revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Pierre MAGNE & Claire TILLIER

socialismo em tempos de crise

 

tradução de Alexandre Carrasco

 


A tendência é pelo aquecimento da temperatura histórica. Nas cidades e no campo dos países árabes, no Canadá, nos Estados Unidos, na Espanha, na Grécia, etc., os povos fazem ouvir sua voz. Essas mobilizações podem ser locais e setoriais, inspiram, porém, o entusiasmo de qualquer espectador. Ainda que se deem realmente, a recepção que se lhe faz é um signo, signo do desejo geral de não mais deixar mecanismos gigantes conduzir cegamente os assuntos coletivos. É nesse quadro geral que é necessário inscrever as recentes transformações políticas francesas para determinar se, desse poder inovador, elas possuem algo.

Com a ascensão à presidência da República de François Hollande, é a segunda vez, desde de 1958, que o socialismo está no poder na França. Todas as alavancas da política francesas estão as mãos dos representantes do partido socialista, que detém uma maioria absoluta na Assembleia nacional e na maioria das regiões, dos departamentos e das grandes cidades. Nenhum obstáculo institucional se impõe diante daqueles que prometem responder de modo original à crise econômica e ao abatimento dos franceses. Alguma coisa está prestes a ocorrer? Ainda que a maioria dos governos europeus estejam à direita e que todos se representem e se submetam à crise como a um destino inevitável, serão os socialistas franceses a quebrar a morna continuidade da gestão política?

 

Que temos direito de esperar do partido socialista francês?

 

Ao programa de campanha do candidato Hollande não faltaram medidas que entusiasmam, tal como uma grande reforma fiscal incluindo a criação de uma “faixa suplementar de 45% para os ganhos superiores à 150 000 euros por cota”, a criação de 60 000 postos de trabalho em cinco anos no setor da educação ou ainda a regulação dos aluguéis nos bairros e regiões em que os preços são excessivos. Mas é também verdade que todos os analistas concordam em dizer que o modo de financiamento dessas medidas está longe de ser claro. Para além das promessas, o programa socialista oscilava entre o vago e o inverossímil. Parece ter sido, aliás, essa indeterminação que permitiu a um eleitorado heterogêneo e multicolor confluir à candidatura de Hollande.

Na realidade, as margens de manobra desse novo governo que promete começar por economizar para, em seguida, redistribuir e de colocar o rigor necessário a serviço da justiça são minúsculas.

Todos os indicadores oficiais mostram uma França sinistrada. No curto prazo, o crescimento é próximo de nada, o desemprego dispara, os planos sociais vão cair em avalanche e o poder de compra conhece sua mais vertiginosa queda desde 1984. Os socialistas poderão, sem dúvida, nos reconfortar, por algum tempo, com o mito do reajusto suave, mas a redução dos déficits públicos implicará forçosamente e rapidamente um regime de austeridade repetindo aqueles tristemente famosos anos de 1983-1984 que os socialistas batizaram de “parênteses”. Sabe-se que nunca mais se fechou tal parênteses.

O governo socialista não poderá evitar instaurar um regime draconiano. Dois dias se passaram do resultado da eleição para o que os socialistas revisassem certos anúncios. Não era, talvez, tão oportuno assim congelar o preço da gasolina. A regulação da remuneração dos dirigentes de empresas talvez não pudesse se dar imediatamente. A aposta de Hollande é que poderá inscrever sua política no longo prazo, fazendo que seu governo cuide das tarefas ingratas do curto prazo. Nunca a ala progressista do tabuleiro político se beneficiara de tantos meios de ação, mas raramente suas margens de manobra teriam sido tão reduzidas.

Não há razões sólidas para esperar que a Presidência socialista produzirá um verdadeira ruptura. No plano histórico, a ideia de que um sucesso eleitoral da esquerda é propício a uma abertura de espaço para a mobilização e à ação política popular é falsa. Uma exceção, a que notar: a onda de greves e de ocupações que se seguiu ao estabelecimento do governo da Frente Popular em 1936. Quanto à eleição de Mitterrand em 1981 (que François Hollande não cessou, aliás, de imitar), ela não fez suceder senão uma lenta decomposição da esquerda. Ela trouxe uma privatização sem precedentes, coabitações estéreis, a criação de centros de retenção para estrangeiros, o crescimento da frente nacional para enfraquecer a direita, o reconhecimento de questões que ela põe com boas questões, a continuação de todos os empreendimentos coloniais na África, etc.

No plano estrutural, o limite contra o qual não se cansará de martelar o novo presidente é de granito. A esquerda que acaba de ser eleita é uma esquerda parlamentar de alternância, que divide com a direita um certo número de princípios intangíveis. O capitalismo é a base comum admitida de toda política parlamentar e seu jogo formal de alternância. “A liberdade de empreender e se enriquecer sem limites, o respeito pelo direito à propriedade, o apoio militar às expedições que faturam alto, a confiança nos bancos, a soberania dos mercados, o direito acordado às grandes sociedades privadas de comprar todos os meios de propaganda, eis a matriz das “liberdades” consensuais. São elas que os partidos do governo se engajam tacitamente a respeitar”. (Alain Badiou, Sarkozy Pire que prévu. Les autres prévoir le pire. Circonstances, 7, Editions Lignes, 2012). Em outros termos, o terreno de ação para os partidos de alternância não está aberto para as aspirações e decisões dos povos, mas submetido a um universo de objetividade ideais que prescrevem à política o que ela pode e o que não pode. São todas essas notações, todos esses índices e taxas que caem sobre as populações como humores caprichosos de um Deus tacanho. Cada manhã, nossos Estados aguardam receber sua nota, temem ser os maus alunos que se verão obrigados a demitir seus professores e suas enfermeiras. Qualquer que seja a obstinação de nosso presidente socialista, ele obedecerá a essa racionalidade abstrata que leva o nome de “realidade econômica”, essas racionalidade tão sensata que é capaz de atribuir uma nota máxima a Estados em que a vida é mortífera. Face à objetividade econômica, a política que aceita dela os princípios acaba sempre por se reduzir a um voluntarismo impotente antes de se liquefazer em bons sentimentos.

 

O pensamento identitário e suas raízes.

 

O socialismo conseguirá talvez limitar as loucas desigualdades engendradas pela globalização econômica. Mas ele nunca atacará os mecanismos econômicos em sua raiz. Ele enquadra, ele ajusta. Ele é da ordem da gestão. Não se vê, então, verdadeiramente, como ele poderia bloquear o movimento de numerosos franceses e europeus em direção ao nacionalismo. Em toda a Europa as direitas extremistas conquistam as almas e as vagas das assembleias. Eles estão mesmo bastante bem representadas na Áustria, na Holanda, na Hungria, na Finlândia, na Dinamarca, na Suíça e na Suécia. Quanto aos cidadãos franceses, eles acabam de conceder 17,9% de sufrágios à candidata da Frente Nacional, Marine Le Pen. Em meio à avalanche de números que acompanha as eleições, esse número é aquele de que se deve absolutamente falar. Uma parte considerável da população votou muito mais por afirmar seu pertencimento a uma nação distinta das outras que por um programa político. A nação em questão não é a República mas sim a “terra”, a “aldeia”, o “chão”. É a França descrita pelo antigo presidente como “uma terra carnal a qual cada um se sente ligado por um laço misterioso” (Discurso de Caen, 9 de março de 2007). Não é a França dos Direitos do Homem, não é uma terra hospitaleira à qual qualquer um pode pertencer, mas é uma terra que dá o vinho, esse “sangue da França” e a qual se pertence por um laço vegetal e místico. Essa França que vigia suas fronteiras, “quer a ame, quer a deteste”. O que significa o desejo dos eleitores franceses de afirmar seu solo, sua fronteiras e sua identidade?

Nossas mídias e nossos analistas se derramam em explicações inverossímeis. Eles procuram pelo lado das organizações políticas. A Frente Nacional teria assumido uma máscara republicana, e por isso, finalmente, as pessoas teriam ousado lhe dar voz. Da mesmo forma ler-se-á por toda parte, nos jornais franceses, que a culpa disso cabe à UMP, o partido do ex-presidente, que teria validado os temas da Frente Nacional como bons temas e deixado o racismo se infiltrar na república. É verdade que a direita republicana clássica está em via de se tornar, em boa medida, uma direita identitária. As falas e os atos do último governo, não sem razão, dão vertigens. Que se pense na criação do ministério da Imigração e da Identidade Nacional, a designação dos Roms (os Ciganos) como o germe da delinquência, depois lhe prender e os deportar, a concessão das mais altas distinções republicanas a antigos membros da OAS, que ocultaram a tortura durante a guerra da Argélia... O governo de Sarkozy não cessou de apontar o estrangeiro como ameaça ao nosso modo de vida, devido aos seus hábitos exóticos, nas cantinas escolares, nas piscinas ou nos hospitais. Ele supôs ser o estrangeiro responsável do déficit de “nossa” segurança social, invocando, para tal, a circulação de 10 milhões de falsas carteiras vitales, sem temer inventar números absurdos para sustentar uma explicação não menos absurda. O problema político tornou-se o de barrar as ondas de imigração para evitar o “tsunami” de parasitas e aproveitadores. Da crise e seus sultões, nenhuma questão. Tudo se explica pelo entupimento de nossa máquina de integração, muito generosa. Assistência social, insegurança e imigração foram as frágeis obsessões da política recente. É verdade que o Presidente que tínhamos não convocaria, por certo, convenções acerca da diferença salarial máxima, ainda mais tendo por família os faraós do CAC 40.

Toda essa comunicação xenófoba sem dúvida banalizou certos temas da Frente Nacional. Mas daí supor que o núcleo do pensamento identitário seja o racismo, talvez a causa mesma da orientação do povo em direção a esses temas, seria cabível? Podia-se ler que o nacionalismo identitário fora um veneno injetado pela direita na sociedade. Ouve-se falar pelos comentaristas que, por ter brincado de “aprendiz de feiticeiro”, a direita é responsável pelo resultado histórico da Frente Nacional. A palavra escolhida é boa: é efetivamente crer em feitiçarias conceder a um partido o poder mágico de criar o desejo popular de restaurar a Nação. Por essa perspectiva ingênua, o que restou de povo que vota Frente Nacional para explicar o que lhe motiva? Seus pensamentos e suas escolhas são ligados a obscuras pulsões primitivas. Explicar-se-á finalmente o pensamento identitário pelo medo do estrangeiro e de sua diferença. Consequentemente, a esquerda contará com o tempo e com a educação para curar o povo de seu racismo.

É necessário parar com essas frivolidades e pôr as únicas questões capazes de esclarecer a situação. Quem são os eleitores da Frente Nacional? Em que consiste a Nação e a identidade que desejam? O discurso da Frente Nacional fala aos camponeses, aos empregados, aos artesãos (autônomos). O racismo é o ponto comum entre essas populações? Não cabe essa ideia. A Frente Nacional é, hoje, na França, o 1° partido operário. O mapa de sua implantação geográfica recobre a dos fechamentos de fábricas. Seu terreno de caça é aquele do abandono industrial, em que populações são entregues a um capitalismo sem raiz, capaz de se volatilizar da noite para o dia, deixando prédios abandonados, máquinas paradas e trabalhadores desempregados. Fala-se em deslocalização na mídia e nos meios políticos para se indignar aos gritos. Mas o que é a deslocalização do capital? Antes de se tornar pura prova de miséria, como se dá tal experiência? Do dia para a noite, o dinheiro que punha em movimento as máquinas e os homens abandona o território. É necessário imaginar como a experiência deve ser perturbadora. Não há homem despótico que tomasse a decisão de não mais nutrir os seus, nem pobreza extrema ou pane que explicasse o fechamento das fábricas. No dia seguinte da deslocalização, exatamente como na véspera, nada mudou materialmente. Os homens permanecem com suas forças e ideias. A terra aguarda ser trabalhada, e as ferramentas postas em uso. Mas a força invisível que dava vida às coisas e aos homens, esta, retirou-se. Um poder invisível e incontrolável, como o Mana dos índios, condena os homens ao desemprego e à espera em sua própria terra. O Mestre Capital foi fazer fortuna alhures.

É, pois, a confrontação direta com o Capital, entregue a si mesmo, que motiva o voto nacionalista. Dominado por uma força vinda de nenhum lugar e totalmente indiferente à existência dos homens, eles querem se reapropriar de seu lugar e de seus meios de viver. O Capital é um princípio universal. Ele vai e vem como quer e todo indivíduo pode possuir uma parte dele. Mas esse universal esvazia as particularidades e as opõe em vez de as unir. Nenhum traço de união se faz entre aquele que possui o capital e aquele que não possui, e quando o Capital abandona um lugar por outro, ele faz do primeiro o inimigo do segundo. Eis o motivo pelo qual os europeus se tomam mutuamente como responsáveis por sua própria miséria. Não resta aos homens senão uma única possibilidade: afirmar por si mesmo sua própria particularidade. A ilimitação do Capital, eles opõem o limite de sua própria fronteira, a sua imaterialidade, a materialidade do solo e dos produtos da terra. A permanente troca da mão-de-obra, eles opõem sua identidade ancorada no lugar. O nacionalismo que toma forma na Europa é solidário do capitalismo que a serve. A reivindicação de particularismos é uma resposta à violência do Capital, esse mau universal.

Assim, quando se fala de ir “reconquistar o eleitorado da Frente Nacional”, o partido socialista não deve ser levado a sério se ele pensa que isso será feito por meio de algumas regras de regulação dos movimentos do capital, e distribuindo panfletos nos lugares mais desfavorecidos, para explicar esses regras. Esses expedientes não operam no mesmo plano da experiência em que se exerce a violência do capital. Onde os socialistas jogam com abstrações como euro-obrigações e taxas de juros, os assalariados tentam desesperadamente trazer a abstração para terra, como fizeram nos últimos anos, sequestrando os dirigentes das empresas para que eles não sumissem durante a noite. O socialismo esgrima no ar, ele não chega, por meio das abstrações econômicas, ao ponto de inserção dessas com a vida concreta. Tanto quanto for possível, os investidores realizarão seus lucros mediante a demissão de assalariados, agentes desse lucro, e os abandonarão onde estão, sem que os políticos possam simplesmente proibi-los. Daí que, aos olhos da maioria dos assalariados, a política não será mais do que uma atividade elitista e desprezível. Olhando tais irracionalidades, a gestão razoável dos mecanismos econômicos, proposta pelo socialismo, não passa de perfumaria. Atacar os problemas que dão húmus à Frente Nacional só pode querer dizer uma única coisa: criticar sistematicamente, no plano teórico e no plano prático, a relação capitalista como condição de existência da relação entre as coisas e os seres.

 

Em direção a uma política anti-espetáculo.

 

À primeira vista, a vitória de Hollande não foi feita em torno de um programa levado a cabo por uma visão das coisas, mas em tono de um consenso negativo. “Tudo, menos Sarkozy!”, podia-se ouvir nas ruas, semanas antes da eleição. É o desejo geral de terminar com o “sarkozysmo” que conduziu um socialista ao poder. Nunca um político francês alcançou tal grau de repúdio popular. As pessoa queriam que ele partisse, e de preferência de cabeça baixa, diante de um fracasso retumbante. Independentemente de sua política, execrava-se sua pessoa, seu caráter, suas atitudes e até seus trejeitos e mímicas. Como o repúdio de um pode favorecer a decisão pelo outro? O erro seria crer que Hollande não venceu senão por W.O. Em que Hollande é a negação determinada de Sarkozy? Nisso que ele é, e todos os jornais repetiram isso à exaustão há semanas, um presidente “normal”. Ele sopra no ar da França um forte sentimento de alívio. Aliviados estamos, pois doravante temos um presidente “normal”. O alívio não se assemelha à esperança e não nos leva a isso. Esse simples afeto pode, entretanto, envolver algo de importante.

Um estrangeiro ouvindo e lendo notícias e manchetes a propósito do novo presidente e de seu governo teria, sem dúvida, sorrido generosamente. Pode-se ver, à guisa de cobertura de um grande jornal, uma foto do novo eleito sobre uma única palavra em letras garrafais: “Normal”. O anúncio da constituição de um novo governo e, depois, cada uma de suas novas medidas foram qualificados da mesma maneira. Tudo, absolutamente tudo, era normal, até a campanha do Presidente, que se sabia pelos jornais que 71% dos francesas a acharam normal. Como compreender essa obsessão jornalística pela normalidade do novo poder? Sarkozy, quando acabara de ser eleito, jantava então no Fouquet's em companhia dos barões do CAC 40, antes de sair de férias em um Yacht de luxo. Um pouco depois, ele voltava a França e começar a divulgar ruidosamente sua vida privada. Normal, François Hollande o é como um homem médio que se parece com todo mundo. Depois de uma modesta festa popular, o Presidente voltava para sua casa, para dormir, antes de anunciar, no dia seguinte, que ele faria o possível para que suas viagens oficiais se fizessem de trem e não de avião. No dia da investidura sua família estava completamente ausente. Na primeira reunião do Conselho de Ministros, ele anunciou uma baixa de 30% do salários dos ministros, enquanto o ex-presidente Sarkozy tinha, como um dos seus primeiros atos, aumentado seu próprio salário em 172%. Vê-se o quanto as imagens se opõem. De um lado, provocações típicas de um novo-rico “você-não-me-vê” que está convencido que uma vida de sucesso implica ter um Rolex; de outro, discrição, frugalidade e modéstia.

Mas essa normalidade que tanto se atribui a François Hollande está longe de apenas tranquilizar. Nas realidade, tem-se antes a impressão de que ele é para a mídia suspeito de normalidade. No curso da campanha, essa normalidade tinha valor de descrédito. Achava-se que ela seria muito rasa, muito pálida, muito normal. Uma foto publicada algumas semanas antes do primeiro turno mostrava o candidato Hollande de perfil em um trem, debruçado sobre papéis. Poder-se-ia ressaltar a seriedade de um homem ao trabalho. Nada disso aconteceu. A mídia de direita enquadrou tal imagem como a de uma feição cabisbaixa e esgotada. Quanto aos de esquerda, assombrados por tanta normalidade, lutaram para que a imagem saísse de circulação. A normalidade de novo presidente é, a princípio, uma questão de imagem, e é sobre essa delgada película em que se passam as imagens que algo de fundamental acontece. Quando a mídia critica um homem sem relevos e sem asperezas, do qual nada se pode dizer senão que ele é normal, ela confessa que essa normalidade a incomoda. Esse homem parece se desinteressar da imagem que ele se dá. Não é apenas porque ele encarna uma imagem oposta à de Sarkozy, mas sobretudo porque ele se opõe à imagem e recusa a convertibilidade da imagem à política. O maior jornal diário de direita notava, há pouco tempo, que esse presidente é tão normal que tal normalidade parecia artificial. Na sociedade do espetáculo, a imagem da normalidade é o que há de mais estranho. Exige-se de Hollande que ele se importe com sua imagem e que ele admita a supremacia do espetáculo. Como notava, enfim, Debord em seus Comentários à sociedade do espetáculo, aquele que não aceita o princípio segundo o qual é o espetáculo que modela a pessoa merece a desgraça. Na sociedade do espetáculo, querer ter “uma notoriedade anti-espetáculo (…) equivale a ser conhecido como inimigo da sociedade” (Guy Débord, Commentaires sur la societé du spectacle, Gallimard, p. 33, 1992), p. 23.

Estamos diante da razão do alívio experimentado pela maioria dos franceses: ter eleito um homem político cuja imagem é anti-espetáculo. Essa eleição marca a recusa de que a política seja devorada pela imagem da política. As características do período sarkozysta tornam-se ainda mais claras. Nicolas Sarkozy se vangloriava de ser o primeiro Presidente do século XXI e é verdade que vivemos a primeira presidência do tempo dos tweets, do Facebook, dos celulares e das câmeras permanentemente ligadas, registrando e repercutindo a menor palavra trocada em voz baixa e submetendo cada gesto a um comentário. Esse jogo, Sarkozy aceitou e jogou sem descanso. Ele era obcecado pelo controle de sua imagem, requerendo, e isso vem por si, um controle constante e cerrado da mídia. Ele usava sapatos com saltos para despistar seu tamanho, assim como era capaz de selecionar os operários que figurariam com ele em uma reunião, afastando os mais altos, afim de dar relevo a sua pouca estatura. Os debates televisivos eram falseados de tal modo que o público nunca podia fazer uma pergunta imprevista e incômoda. Mas não se deve enganar: essa fabricação presidencial da imagem não tinha por motivo o narcisismo do presidente. O erro aqui seria atribuir demais a personalidade de um único homem. Não é porque as câmeras avançavam sobre ele que o político se viu obrigado a cuidar de sua imagem. Sarkozy quis e realizou a aspiração da política pela imagem. Ele foi o operador histórico da degenerescência iconológica da política na França. O princípio do qual foi agente não tocava apenas a publicidade da política (“cuidado com a apresentação, seremos filmados”), mas a modificava em sua essência: “a política é uma arte da comunicação”. A segunda afirmação é de uma amplitude completamente diferente. Ela não sugere adaptar a política à sociedade das imagens, mas realiza a inversão da relação natural entre a imagem e a realidade. Ela afirma que a imagem é primeira e constitui o núcleo do sentido da política. Essa degradação iconológica leva o nome pretensamente científico de comunicação.

Não foi o governo que fez a política da França nesses últimos anos, mas o exército tagarela de seus conselheiros de comunicação. Essa arte da comunicação, que visa modelar a opinião política, não deve ser confundida com as técnicas de manipulação por doutrinamento, próprias dos regimes totalitários. Ela não está a serviço de uma ideia em particular, mas ensina como tornar aceitável e legítimo não importa qual ideia. Seus princípios de método são de uma simplicidade aflitiva. São os princípios de exageração, de saturação ou divercionistas que permitem captar e bloquear a atenção. Mas seu sentido profundo não é o de vestir uma ideia para a tornar sedutora. É o de colocar como princípio ontológico “Tudo é comunicação”. Assim, por exemplo, a técnica chamada sem ironia pelos especialistas da comunicação “técnica da fumaça” pode implicar desencadear não importa qual política desde que ela bloqueie a visão. No momento do caso Woeth, suscetível de pôr em causa o conjunto do partido presidencial, Sarkozy desencadeou seu abominável ataque contra a população Rom (Cigana) da França. Ele não se lançou nessa sórdida aventura malgrado sua marca escandalosa, mas justamente por causa dela.

Quando tudo é comunicação, o conteúdo não tem mais nenhuma significação originária, ele é tão somente uma variável do impacto buscado. A comunicação é posta como espetáculo para esvaziar o sentido dos seres e dos atos. Ela afirma que tudo pode ser reconhecido como verdadeiro, o que significa que nada é verdadeiro. Nesse mundo invertido da comunicação, é necessário ter uma política da imagem, pois a imagem da política é sua única realidade. Assim, nada é absolutamente falso ou injusto. O escândalo simplesmente não existe mais. Sob o poder nababesco da imagem, tudo se converte em seu contrário. A política se torna uma arte conceptual, sem pensamento próprio, colando como princípio último a imagem como indefinidamente reversível. Assim, uma política feita por e para os ricos pode ser validada por todos como uma política de distribuição e justiça. Assim, um desvio de conduta grosseiro e insultoso do presidente pode tornar-se a marca de sua determinação. Assim, a imagem de um presidente ridículo, empanturrando-se de bolo, pode testemunhar sua proximidade com o povo. Como escrevia Debord, “a instalação da dominação do espetáculo é uma transformação social tão profunda que ela mudou radicalmente a arte de governar” (Op. cit., p. 115). É que o espetáculo neutraliza toda instância extra-espetáculo de verdade e justiça. O sentido de uma ação depende exclusivamente do efeito produzido por sua encenação do mesmo modo que o estofo de uma personalidade é solúvel em seu estatuto midiático. A comunicação ensina-nos que é tolo ordenar a política à existência de homens inteligentes defendendo programas justos. Ele está aqui para esvaziar o sentido de todos esses termos. Longe de prolongá-la, o espetáculo funda a realidade. Ele opera como o mecanismo comando, o único modo de verificação que confere uma legitimidade.

O que advém à subjetividade coletiva em um regime do espetáculo que a considera como um alvo que se bombardeia com mensagens eficazes? Pode-se ainda, de algum modo, subjetivar-se como sujeito político? Desde agora, na França, o povo é abertamente tratado como um sujeito incapaz de política. O léxico é flagrante. Os manifestantes não exprimem uma ideia, mas um mal-estar. Eles não fazem ouvir um descontentamento ou um desacordo, mas um grunhido, como um animal ferido. Os grevistas não são atores políticos, mas terroristas que “tomam os donos como reféns”. Esse modo de despolitizar a sociedade foi aplicado sem restrição a todo corpo social. A arte de governar da era do espetáculo não tem nenhuma necessidade de projetos ou ideias. Sua matéria primeira é constituída por medos primitivos como o sentimento de insegurança ou o temor de invasão. O povo não é uma força que reflete, julga e decide, mas uma realidade puramente afetiva que é necessário assustar e depois afagar. Não se diria melhor o que Platão dissera a respeito dos sofistas que tratavam o povo como um grande animal. Nossos conselheiros em comunicação são mercenários semelhantes a “um homem que, tendo de nutrir um animal grande e forte, depois de ter minuciosamente observado seus movimentos instintivos e seus apetites, por onde é necessário se aproximar e por onde tocá-lo, quando e por que ele é mais nervoso e irritadiço, quando é doce e quais são os sons que o suavizam e os que o irritam (…), daria a sua experiência o nome de ciência (…) sem saber verdadeiramente o que nessas máximas e apetites é belo ou feio, bom ou mau, justo ou injusto, não julgando tudo isso segundo as opiniões desse grande animal, chamando boas coisas o que lhe dá prazer, más, o que lhe incomodam”, (Platão, République, L. VI, 493 a-c). Ela induz uma política do puro afeto e desligada, que anula toda politização da sociedade. É um dispositivo pavloviano de estimulação afetiva, ao serviço dos sátrapas do Capital.

Mas a subjetividade também não se deixa facilmente animalizar. O projeto da arte da comunicação é fadado ao fracasso. Pela essência, uma consciência não pode ser reduzida a uma magma emocional. A ambição da política do espetáculo não é a da propaganda e do endoutrinamento. Ela não pretende que o falso se passe de verdadeiro, mas, sim, tornar essa dualidade insignificante. Segue-se que ela não produz efeito de crença. Ninguém jamais acreditou que o presidente dos ricos houvesse subitamente se tornado os dos pobres. Ninguém jamais acreditou que a assistência social e a imigração fossem as causas das dificuldades econômicas. A política do espetáculo secreta um outro veneno de ilusão. Por meio dela, a subjetividade não é enganada, mas por assim dizer “congelada”. Enganar-se-ia a pensar que a jovem geração ávida por telas e imagens é crédula. Ele é, ao contrário, radicalmente incrédula. Informada e lúcida, ela compreendeu que o princípio do terceiro excluído não vale em política. Algo não é ou verdadeiro ou falso. É um e outro e, então, nem um, nem outro. O que produz a política do espetáculo é uma subjetividade indiferente e distanciada, uma consciência cínica do mundo. Ela põe a consciência em estado de distância patológica, em posição de neutralidade forçada. A despolitização atinge, pois, seu cúmulo. O espectador não se metamorfoseou em animal temeroso, mas em um ser desengajado que, tal como o melancólico, olha o mundo e os outros de longe e de cima, come se estivessem em uma casa de bonecas.

Por essa perspectiva, o fracasso de Sarkozy não vem tanto de sua política real quanto de seu empreendimento de desrealização da política. É como se a subjetividade coletiva tivesse atingido um ponto de saturação, recusando, doravante, aceitar que as imagens façam e desfaçam a realidade. Seria o fim da política do espetáculo? Nosso sentimento é que a eleição francesa de um presidente “normal”, no sentido que mencionávamos, é um sinal dos tempos. As pessoas não querem mais um Berlusconi que havia diluído a política em uma narrativa de banquetes orgiáticos, assim como não querem mais um Obama que faça demonstrações de “sabre de luz” nos jardins da casa branca, atacando moscas em pleno vôo. A política do espetáculo se fissura a olhos vistos. Isso não quer dizer que uma política real está em via de nascer, e sim que, ao menos, as pessoas não podem mais suportar que a agitação do espetáculo tenha lugar de ação. As subjetividades futuras politizam-se entorno e contra o espetáculo. Pressente-se isso quando se pensa em movimentos como o dos Indignados, dos “Anonymous” ou em todos os movimentos que se articulam em torno de sujeitos invisíveis (os sem-teto, os sem-direitos, os sem-documentos). É recusando de tomar um nome e um rosto que se lhes assegura uma representação na mídia e que eles conseguem manter sua singularidade e se federar. Vivemos atualmente uma salutar reação anti-espetáculo das pessoas. Mesmo se ela não contém a promessa de uma ação futura, ela é, ao menos, a condição disso. A boa nova do dia não contém nenhuma formulação política sobre o futuro. Ela mesma o recusa. As imagens não fascinam mais. Elas causam náuseas.

Na visão revolucionária da história, as crises, as eleições, as exasperações não têm sentido próprio. Assim, a eleição de um presidente socialista será denunciada com engodo. O marxista predirá o diversionismo e esgotamento das forças populares nas reformas. Nas manifestações populares como a dos gregos ou dos espanhóis, ele verá um desejo de ruptura, mas lhe concederá apenas sentido negativo. Elas revelam o que lhes faltam, uma organização política capaz de radicalizar a luta. Essa visão da história esmaga o sentido dos fenômenos. Fora a substância profunda da revolução, todo o resto é espuma da superfície.

Nós que não mais acreditamos na revolução, renunciamos a predizer o curso político das coisas. A espera de um momento em que se levantaria um despertar radical nos torna cegos para o que se passa. A análise deve ser da ordem de um diagnóstico, não da predição. Desse ponto de vista, o fenômeno relevante na França e alhures é mais uma vantagem teórica que prática. Assistimos à queda de um sistema de crença que assegurava a adesão ingênua à ordem econômica. A crise desnudou a racionalidade econômica. Uma evidência salta aos olhos: a irracionalidade da racionalidade econômica é endógena. Essa verdade não é nova, mas acontece que hoje ela se manifesta plenamente. Desde Marx, sabemos que a racionalidade econômica envolve uma irracionalidade imanente. Ele mostrou que as crises são respirações necessárias de uma sociedade fundada sobre a relação capitalista e não acidente imputados à natureza. Nos períodos de forte crescimento, a redistribuição dos ganhos esconde a irracionalidade econômica. Toda crise derruba essa véu igualitário. Em uma crise clássica de superprodução, a irracionalidade do capital se mostra por meio das coisas em excesso que são mais rentáveis sendo destruídas que serem vendidas ou doadas. Mas a crise atual é uma crise de financiamento e não de produção. Ela mostra a irracionalidade do capital em estado puro, sem que ele se encarne nas coisas produzidas para troca. Independentemente de toda atividade produtiva, a riqueza parece se produzir por si mesma, surgir do nada e desaparecer sem razão. O capital é um fluxo que parece existir à parte das coisas e dos homens, impossível de seguir, tomado de um poder oculto. Nossas sociedades se assemelham a uma máquina, com um enorme vertedouro, que dilapida e volatiza as energias humanas. O capital passou do estado de exploração para o estado de evaporação.

Essa crise produz efeitos de verdades específicas. Agora está claro que a irracionalidade econômica não vem de agentes mal-intencionados. A financeirização da economia permitiu a proliferação de escroques, mas não foram eles que causaram a crise. O problema não é a voracidade dos banqueiros e dirigentes, mas um modo de criação de riqueza que impõe a conversão das forças humanas em um capital que escapa a qualquer controle. As pessoas não são tolas. Não se trata, nas discussões espontâneas, de culpados da crise e de submetê-los a processos judiciais, mas de uma produção alucinante de uma riqueza inútil aos homens. Os políticos e os analistas procuram nos distrair chamando a atenção para causas ocasionais da crise, não para as estruturais. Na França, por exemplo, tudo foi feito para indicar o corretor Jérôme Kerviel culpado. Sua condenação, exigindo reembolso de 4,5 milhões de euros – ele, que vive com salário-desemprego – é uma piada. Tudo foi feito para que ele fosse o culpado e para que não fosse posta em causa a própria Société Générale, e, mais amplamente, o poder dos bancos de negócios em decidir o destino de nossas sociedades. A batalha midiática em torno dos bandidos que se aproveitaram da crise não rende mais nada.

Uma clareza foi posta sobre a estrutura econômica e a política do espetáculo fracassou, destarte, em produzir seu jogo de sombras. A crise nos despertou de nosso sono do espetáculo. Na Europa, a menor manifestação afunda os mercados; não é mais possível se enganar sobre as origens de nossa miséria social.

































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ilustração: Rafael MORALEZ







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