política incentivada pela Contrarreforma correspondeu a vulgarização do entretenimento e o reflorescimento do teatro profano ocorridos no século XVI. Uma opção estilística semelhante, de atenuação à monumentalidade, deu-se no âmbito da catequese no sentido estrito. Desde a primeira metade do século XVI os autos sacramentais traduziam dogmas do catolicismo em linguagem acessível, muitas vezes chula, pelo pressuposto contrarreformista da Queda como traço fundamental da humanidade. Na Farsa Teologal, do padre espanhol Diego Sánchez de Badajoz, um teólogo dialoga com um campônio, mais especificamente um pastor como os da Natividade, o que permite defini-la como auto de Natal. Escritas entre 1540 e 1550, as farsas de Diego Sánchez tratam de assuntos como a tentação de Adão e Eva, mas não em chave sublime; tome-se como exemplo a pergunta que faz o simplório pastor da Farsa Teologal: "Arre! Como foram crer mais no diabo que em Deus?"16

Entretanto, simultaneamente, começaram a ser tomadas medidas anti-heréticas contra a vulgarização do teatro sacro. Em Paris, desde 1548 as moralidades e mistérios encenados pela Confraria da Paixão foram proibidos por decreto parlamentar. Católicos e protestantes já vinham denunciando a lascívia dos espetáculos da Paixão de Cristo, mas a medida legal tomada em 1548 coincide com a instauração do Concílio de Trento (1545), e com a declaração de guerra da França contra a Inglaterra anglicana, o que permite defini-la como medida contrarreformista. Sintomaticamente, daí em diante a sala de espetáculos da Confraria da Paixão francesa será arrendada apenas para apresentações de teatro profano.17

Ocorre aqui a cisão do teatro sacro e do profano, correspondente a uma delimitação semelhante no âmbito da política e da teologia. Mas, segundo o especialista em jusnaturalismo José Reinaldo de Lima Lopes, a diligência contrarreformista pela separação do poder secular e eclesiástico “não foi realmente bem-sucedida – para os padrões contemporâneos – nem mesmo na Península Ibérica, pátria dos católicos constitucionalistas, ferrenhos opositores do luteranismo absolutista. Tanto a Inquisição espanhola quanto a portuguesa adquiriram uma tal independência da Sé romana, que se converteram de fato, senão de direito, em órgãos de Estado: o grande inquisidor não era nomeado nem pela Igreja nacional e nem por Roma, mas pelo próprio rei.”18

Em outros pontos do mundo católico também malograva a tentativa contrarreformista de discriminar o poder temporal do poder religioso, uma vez que "a França não permitiu a publicação oficial dos decretos" do Concílio de Trento, "e ainda em 1615, quando a assembléia do clero francês deliberou conformar-se às normas tridentinas, o rei de então, Luís XIII, não convalidou a decisão."19Segundo Norbert Elias, a reação da monarquia francesa contra determinações papais remonta ao reinado de Francisco I (1515-1547), que "garantira para si, por meio de concordata, o controle sobre grande parte dos lucros eclesiásticos na França."20 Para tanto, aboliu as eleições para bispados, abadias e priorados, conferiu a si mesmo o direito de nomeação, e concedeu à nobreza terras expropriadas da Igreja. Mais de cem anos depois, Luís XIV ainda subordinava às suas ordens a Igreja galicana.



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O fortalecimento do poder temporal, apartado de assuntos religiosos, deu a ver a vulnerabilidade de todo governante frente à perda da caução divina, o que paradoxalmente adiou a laicização da política. Por outro lado, uma vez que lhe foi concedido o direito de resistir à tirania, a força do vulgo foi levada à cena, dando-se opção preferencial à expressão do sentimento, indicativa de pendores naturais – de modo a causar na platéia efeitos inesperados, que não reforçam a idéia de uniformidade, mais apropriada à divindade que à humanidade. A promoção do jusnaturalismo a esse patamar de destaque derivou do pressuposto de que à esfera civil, que abrange o entretenimento, não se apliquem leis divinas mas, sim, leis naturais.

O jusnaturalismo de Grócio pende muito mais para o intelecto do que para o sentimento. Isso porque o direito natural tem para Grócio sentido ativo, não passivo, donde sua rejeição a qualquer teoria que o vincule ao páthos. Razão pela qual o direito natural se expressa no nível da linguagem conceitual – responsável pela coesão social –, ao invés de se erigir inexpressivamente no interior de cada indivíduo, ao modo do sentimentalismo lírico.

Mesmo o direito divino, prescrito nas Escrituras, tem como pedra de toque o direito natural; por ser "perpétuo e imutável, não é possível que Deus, que nunca é injusto, tenha podido ordenar alguma coisa contrária a esse direito".21Nesse sentido, o direito divino corrobora a interdição à guerra embutida no primeiro princípio natural, que é conservar a vida e o corpo, bem como a posse de bens úteis à existência.

Aqui, ao mesmo tempo em que Grócio legitima a propriedade privada, considera ilícitas a insurreição de particulares contra autoridades públicas e a defesa de interesses privados mediante o emprego da violência. Negócios privados são regidos pela magistratura judicial, ou seja, a autoridade pública decide os processos movidos contra particulares. À magistratura civil cabem questões políticas internas ou externas, e somente a ela é permitido exercer a força.

Quando os governantes ordenam algo que infrinja o direito natural e os mandamentos de Deus, é permitido aos súditos não executar suas ordens, mas jamais reagir com violência. Particulares podem no máximo revidar ataques que não partam da autoridade pública, como o de um ladrão, pois, se o “direito de resistir subsistisse em cada cidadão privado, não teríamos mais uma sociedade civil".22 Em vista do bem comum, na sociedade civil não há reciprocidade entre o direito dos governantes e o dos súditos. A alienação tem como finalidade salvar a vida até mesmo dos que se rebelam contra ela. Em termos gerais, a lei civil dita a uns o direito ativo e, a outros, o direito passivo.

Levando em consideração a particularidade dos casos e não a generalidade da lei, o direito natural autoriza os súditos a reagir quando houver risco de vida. Abre-se assim uma brecha na lei civil, preservando a autonomia da pessoa, qualquer que seja seu status, governante ou governado. Do mesmo modo, ainda que particulares tenham papel ativo na defesa à propriedade, esse direito cessa em caso de vida ou morte, razão pela qual "não se deve matar um ladrão só porque subtraiu algum bem"23, adverte Grócio.

As convenções que instauram direitos como o de propriedade não podem ser estabelecidas individualmente, e sim coletivamente, pois a vontade portadora de um direito, mesmo que seja o de propriedade privada, precisa ser reconhecida por todos para ser obedecida. Toma-se aqui o partido da boa natureza, contra a natureza corrompida e decaída do homem, referente esta, segundo Grócio, somente ao indivíduo. Em relação à coletividade, mantém-se o pendor pelo bem que se expressa na intercomunicação, traço distintivo da natureza humana. Com efeito, "não é conforme à natureza humana, que não pode conhecer os atos senão por sinais exteriores, atribuir força de direito aos simples atos interiores da vontade."24

Donde se conclui outra lei básica da natureza humana, além do direito à vida, qual seja, a tendência à sociabilidade, independente até mesmo do direito divino. Para Grócio, "na origem os homens não se encontram reunidos em sociedade civil para obedecer a um mandamento de Deus, mas o fizeram espontaneamente, levados a essa associação pela experiência da fraqueza das famílias isoladas e desarmadas contra a violência por seu isolamento". Aqui a tendência à sociabilidade é uma extensão do direito à vida. Além disso, Deus, por ser favorável à humanidade, aprova que se institua a lei, mas "se dispõe a aprová-la somente como humana e do ponto de vista humano"25, sem interferir em nenhuma das instâncias jurídicas (natural, privada, civil e dos povos).

Enquanto Grócio se empenha por livrar os negócios públicos e privados da sujeição à cruz, ele faz, entretanto, com que todas as relações humanas se subordinem ao direito de propriedade. Somente o risco de vida o anula; afora isso, porque o marido é, por natureza, chefe da esposa, ela deve lhe prestar servidão voluntária; um pai pode vender seu filho ou dá-lo como penhor; no limite, "é permitido a todo homem reduzir-se à escravidão privada em proveito próprio".26

Na justiça natural, nada consta contra esse tipo de escravidão, nem contra aquela que resulte de uma condenação por delito, ou da captura de inimigos durante o saque de uma cidade – quanto aos despojos de guerra, "o direito das gentes colocou os homens na mesma escala das coisas".27Todavia, há direito de uso sobre escravos, não de abuso. Sua vida não pode ser empenhada, tampouco a de um homem livre, pois ninguém detém direitos absolutos, de vida ou morte, sobre sua própria existência, a ponto de transferi-los ao Estado ou a particulares, na medida em que "a vida de um homem deve ser de mais alto preço que uma coisa que nos pertence".28Por conseguinte, no plano privado, aos escravos a fuga é lícita se o rigor do dono for excessivo. Grócio chega a pleitear que "os próprios serviços [sejam] exigidos com moderação e se deve ter consideração com bondade à saúde dos escravos".29

Quanto à esfera pública, em casos extremos e quando se esgotarem todas as possibilidades de acordo amigável, aquele que corre risco de vida pode se evadir e até matar. Ao colocar o preço da vida acima do direito de propriedade, Grócio não consente com a total heteronomia de subordinados, na vida privada, e de súditos, na vida pública, mas nem por isso se torna precursor da moderna acepção de sujeito de direito, aplicada universalmente e independentemente de condição, nascimento ou estado. Não sendo condição natural mas convenção coletiva, a partir do momento em que se instaure a lei civil, a sujeição será obrigatória e não poderá ser anulada com o rompimento do acordo, sequer por parte dos donos de escravos ou dos soberanos.

O direito de natureza, segundo Grócio, dá certa margem de autonomia ao homem. Aplica-se entretanto somente em último caso, contra uma ação violenta que parta do outro. No estado civil a passividade é imperante, cabendo a cada um desempenhar um papel preestabelecido na hierarquia sociopolítica, pois a preservação da vida justifica a instituição e a defesa da propriedade privada como garantia de insumos vitais, e o emprego de violência contra aqueles que a ameaçam, tais como os inimigos de um povo. O próprio Grócio admite que, em última instância, a defesa da propriedade por meio da violência entra em contradição com o direito de natureza básico, que postula a paz como situação mais propícia à vida.30



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Pela defesa da laicização do direito, Grócio torna-se ainda adversário do proselitismo católico que sancionava a conquista do Novo Mundo e o extermínio de populações indígenas. Porque o reino de Cristo não é deste mundo, a evangelização não se faz com soldados. Tampouco se justifica que índios sejam punidos por adorar os astros, os elementos, espíritos ou objetos. É iníqua a tomada de suas terras e a escravização desses povos por reis católicos, porque até então o cristianismo não fora revelado aos índios.

Por outro lado, iniciada a catequese, que ela se faça pela força da palavra, e não das armas. Mesmo assim, a conversão ao catolicismo faz parte de um projeto político que Grócio considera espúrio: "É igualmente iníquo reivindicar para si, a título de descoberta, coisas que são ocupadas por outros [...], pois a descoberta não ocorre senão com relação a coisas que não pertencem a ninguém".31 Contra a lei natural que prega o respeito à propriedade alheia, jurisconsultos poderiam apelar ao direito internacional para inocentar essa invasão de terras. Grócio entretanto objeta, com base em Santo Agostinho, que "oprimir os povos que em nada vos inquietaram, e isso pelo único desejo de reinar"32, é atitude de piratas, desabonada pela comunidade dos povos.

Com efeito, O Direito da Guerra e da Paz exorta à laicização de todo direito pois, na cristandade, cada um dos governantes "foi escolhido como ministro para governar homens"33, e não anjos ou demônios, nem deuses.































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ilustração: Rafael MORALEZ






1 Docente do departamento de Filosofia da UNESP-Universidade Estadual Paulista e doutora em Filosofia pela USP. É autora de A arte do ator entre os séculos XVI e XVIII – Da commedia dell’arte ao Paradoxo sobre o comediante (editora Perspectiva).

2 Cf. “Introdução” de Antônio Manuel Hespanha a Grotius, Hugo. O direito da guerra e da paz. 2 Vol. Tradução de C. Mioranza. Ijuí: UNIJUÍ, 2004, p. 24: o tratado de Grócio “levanta questões que continuavam a interessar ao mundo colonial português, nomeadamente nas relações entre Portugal e Holanda que, neste preciso momento, passam por uma situação crítica. Considerados como materialmente idênticos aos do rei de Espanha, os interesses portugueses, quer na navegação, quer nas conquistas, começam a ser disputados pelos holandeses”.

3 Grócio (Op. cit., p. 37) parte do princípio de que a natureza não “impele todo animal somente para suas próprias utilidades”, fazendo uso de violência, mas, no caso dos homens, ao estabelecimento de uma comunidade pacífica.

4 Grotius, H. Op. cit., pp. 38 e 43.

5 Idem, pp. 44 e 48-49.

6 Cf. principalmente os “Prolegômenos”. In Grotius, H. Op. cit., pp. 34 ss.

7 Idem, p. 79. Cf. também p. 60.

8 Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de. R. Janine Ribeiro e L. Teixeira Motta. São Paulo : Companhia das Letras, 1996, p. 428.

9 Cervantes Saavedra, Miguel de. "Prólogo" de Ocho comedias y ocho entremeses. In Sánchez Escribano, F. & Porqueras Mayo, A. Preceptiva dramática española. Madri: Gredos, 1972, p. 174.

10 Retábulo significa aqui espetáculo teatral de títeres ou marionetes. Em sua acepção original, retábulo eram as placas de madeira em que se esculpiam ou se pintavam cenas da História Sagrada. Por analogia passou a nomear a estrutura onde marionetes representavam histórias sacras, ou mesmo outras. Cf. nota de Nicholas Spadaccini in Cervantes Saavedra, M.de. Entremeses. Madri: Cátedra, 1990, p. 215.

11 Lope de Vega Carpio, Félix. Peribáñez e o Comendador de Ocaña. Tradução de N. Correia. Lisboa: Civilização Editora, 1967, p. 119.

12 Idem. Fuenteovejuna. In op. cit., pp. 320, 343.

13 Lutero, Martinho. Sobre a autoridade secular. Tradução de H.L.de Barros e C.S. Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 8.

14 Romanos 13, 1-2. In A Bíblia de Jerusalém. Tradução de C. Vendrame. São Paulo: Edições Paulinas, 2002.

15 Cf. Skinner, Q. Op. cit., p. 393: “As doutrinas de Lutero revelaram-se tão úteis para esses propósitos que seus argumentos políticos mais característicos acabaram repetidos até mesmo pelos maiores defensores católicos do direito divino dos reis.”

16 Sánchez de Badajoz, Diego. Farsa teologal. In Farsas. Madri: Cátedra, 1985, vv. 349-350, p. 96.

17 Cf. Scherer, Jacques. "Le Théâtre Phénix". In Jomaron, J.de (org.). Le théâtre en France. Paris: Armand Colin, 1992.

18 Lopes, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário da primeira metade do século XIX. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 259.

19 Prandi, Alberto. L'Europa centro del mondo. Vol. I. Turim: Società Editrice Internazionale, 1980, p. 226.

20 Elias, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de A. Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 177. Descrições satíricas do clero, muito em voga naquele momento, serviam de justificativa para essa expropriação, conforme se percebe nos escritos de Brantôme (1540-1614): "[Francisco I] achava que era melhor recompensar os homens que o haviam servido proveitosamente, usando os bens expropriados da Igreja do que deixar tal riqueza para esses monges preguiçosos, gente que, dizia ele, não servia para nada que não fosse beber, comer, esbaldar-se, jogar, e também para tecer cordas de tripa, construir ratoeiras ou capturar pardais." Apud Elias, N., op. cit., p. 178.

21 Grotius, H. Op. cit., p. 95.

22 Idem, p. 234.

23 Idem, p. 301.

24 Idem, p. 367.

25 Idem, p. 250.

26 Idem, p. 177.

27 Idem, p. 1177.

28 Idem, p. 1064.

29 Idem, p. 1302.

30 Ver “Conclusão”, in Grotius, H. Op. cit., da página 1474 em diante.

31 Grotius, H. Op. cit., p. 930.

32 Agostinho. De Civitate Dei. Apud Grotius, H. Op. cit., p. 927.

33 Grotius, H. Op. cit., p. 1476.