revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Luiz Damon Santos MOUTINHO

o sujeito da democracia1

 

(Colliot-Thélène, Catherine. La démocratie sans "demos". Coll. Pratiques théoriques. Paris: PUF, 2011, 213p.)

 


Se é verdade, como quer Foucault, que depois de Kant um dos dois caminhos da filosofia é a interrogação sobre a "atualidade" (o outro caminho é o das condições de possibilidade da verdade, ou "analítica da verdade"), procura-se saber o que em nosso tempo teria envergadura e conformaria nossa "atualidade". Trata-se de encontrar o signo privilegiado do nosso tempo, aquilo que possui espessura e o grava como irredutivelmente singular. Alguns anos atrás, a filosofia política viu no "totalitarismo" um tal signo, nele encontrando muito mais do que simples usurpação do poder por uma burocracia sem pejo. Catherine Colliot-Thélène renova a questão e propõe agora outro signo de nossa "atualidade": a globalização, ou, como preferem os franceses, a "mondialisation".

De onde vem esse prestígio da globalização? O que ela põe em jogo não é pouca coisa: com ela, a própria ideia de democracia arrisca perder sentido. Os queixumes encontram-se em toda parte: o que pode haver de democrático em decisões tomadas por instâncias tão distantes do controle popular - pensando-se no FMI, no Banco Mundial -, tão pouco visíveis? As razões e deliberações de uma equipe de experts, geralmente ocupando cargo por nomeação, escapam completamente ao conhecimento e juízo do público, e cujos teores não raro vitimizam nações inteiras. Se quisermos avaliar a globalização, devemos ter em mente certa equação: quanto menos visível é a instância de decisão, mais o poder é manifesto (11) - e, com ele, a dominação. Assim, a proliferação de instâncias supranacionais de poder tende a uma dominação cada vez mais inexorável. E, inversamente, a maior visibilidade da instância de poder oferece pelo menos uma maior probabilidade de controle. O limite do ideal democrático, ao que parece, iria realizar-se apenas nas pequenas comunidades, pois ali o povo reunido pode manifestar sua adesão às leis (64), à maneira rousseauísta: só ali a democracia, como se costuma dizer, é "direta". Se o dominado legisla, ele passa também à condição de dominante, e já não há mais dominação: a "autolegislação" é a fórmula perfeita da verdadeira democracia. A mundialização vai na contramão desse ideal. E, convenhamos: à parte as pequenas comunidades - modo talvez arcaico de sociabilidade -, pelo menos os Estados nacionais arremedam a fórmula da "autolegislação", que é o que realmente importa. Afinal, não é você mesmo quem elege seus governantes? O Estado é a figura central da democracia moderna, pois ele concentra poder de decisão e seus mandatários são escolhidos por eleição direta. Ninguém ignora, evidentemente, os problemas da democracia representativa, mas são problemas funcionais e eles não escapam, por isso mesmo, a mecanismos de aperfeiçoamento. Sem o Estado, como pensar a ampliação dos direitos sociais nas últimas décadas? As "comunidades nacionais" são e continuam sendo a melhor alternativa dos últimos séculos para a democratização das relações de poder. Daí porque a erosão do poder estatal, tornada corrente pela globalização, ameaça fortemente a democracia moderna.

Claro que falamos aqui dos apocalípticos. Faltam os integrados. A globalização será vista por esses não como ameaça à democracia, mas como possibilidade de estendê-la a níveis mundiais, em uma espécie de "comunidade supranacional". O elo entre democracia e Estado nacional seria apenas contingente; o essencial está noutra parte: novamente, na autolegislação. É ela que põe fim à dominação e, portanto, é ela que garante a democracia. Como se vê, a chave - autolegislação, "comunidade" - é a mesma, ela apenas gira em sentido contrário. A questão para os integrados passa a ser a de pensar o que pode ser essa grande "comunidade", não de negar sua possibilidade.

Eis aqui, em poucas linhas, um conjunto de ilusões que Colliot-Thélène se empenha minuciosamente em desfazer.

E, para isso, ela convoca um vasto arsenal: a filosofia política, a sociologia, o direito e, sobretudo, a história. É a história, mais do que as teorias políticas, que nos ensina sobre nossa atualidade. Uma teoria da democracia que não leve em conta a história, diz Colliot-Thélène, é dogmática (24). E é ainda na história que ela vai encontrar a chave mais ousada da sua interpretação da democracia: "a democracia liberada da utopia de um demos unitário" (196) - veremos isso adiante. E se, por outro lado, é em Kant - mais que em Weber - que ela encontra outro elemento fundamental de sua teoria, o "direito subjetivo", não é tanto porque ela é kantiana, mas porque a história recente, pelo menos nesse ponto, vem dando razão a Kant. Tudo se passa como se a mundialização impusesse uma releitura da história que, a um só tempo, vai nos libertar das ilusões sobre a democracia - ousadamente, Colliot-Thélène enumera a "autolegislação" como uma dessas ilusões - e redescobrir um frescor nos clássicos (sobretudo em Kant) e no período revolucionário do século XVIII (aí incluída a Declaração de 1793 com sua "dinâmica emancipadora", ao contrário do que ocorre com a Declaração de 1948) (103).

Dissemos que a mundialização impõe uma releitura da história. Quais são os signos dessa exigência? Sobretudo, a proliferação de poderes, a "multiplicação [dos] lugares e formas de poder". Essa multiplicação põe em xeque a independência do Estado para organizar e administrar o "corpo social" (17). A alternativa mais óbvia seria, a partir daí, apontar os riscos para a democracia, vinculando sua existência ao "quadro nacional" (11). Mas não é esse o caminho tomado por Colliot-Thélène: ela vai antes se colocar uma questão que é o verdadeiro pulo do gato de sua teoria: "a questão central desse livro é a identificação da figura do sujeito político que corresponde à democracia, entendida em seu sentido moderno" (3). A resposta é contundente: "o sujeito político moderno escapa a toda determinação comunitária" (3). Classe, nação... A "verdadeira inovação da modernidade" reside nisso: o sujeito político é o "sujeito de direito" não relacionado a qualquer coletivo, mas vinculado "ao indivíduo independentemente de qualquer pertencimento" (6). O Estado, por exemplo: não seria ele o "coletivo superior", como quer Hegel? Se não, como desconhecer que a centralização do poder no Estado vai de par com o fim dos "direitos particulares", vinculados a certas ordens, e que é assim que nasce o "indivíduo"? Colliot-Thélène não desconhece essa história, e aqui Weber aparece com força. Para Weber, "o Estado soberano moderno aparece como o produto final de um processo que viu um certo tipo de comunidade política (...) monopolizar o exercício da força legítima em detrimento das ‘comunidades de direito’ (Rechtsgemeinschaften) diversas, potências feudais, ordens, Igrejas, cidades etc, que asseguravam outrora a seus membros a garantia de direitos particulares" (42). O Estado moderno, se impondo como única fonte legítima da lei, pôs fim à heterogeneidade dos "direitos particulares" (43), e é da erradicação dessas "diferenças estatutárias" que nasce a "individualização do sujeito de direito" (44). Não seria, portanto, o "sujeito de direito" estreitamente dependente do Estado? A bem da verdade, não é outra a tese central das teorias políticas clássicas desde Hobbes. A resposta de Colliot-Thélène a essa questão é negativa - o que certamente incomoda o leitor habituado às teorias clássicas da soberania. Colliot-Thélène propõe uma mudança de foco, e é nisso que reside a força de sua tese. Não, o foco não é a teoria da soberania - logo, o foco não é mais o demos soberano... Não é mais o Estado, portanto, em qualquer forma que seja (absolutista, liberal, "de direito"), seu poder, sua legitimidade. Não, a legitimidade não é o foco da análise, não é ela que nos ensina sobre a verdadeira democracia...

Antes, porém, de mudar o foco, é preciso se desvencilhar de alguns prejuízos que dizem respeito à democracia. Em primeiríssimo lugar, o prejuízo que vale como "axioma fundamental" para as teorias democráticas. São essas teorias o alvo direto de Colliot-Thélène, não as teorias clássicas. Afinal, o interesse dela está voltado sobretudo para a história da democracia moderna, portanto, para os séculos XIX, XX e XXI. O "axioma", enunciado por Rousseau, reza que "o povo submetido às leis deve ser o autor delas" (8). Ora, isso será entendido muito simplesmente como o fim da dominação e do assujeitamento, sentido que o "axioma" não tinha nem mesmo em Rousseau... Colliot-Thélène se vale de Weber e enuncia de maneira tão "brutal" quanto ele: não há poder sem dominação. A "estrutura dissimétrica" - dominantes e dominados - é "constitutiva" da política (10 e 12). Dominação, autolegislação: por que aquele princípio valeria mais do que esse? Não seria ele um outro "axioma", simplesmente oposto ao da teoria democrática? Ao leitor, tratar-se-ia apenas de escolher... Ora, não se trata disso. Colliot-Thélène propõe uma fina análise de Rousseau para mostrar que nem mesmo nele a autolegislação põe termo à dominação. A diferença entre "povo como corpo político" e "povo real" é uma dificuldade que atravessa todo o Contrato social. Daí porque o enunciado é equívoco desde o início: o "povo". Ora, o povo - esse que comparece às urnas a cada quatro anos - é o "povo real", esse a quem, segundo Rousseau, "faltam as luzes", que é "cego", que "raramente sabe o que é bom pra ele", é a "multidão" que não conhece "unidade", cujas vontades só podem ser "particulares", e que, por isso mesmo, jamais coincidirão com a "vontade geral" (65-66). Ora, a lei, pela sua "universalidade", só pode ter a "vontade geral" como origem. Aqui, sim, valeria o princípio da autolegislação. No entanto, que pode significar esse princípio se o povo real "não deve", "não pode" legislar? Significa, sim, que o "povo soberano" é o "poder constituinte", mas não porque ele faça a lei, e sim porque ele dispõe do "direito legislativo", que não é o poder de legislar, "mas a autoridade que confere às leis, elaboradas por uma instância sempre distinta do povo, seu caráter obrigatório" (68; grifos meus): o "direito legislativo", por seu "consentimento", confere "autoridade à lei" (75). Autolegislação traduz apenas a exigência de que a lei, universal na origem, deva ser igual para todos. Nesse caso, a "obediência" não será "servidão", já que ela não se funda em desigualdades estatutárias perenes, mas na "lei geral" (77), que tem por origem a "vontade geral". Isso, evidentemente, não implica negar "diferenças" de posição, de fortuna, ou mesmo "privilégios". Nega "apenas" que esses sejam concedidos "nomeadamente" a alguém, que sejam "vinculados aos indivíduos": a dominação não deve ser "reservada em estatuto" (73-74). A autolegislação assim entendida não exige - ao contrário, rejeita - a coincidência entre o súdito e o cidadão. Portanto, ela não realiza a identidade entre dominantes e dominados. O "fascínio" que exerce sobre Rousseau a ideia do "povo em pessoa", do povo reunido em assembleias - portanto, o "fascínio" por pequenas cidades - não se traduz em deliberação efetiva desse mesmo povo, cujos "interesses e opiniões divergentes" não conseguem formular "aquilo que todos, omnes et singulatim, querem necessariamente na medida em que querem constituir conjuntamente um corpo político" (69-70). Daí porque o voto, pronunciado por "pessoas singulares", não será jamais "expressão do ‘direito legislativo’ do soberano" (76) - ou seja, não é pelo voto que se exerce a soberania popular. Já para os "teóricos das democracias representativas contemporâneas", ao contrário, a eleição, sobretudo a dos legislativos, é o "ato essencial pelo que se exerce a soberania do povo" (76). Por essa via - "obedecer à lei na elaboração da qual se participou, ainda que de maneira indireta" - anular-se-ia a sujeição, segundo esses mesmos teóricos: o cidadão, ao que parece, aniquilaria o súdito que há nele, e o poder já não seria dominação (77). O passo aqui é diferente do de Rousseau, para quem, se é verdade que a obediência não é servidão, resta, contudo, que ela é sempre obediência, o que significa dizer que a universalização da lei não retira dela o caráter de "comando". Daí porque a "autodeterminação do soberano", o "povo soberano", é "compatível" com "todas as formas de governo", mesmo uma "monarquia hereditária"2 (77). A soberania rousseauísta é essencialmente uma "dominação sobre súditos" (76).

Lida dessa maneira, a "soberania popular" não é outra coisa que "uma certa forma de racionalização do exercício do poder" (82), isto é, das "relações entre dominados e dominantes" (12). O poder se exerce pela "lei igual", o que não significa abolir a distinção entre os que comandam e os que obedecem. Essa chave permite retificar certa leitura que se fez de Kant, segundo a qual sua justificação dos direitos subjetivos individuais implicariam um limite à soberania popular rousseauísta. Kant enunciaria "os fundamentos do Estado de direito", na medida em que os direitos subjetivos limitariam a "ilimitação do poder do povo" (78). O direito seria uma instância heterogênea ao poder, concebido, por sua vez, como ilimitado. A partir daqui, não será difícil construir, como o faz Carl Schmitt, a ficção de um Rousseau totalitário. Construção que, a bem da verdade, apenas reproduz, segundo Colliot-Thélène, "certo liberalismo que considera que o Estado de direito, isto é, o reino da lei, e a democracia são no fundo inconciliáveis" (63). Pois não foi Rousseau que condenou o regime representativo, já que a vontade geral não se deixa representar? Não foi ele que deixou aberta a possibilidade de forçar os súditos a serem livres, já que suas vontades particulares não coincidem com a vontade geral? (61) Carl Schmitt vai radicalizar esse "dossiê contra Rousseau" acentuando a recusa da representação da vontade geral. Haveria em Rousseau uma "concepção identitária da democracia", não representativa, avessa portanto a toda mediação na medida em que "a identidade pressupõe a coincidência imediata do povo político com a realidade física deste" (62). Para Colliot-Thélène, o importante não é tanto mostrar que o Contrato social não pressupõe uma tal homogeneidade do povo real, que o problema é antes o da ausência dessa homogeneidade. O que realmente interessa a ela é rejeitar, nessa leitura liberal e schmittiana, a suposta tentativa rousseauísta de anular a dominação, pois a identidade, tal como lida por Schmitt, "implica a ausência total de diferença entre dominantes e dominados (...) o exercício direto do poder de decisão pela totalidade dos cidadãos" (62). Daí por que destacar a ideia de que o Estado "bem constituído" de Rousseau não abole a dominação3. Vale a mesma observação para o partido oposto, habermasiano, que tem uma concepção jurídica da democracia: se se identifica, como faz Habermas, democracia e Estado de direito (o "reino da lei"), então, frisa Colliot-Thélène, o Estado "bem constituído" de Rousseau é já um Estado de direito (74). Mas daí a concluir que o Estado de direito é um Estado sem dominação é cometer um "paralogismo" (74). Quem bem entendeu Rousseau foi Kant: Colliot-Thélène aproxima os dois filósofos e mostra a república kantiana como "a verdade da democracia de Rousseau" (82). É preciso retificar aquela leitura que se fez de Kant, a leitura que vê os direitos subjetivos como uma limitação do poder ilimitado do povo. O passo decisivo de Kant é bem conhecido: ele transforma o contrato originário em "Ideia da razão". Isso não para afastar uma eventual realidade histórica do pacto - no final das contas, desimportante para os contratualistas -, mas para afastar do conceito de pacto qualquer referência ao "povo em pessoa" (78). Esse é o ponto decisivo, fonte de todas as dificuldades do Contrato. Kant afasta, num só golpe, a necessidade de que o povo real dê assentimento à lei, de que participe da sua elaboração - exceto sob a forma do "como se". Por outro lado, transformado em Ideia da razão, o pacto originário não seria outra coisa que "a ideia da igual liberdade dos homens", o único dos direitos inatos e critério de legitimidade das leis públicas (78-79). Ora, esses dois momentos resumem a leitura que Colliot-Thélène faz de Rousseau, tendo em vista que a "igual liberdade" kantiana não afasta, como não afastava em Rousseau, a hierarquia dos superiores que comandam e dos inferiores que obedecem, obrigados a obediência - esse é o ponto importante - "unicamente pela lei pública" (81-82). Ora, a passagem por Kant tem a enorme vantagem, para a démarche de Colliot-Thélène, de suprimir as ambiguidades da teoria de Rousseau, sem traí-lo - e a passagem por Rousseau, "o nome mais esperado quando a questão é democracia", de antecipar "as dificuldades do pensamento democrático moderno" (22). Essas dificuldades giram em torno da ideia de autolegislação, limitada por um e outro autor. Daí a ênfase de Colliot-Thélène na interpretação da soberania popular como forma de racionalização do poder sem a exclusão da dominação. Colliot-Thélène quer se libertar da ideia de autolegislação tal como as teorias democráticas sustentam e cujo eixo é precisamente o fim da dominação. É nesse quadro que se pode duvidar do futuro da democracia, e, inversamente, "perspectivas muito diferentes se abrem se aceitarmos reconhecer que a estrutura dissimétrica do poder é constitutiva do que chamamos a política" (11-12).

Ressaltado que a soberania popular não representa o fim da dominação, que ela não significa a autolegislação, pode-se perguntar que pode haver de democrático nos Estados modernos. É isso que Colliot-Thélène vai destacar: aquilo que há de democrático, ou melhor, de democratizante, aquilo que ela vai chamar o "vetor de democratização" - e esse vetor, na hora atual, não é mais a soberania popular. Daí por que não se trate mais, para ela, de elaborar uma teoria da soberania, do poder e sua legitimidade. É certo que a soberania popular pôs fim aos privilégios, aos direitos particulares. Mas, na hora atual, no contexto da mundialização, há algo de regressivo nela - e isso será posto em relevo justamente por aquele "vetor". É ele, não a autolegislação, que permite ter esperanças com o futuro da democracia. Antes, contudo, de destacarmos esse vetor, passemos ao segundo prejuízo a respeito da democracia.

Houve, sim, uma "democratização das democracias" entre os séculos XVIII e XX. Segundo uma interpretação que se tornou canônica, a de Thomas H. Marshall, houve uma expansão dos direitos ao longo desse período, com forte predomínio dos direitos civis no início (direito à liberdade - liberdade da pessoa, de expressão, de pensamento e crença etc - e direito à propriedade), direitos políticos depois (direito de eleger e ser eleito) e direitos sociais por último (sobretudo educação, saúde e bem- estar). Essa democratização implicou, de início, um processo de "politização da cidadania": houve "um deslocamento do centro de gravidade da cidadania em direção aos direitos políticos" (100), a ponto de os direitos políticos aparecerem, hoje, como "a própria substância da cidadania" (99), a ponto de "cidadão" identificar-se a "eleitor" (100). Ora, acontece que os "direitos políticos" foram essencialmente vinculados à nacionalidade. Daí a diferença radical com as declarações do período revolucionário: na Declaração de 1789, por exemplo, o "cidadão" não conhece nacionalidade, não deriva de nenhum "pertencimento", não é o cidadão de tal cidade, tal comunidade, mas "cidadão tomado absolutamente" (97). Inversamente, na medida em que a cidadania se confunde com direitos políticos e esses dependem da nacionalidade, "cidadão" e "nacional" tornam-se "categorias intercambiáveis" (101). É essa, segundo Colliot-Thélène, a primeira etapa da "estaturização dos direitos subjetivos". A emergência dos direitos sociais será a segunda (104). São "sociais", na interpretação de Marshall, porque manifestam o "pertencimento" do indivíduo à sociedade. Ou, no caso do "direito ao bem-estar", porque manifestam os "deveres da coletividade" a qual os indivíduos concernidos "pertencem" (106). Marshall interpreta o longo caminho dos direitos civis aos sociais, ou o processo de estaturização dos direitos subjetivos, como "diferentes declinações da cidadania". Colliot-Thélène, como Luhmann, verá nesse processo outra coisa: a "positivação do direito", de que os direitos sociais são um "sintoma" (113). O sujeito torna-se "objeto" visado por programas sociais, ele é menos o sujeito livre do que aquele que faz valer seus direitos sociais e permite assim o trabalho da burocracia administrativa. O direito é aqui "puramente instrumental" (109). Portanto, menos que alargamento da liberdade, Colliot-Thélène, verá na "proliferação dos direitos sociais" uma "ameaça à liberdade da pessoa" - pelo menos, acrescenta ela, se entendermos liberdade no sentido de Kant... (110). Enquanto Kant preserva a antecedência do direito privado sobre o público e recusa que o poder discrimine o conteúdo dos direitos subjetivos, a positivação do direito subjetivo, por outro lado, só pode conceber esse último como "produto de uma outorga" (114). O direito subjetivo perde assim seu "fundamento normativo na autonomia do sujeito" (114) - o que será fatal para Colliot-Thélène. O direito "outorgado" (octroyé) "exprime a lógica de uma gestão administrativa das populações. (...) É a política vista do ponto de vista dos governantes" (114). Ora, que não se veja aqui um liberalismo fazendo a condenação dos direitos sociais. O que importa a Colliot-Thélène é apontar outra consequência, aquele segundo prejuízo a respeito da democracia.

O que implica a estaturização dos direitos? A "comunitarização" da cidadania, sua "nacionalização" - da qual o "estrangeiro" aparece como o "excluído", pois "a lógica de toda comunidade real" é incluir excluindo (178). O "estrangeiro" só terá os direitos que o Estado lhe conceder - e isso por uma razão profunda e perigosa: porque mesmo os direitos do cidadão tornaram-se "direitos outorgados". É o saldo final da lógica comunitária: "o caráter emancipador da noção de sujeito de direito se perdeu em proveito do imperativo de pertencimento" (117). Assim, ao "estrangeiro" serão concedidos "direitos mínimos, os Direitos do homem", já devidamente distinguidos dos "direitos do cidadão". O problema mostra as dificuldades de uma democracia fechada pelo imperativo do pertencimento. A fórmula aporética de Hannah Arendt "direito de ter direitos", "tão magnífica quanto enigmática" (122-123), vai ser o mote para a solução de Colliot-Thélène: escapar à estaturização do direito e, a partir daí, à "comunitarização" da cidadania. Como escapar à concepção estatutária do direito, de que Kelsen, replicando a sociologia de Marshall no plano da teoria jurídica, é o melhor exemplo e, assim, escapar à "comunitarização" da cidadania e ao imperativo do "pertencimento"? A fórmula arendtiana resumia a dificuldade de pensar os direitos dos apátridas - os direitos do homem - no período entre-guerras e durante a segunda guerra. Na falta de um Estado que pudesse garanti-los - ou seja, na falta de um "pertencimento cidadão" - tais direitos eram apenas um sopro de voz. A fórmula traz à tona a dificuldade: o direito de ter direitos se funda no pertencimento a um coletivo não institucionalizado, e que ela acreditava não institucionalizável: a "humanidade" (23). A aporia está aí: o direito de pertencer à "humanidade" deveria ser garantido pela própria "humanidade"... A grande vantagem da posição de Arendt é que ela recusa a facilidade de justificar esse direito na natureza do homem. Colliot-Thélène também recusa essa facilidade. Mas Arendt vai adiante: os direitos do homem são para ela mero sopro de voz, já que eles não se escoram em um "pertencimento cidadão" (122-123). Colliot-Thélène vai em outra direção, mais radical: ela vai rejeitar, ao mesmo tempo, a naturalização do direito e o imperativo do "pertencimento" (e, portanto, a "comunitarização" da cidadania). A "radicalidade" está nisso, e aqui ela se aproxima de Lefort: poder pensar os direitos do homem sem naturalizá-los. A fórmula "direito de ter direitos" não será mais uma aporia.

Na época revolucionária, a invocação dos direitos não se assentava em nenhum "pertencimento comunitário". Ao contrário: era o correlato da abolição das "diferenças estatutárias", requeria o fim da condição de pertencimento e se fazia apenas em nome da "igual liberdade", único direito inato (129-130). Por aqui se vê o que Colliot-Thélène pretende retomar. Ora, mas isso não é invocar a "humanidade" para justificar "direitos iguais"? Não é conceder a ela um significado político? Não é tomá-la como "comunidade"? A ênfase de Colliot-Thélène vai no sentido contrário, não na "humanidade" ou no universalismo, mas no "individualismo". A "humanidade", definitivamente, não é um "conceito político" (131). Mas trata-se de um "individualismo" singular. Colliot-Thélène se apressa em distinguir sua posição da do liberalismo. Ou melhor: ela distingue o "liberalismo econômico" do "político", e esse último em variantes: aquele que valora a independência do indivíduo diante do Estado ou de qualquer coletivo (cuja matriz é a filosofia escocesa do século XVIII) e aquele que valora a autonomia do sujeito, vinculada a sua adesão à lei racional (cuja matriz é Kant) (140). É esse último que interessa a Colliot-Thélène. Mas, também aqui, com precisões a fazer. A principal delas reside em um reparo menos a Kant que à leitura liberal de Kant, leitura que destaca a obediência à lei e a condenação do direito de resistência. O sujeito racional apenas contestaria, "em jornais e publicações científicas", o modo de exercício do poder. Que os príncipes esclarecidos prestem atenção às críticas formuladas na esfera pública! (140). Ora, o grande problema dessa leitura é sua cegueira para a lógica do poder: ela imputa à imperfeição dos homens, e não à dominação constitutiva da política, quaisquer defeitos da positividade jurídica frente à norma racional (140). Colliot-Thélène, por sua vez, verá menos legalismo em Kant - e, como Foucault, verá mesmo "transgressão"... O sujeito livre kantiano é o sujeito que recusa as tutelas (da natureza, dos senhores, dos padres, dos dirigentes políticos...), e apenas nessa recusa se faz livre - recusa que, segundo Colliot-Thélène, só pode se manifestar como ... desobediência. Essa liberdade é "inata", ela não requer garantia do direito positivo. Se, por um lado, o conteúdo dos direitos subjetivos é independente de validação pelo direito positivo, por outro, ele requer essa validação para ser garantido: só um poder estatal pode garanti-lo. A liberdade é "inata" na exata medida em que ela não apenas não tem necessidade de ser garantida pelo direito positivo como não pode ser garantida por ele: "o direito do qual derivam todos os direitos que um Estado bem constituído deve garantir não pode ser garantido por esse Estado" (144; grifos meus). Não é senão o próprio indivíduo, na medida em que se emancipa de toda tutela, que garante sua liberdade. Colliot-Thélène forja aqui a ideia de um "direito" que escapa ao direito positivo, dependente, por sua vez, do "pertencimento". É esse "direito" que valida, que faz valer o direito positivo como direito - embora não seja ele que garanta esse último. O poder garante o direito, ele não o torna direito. Com isso, Colliot-Thélène escapa à estaturização do direito e, na mesma medida, ao imperativo do "pertencimento", e pode retomar, à maneira dos revolucionários, a linguagem do "universal". Mas escapa também, tanto quanto ao "pertencimento", à "naturalização" do direito subjetivo? Que pode ser um direito que escapa à estaturização senão um direito natural? A "naturalização" implicaria fundar o direito subjetivo na "natureza do homem" e, por isso mesmo, implicaria a "naturalização" da "humanidade". Ela recoloca o problema do "pertencimento", dessa vez o "pertencimento" do indivíduo não a uma "comunidade", mas à "humanidade". Daí por que será preciso dizer que "a humanidade entendida como coletivo, o conjunto da espécie humana, não tem outra realidade que suprassensível" (137). O indivíduo livre, portanto, não "pertence" à humanidade, ela é aquilo que os indivíduos "têm em comum", aquilo que eles "partilham", mas ele não "pertence" à humanidade como pertence a uma família, a uma tribo (138). Evidentemente, isso só é possível porque o próprio indivíduo enquanto indivíduo livre foi desnaturalizado: o sujeito político não pode ser confundido com o sujeito físico. A elegância da solução de Colliot-Thélène está em que ela passa ao largo, nessa saída kantiana, de uma concepção estatutária do direito à maneira de Kelsen, pois reconhece um "direito" anterior ao direito positivo, sem, no entanto, naturalizar esse direito, pois ele só vale pela luta do sujeito incondicionalmente livre. O direito de ter direitos não é e não pode ser estatuído, mas ele tampouco é "natural": ele só vale se o indivíduo livre o fizer valer pela luta.

O direito escapa à "estaturização", ele é "pré-jurídico" (173) e, na mesma medida, o sujeito de direito escapa ao "pertencimento". Ele não se confunde com o "cidadão", esse cuja "cidadania" foi capturada pela "comunidade estatal". É isso que permitirá a Colliot-Thélène retomar o espírito revolucionário da universalidade, da "igualdade de direitos" para todos: "só a igualdade de direitos quebra a lógica comunitária" (162). O direito de ter direitos permite, portanto, retomar a lógica da igualdade e superar aquele segundo prejuízo sobre a democracia: a "comunitarização", a "nacionalização" da cidadania. É assim que ela pretende retomar o "caráter emancipador" do sujeito de direito contra o imperativo do pertencimento. Isso não significa, evidentemente, negar que houve uma "democratização das democracias" nos séculos XIX e XX - isto é, que houve uma expansão dos direitos. Dos civis aos sociais, os direitos se expandiram em número e em alcance (por exemplo, o direito de voto). No entanto, paradoxalmente, essa democratização tem também caráter regressivo. Pois com ela as novas democracias perderam o caráter universalista que ainda tinham no período revolucionário: igualdade para todos, não "pertencimento" (185). Elas se tornaram "nacionais". O "pertencimento" se sobrepôs ao universalismo. E o "pertencimento" - ou toda lógica comunitária - só inclui excluindo: o "estrangeiro" (o não nacional) é a figura do excluído. Na lógica comunitária, o direito - pelo menos do ponto de vista do Estado - será uma "outorga", não uma conquista. A "outorga" coloca no centro o Estado outorgador. É certo que é pouco verossímil crer num Estado supranacional e em direitos expandidos a toda a humanidade. Mas não é tanto esse caráter ingênuo da tese comunitarista que Colliot-Thélène quer ressaltar. É antes o fato de ainda ser o Estado o ator principal da tese: é ele que outorga direitos. Ou melhor: mesmo que expandida a níveis mundiais, a lógica comunitária prevalece, e prevalece porque o sujeito de direito é capturado na forma de "cidadão protegido" e o direito se torna estatuído.

Mas isso não é tudo. Pois se a igualdade de direitos quebra a lógica comunitária, é verdade também que esta lógica deriva do "postulado do povo soberano" (162). Aqui está a tese mais ousada de Colliot-Thélène: a democracia à maneira theleniana "não pressupõe nenhum demos" (162). A teoria da soberania popular, como vimos, é a teoria da "lei geral" para todos, do fim dos privilégios, dos "direitos particulares", não a teoria do autogoverno do povo, não a teoria da autolegislação - reduzida por ela a um "mito" comparável ao da "origem divina do poder", e com algumas desvantagens: a autolegislação camufla o que há de arbitrário no poder e oculta sua estrutura dissimétrica, isto é, a dominação (10). Mas o que importa a Colliot-Thélène não é definir a soberania popular como legítima diante de privilégios de castas. Historicamente, não é essa a luta da hora atual. Ela não se propõe a elaborar uma teoria do poder e sua legitimidade. Trata-se antes de fazer a crítica da teoria da autolegislação e, a partir daí, buscar aquilo que é o "vetor determinante da democratização do Estado" (DDS, 10)4. Esse vetor é a figura do indivíduo sujeito de direito, não o "povo soberano". É frente a esse vetor que a ideia de "povo soberano" aparece como regressiva. Não o "povo das constituições, aquele que foi invocado para fundar a legitimidade do poder", mas o "povo vivo, aquele que impôs o alargamento dos direitos do cidadão e democratizou os Estados" (162). Foi esse último que levou, paradoxalmente, ao "fechamento da comunidade democrática" (159) - de resto, fechamento que não é o produto de uma necessidade imanente à democracia (161). Se ele ocorreu, foi como "efeito" da nacionalização da cidadania (161). É essa nacionalização que conduz a fechamento e exclusão (DDS, 12). Daí a necessidade de pensar a democracia sem demos, pois "a releitura da história da democracia moderna, tanto no plano teórico quanto no plano de seu desenvolvimento ao fio das lutas políticas e sociais dos séculos XIX e XX, leva a concluir que sua essência não reside na cidadania tal como ela é definida em um quadro nacional ou qualquer outro quadro alargado análogo" (161). A democracia, pensada a partir da exigência da igualdade de direitos, e não a partir do "povo soberano", "não pressupõe nenhum demos".

Seu vetor de democratização é o indivíduo como sujeito de direito - não o "povo soberano", não o "cidadão". Por isso mesmo, o Estado, corolário do povo soberano, não é mais o foco da análise. Noutras palavras, se há uma erosão estatal, nem por isso a democracia está condenada ao fim, pois o vetor da democracia nunca foi o Estado. Esse é o x da questão para Colliot-Thélène: é preciso desvincular igualdade de Estado. Ou melhor: é preciso desvincular o sujeito político moderno - sujeito de direito - do Estado: aquele não é o cidadão, não é membro de uma comunidade nacional estatal. Verdade que é com o Estado, com o direito estatal, que a lei passa a valer para todos. Mas - esse é o ponto - para todos os cidadãos (ressortissants) do território sobre o qual o Estado exerce seu domínio. Ela não vale universalmente. A individualização dos direitos é correlata do Estado como formação política territorial. Portanto, é com o Estado que emerge o sujeito de direito (DDS, 5). Mas o sujeito é aqui o cidadão. Ora, a tese de Colliot-Thélène consiste justamente em pensar o sujeito político moderno como sujeito de direito, pura e simplesmente, não como cidadão. No quadro do Estado, o direito não vale universalmente. Daí a necessidade, imposta pela mundialização e a consequente erosão do poder estatal, de escapar ao "quadro normativo da cidadania" (DDS, 12) - ou, o que dá na mesma, daí a necessidade de desfazer-se do "nacionalismo metodológico" (DDS, 1): "meu propósito primeiro é identificar meios conceituais suscetíveis de permitir à filosofia politica se liberar do estadocentrismo" (DDS, 1). A democracia não depende do Estado, pois, estaturizando os direitos, o Estado "nacionaliza" a cidadania, ela se torna "pertencimento estatutário", o que leva o direito ao registro da diferença, não ao da igualdade (DDS, 12). Eis aí a consequência da soberania estatal: a igualdade revolucionária interverteu em diferença... Por isso, Colliot-Thélène rejeita a distinção entre direitos civis, políticos e sociais: os primeiros valem, segundo essa distinção, para todos, universalmente (são os "direitos de liberdade"), e os outros são vinculados à comunidade, valem por "pertencimento". Essa distinção, fundada no conceito de direito, naturaliza os primeiros.

Será preciso outra concepção sobre a identidade do sujeito, uma concepção desnaturalizada: a identidade do sujeito de direito é "em devir", não "por natureza", ela é constituída "na luta". É isso que permite a Colliot-Thélène afastar as duas concepções de direito ao mesmo tempo: não há direitos mais "naturais" (os civis, "de liberdade") que outros (os políticos e sociais, contingentes, vinculados ao "pertencimento"). Ela rejeita a distinção entre "direitos liberdades" e direitos garantidos por outorga, os "droits-créance" (DDS, 11-12). Contra ambas as concepções de direito, ela opõe aquilo que é o fermento revolucionário do direito e que fez do sujeito de direito o vetor da democratização: sua indeterminação. É essa indeterminação que "faz a força" do direito, pois ela inaugura uma "historicização nova", aquela que não se assenta apenas no passado, mas se abre ao futuro. É a indeterminação do direito que abre a via para a "reivindicação" de novos direitos, que torna a "reivindicação" a forma do "devir" do direito. Se os direitos humanos se tornaram o "paradigma" dos direitos subjetivos modernos é precisamente porque eles são indeterminados, jamais concluídos. Eis aqui a razão última por que é preciso rejeitar a "naturalização" dos direitos humanos: não tanto porque a "humanidade" seja "suprassensível", mas porque a "naturalização" ignora essa abertura ao futuro, ou o devir do direito, e lhe confere conteúdos fixos. A indeterminação é a verdadeira oposição à naturalização do direito, e é exatamente isso que há de revolucionário no direito. É essa a razão última pela qual o sujeito de direito é o vetor da democratização. O sujeito político moderno, isto é, o sujeito democrático, por conta da indeterminação do direito, é um sujeito em devir, cuja determinação não é jamais acabada, e a reivindicação é a forma que torna possível esse devir (DDS, 10). Não se trata do sujeito jurídico tal como determinado pela constituição do Estado ao qual pertence, mas do sujeito aberto à possibilidade de negociar com o poder o reconhecimento de novos direitos (DDS, 13). Assim, contra a lógica comunitária e o Estado nacional implicado por ela, Colliot-Thélène sugere uma autêntica revolução copernicana na filosofia política, colocando a ênfase no sujeito que não apenas reivindica, mas valida direitos, e não no Estado que o outorga.

A indeterminação do direito é a inovação do período revolucionário e a essência da democracia moderna. Ela remete àquilo que Lefort já notava: a dissociação entre poder e direito. Verdade que essa dissociação já estava no princípio do Estado monárquico (49; ID, 53)5. Contudo, de fato, o poder do príncipe não conhecia limites, "na medida em que o direito parecia consubstancial à sua pessoa" (ID, 53). A inovação moderna consiste antes em um "fenômeno de desincorporação do poder e desincorporação do direito que acompanhou a desaparição do ‘corpo do rei’" (ID, 53 apud 49). Essa "desincorporação" significa que desaparece o "ancoradouro" do direito (ID, 54), e é isso que implica um novo tipo de dissociação entre poder e direito, diferente da do Estado monárquico. Dissociação, não cisão, Lefort se apressa em notar, pois a legitimidade do poder é mais do que nunca afirmada. Mas o direito ganha agora uma dimensão revolucionária que ele não conhecia antes e que o poder não pode dominar inteiramente. Ao contrário de Rancière, que coloca o direito na ordem da dominação e não na da democracia, reduzida por ele às "manifestações esporádicas do povo em pessoa", às "irrupções esporádicas do ideal igualitário", Colliot-Thélène põe o direito na origem dessas "irrupções": foi a figura do sujeito de direito, diz ela, que "tornou possível e pensável a política e a democracia no sentido em que [Rancière] entende esses termos" (156-157). O "homem" se torna o "ancoradouro" do direito (ID, 54), mas desde que por aí se entenda não o homem naturalizado. Daí porque, como dissemos, a indeterminação se torna a marca do direito.

Ora, mas o que é próprio de Colliot-Thélène - e que nos parece o mais discutível em sua tese - é que essa indeterminação se funda em uma espécie de transcendentalização expressa na figura de um sujeito de direito livre de qualquer condicionalidade, capaz, apenas ele, de fazer valer o direito. Ora, a indeterminação do direito requer essa solução "kantiana"? Não se trataria antes de uma dimensão própria ao direito, e que Lefort denomina "dimensão simbólica do direito" (ID, 57)? Essa dimensão torna o direito irredutível a qualquer positivação, a qualquer realização: o direito não se realiza, ele é sempre por fazer. Se é o "homem" o "ancoradouro" do direito, nem por isso se trata de desnaturalizar o "homem" para tornar o direito irredutível à sua positivação. A tese da naturalização do direito confunde sujeito político e sujeito físico. Mas fundar o direito no sujeito não é confundir sujeito político e sujeito jurídico? Talvez venha daí uma dificuldade que atravessa esse belo livro de Colliot-Thélène: ela faz o elogio constante da "luta", da "reivindicação"; o próprio direito se funda em uma "reivindicação" (39). No entanto, não se vê no livro nenhuma espécie de reivindicação coletiva, que é a reivindicação decisiva, senão a única, na criação de novos direitos. Essa ausência não se explica pelo excesso de subjetivação? Ressaltado que o direito requer luta, Colliot-Thélène trata da luta revolucionária - do único fenômeno de presença do "povo ‘em pessoa’" (147) - em uma das mais belas seções do livro. Mas é então para lembrar que o momento seguinte - o momento da "institucionalização", quando já não há mais presença do "povo em pessoa" - não realiza o fim da dominação. Mais importante que isso: para dissolver qualquer "identidade coletiva", qualquer "comunidade" a qual o indivíduo pertenceria: "os direitos são, com certeza, geralmente conquistados por movimentos coletivos, mas os grupos que conduzem as lutas (...) são muito desigualmente formalizados e sua existência é mais ou menos longa" (157). Ora, isso implica tomar o "grupo" em perspectiva jurídica, não política: o "sujeito" político, cuja "identidade" é forjada na luta, é dissolvido em forma única, a jurídica, e por isso não resta senão o indivíduo sujeito de direito. O resultado disso é colocar a liberdade individual no centro da História. Merleau-Ponty, quando se propôs a investigar o outro lado da liberdade, - o passado, a passividade, o "sedimentado", a natureza - justificava sua pesquisa pela pretensão de escapar a uma visão "imaterialista", um pouco fantástica, da História. Essa visão é aquela de Sartre, por exemplo, puramente "ética". Colliot-Thélène, malgrado a exigência da "luta", malgrado a fundação do direito na "reivindicação", não termina por reatar visão análoga da História, na medida mesma em que faz do sujeito livre o ator único dessa "reivindicação", o único a validar o direito? Seria muito instrutivo narrar a construção da imagem do Kant "transgressor" - o mesmo Kant que interdita a desobediência, a resistência ao poder, quaisquer que sejam os abusos desse poder. Foucault acrescenta um capítulo à construção dessa imagem. Mas que pode significar "transgressão" - ou melhor: que significado político pode ter uma "transgressão" que, por um lado, é ousadia subjetiva e, por outro, piedosa obediência? Colliot-Thélène pretende salvar apenas um dos lados da moeda, a ousadia subjetiva, mas ao preço de fazer da coletividade - que já foi essencial ao jogo político - mera figurante. Sem "demos", ela faz da subjetividade a protagonista de uma História "ética".

































fevereiro #

5



ilustração: Rafael MORALEZ






1Monica Loyola Stival discutiu longamente comigo o texto que segue. Pelo incentivo e pelas observações, não raro desconcertantes, agradeço muito a ela enormemente. A responsabilidade, contudo, é toda minha.

2Ao tratar de Kant, e segundo mesmo princípio, Colliot-Thélène vai lembrar que ele rejeita a lei que estabeleceria uma "nobreza hereditária": "é impossível que tal lei acolha o assentimento de todo um povo" (79)…

3O que não significa dizer que ele não abole a dominação porque não é totalitário. Para Colliot-Thélène, a dominação é intrínseca a todo exercício poder, não importa qual forma.

4- Colliot-Thélène, C. Démocratie et drois subjectifs dans le contexte de la mondialisation. Mimeo. Notado DDS.

5Lefort, C. A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1987. Notado ID.