revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Alexandre CARRASCO

breve comentário às observações de Yara Frateschi em "por que perpetuar a ditadura ?"

 


Em seu comentário ao texto de Paulo Arantes, "1964 o ano que não terminou"[Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs), O que resta da ditadura?, Boitempo Editoral, 2010] publicado na Fevereiro #5, Yara Frateschi levanta uma boa série de objeções válidas, alguma até mais do que válidas. Seu objeto, ao qual se opõe, é um ponto de vista mais ou menos cristalizada em certos meios, que pode ser resumido nos seguintes termos: a ditadura continua no Brasil. Ponto de vista que Paulo Arantes leva à excelência. Essa afirmação traz consigo alguns corolários, entre os mais notáveis, o seguinte: a democracia brasileira é de tal ordem "formal" (ou simplesmente postiça) que falsifica a própria ideia de democracia. Ou ainda, levando o desenvolvimento disso mais longe: a democracia, qualquer que seja, é uma fraude. Chegamos, assim, ao famigerado "estado de exceção". Parece algo óbvio a relação entre a ditadura que permanece e democracia que não há, mesmo que uns e outros digam o contrário.

Não vou recuperar todo o debate que faz Yara, nem as nuanças do próprio texto de Paulo Arantes,vou deter-me em dois ponto. Um, que considero o momento mais preciso do comentário de Yara. O segundo, em estreita relação com o primeiro, que considero o elemento mais problemático, porque vago, de seu comentário. Entre um e outro, a noção arentdiana de juízo político.

Começo pelo ponto forte do comentário: o risco que assumem certas análises de, ao elevarem a crítica a democracia "à enésima potência", advogarem a favor do "adversário": negar a especificidade da democracia - e mais, da democracia brasileira - significaria o quê? Parece que o resultado imediato disso, de tal crítica e da voraz "crítica da crítica", serve (involuntariamente?) também àqueles que, não acreditando na democracia, não precisariam se comprometer com o dilema tipicamente burguês de democracia e modernização - e já não estaríamos falando de uma personagem bastante precisa?

Recupero o argumento: no contexto brasileiro, de "democracia tardia" e da presença mais ou menos constante, não apenas de um "pensamento autoritário", mas de uma "cultura autoritária", a crítica à democracia não serviria muito mais para reavivar a saída e a deriva autoritária e de força do que fazer "avançar" a democracia, se é que pretende isso? A crítica radical à democracia não nos levaria a um messianismo bem conhecido?

Ainda retomando o fio da meada. Tal dilema entre nós - modernização e democracia - teve seu ápice histórico nos últimos impasses da "república populista" (1945-1964), e desembocou em nossa mais recente ditadura, como solução "autoritária e de força", "inevitável" como se pode bem supor, desatando, assim, o nó górdio da formação nacional, conforme narra o oficialismo verde-oliva. O conhecido pensamento autoritário brasileiro, presente, por certo (e como não?), na ditadura brasileira, que, como foi bem observado, fora "modernizadora", pretendeu superar esse dilema, como que saltando por sobre ele, o que significa, sem maiores cerimônias, negar-lhe um dos termos, no caso em questão, a democracia. Assim, entre os "castelistas" e a "linha dura", todos eram modernos a seu modo - internacionalistas ou nacionalistas - ainda que advogassem a mesma fraseologia regressiva de rábula do interior, com suas recorrentes preocupações com a moral, os bons costumes e a família brasileira. (Apenas como curiosidade: os danos causados à inteligência, pela ditadura, parecem estar longe de serem superados.) Em resumo: há uma pré-disposição "nacional" em tomar a democracia como valor postiço e esse dado do senso comum local parece percorrer todos dos espectros de nossa cultura política, o que significa, primeiro, que o argumento não é novo. Segundo, que é crucial situar seu contexto: o "sentido" que faz tal crítica, e por que "faz" tal sentido criticar que a democracia, tem uma especificidade não irrelevante. Daí, a precisão do comentário de Yara: perpetuar a ditadura por meio da crítica à democracia, a consequência de afirmação peremptória de que "nada mudou", pode sim ser sintoma do pensamento autoritário entre nós, o que, naturalmente, leva-nos ao problema "epistemológico" de compreender porque certas cabeças notáveis não conseguem pensar a democracia no Brasil. Não trataremos disso em um breve comentário.

Façamos outro exercício. Tomemos a recente história latino-americana. A experiência anti-democrática brasileira é, pelo menos no detalhe, muito diversa da Argentina, para ficarmos na comparação mais recorrente. Que se destaque uma variável precisa. Lá, entre 1955, com a queda de Perón, até 1983, com a redemocratização, a ditadura se dá sem continuidade. Há quebras da continuidade autoritária em 1958/1962 (presidência de Arturo Frondizi), em 1963/1966 (presidência de Arturo Illia, antecedida de uma fase de transição em que o presidente do senado José Maria Guido governou o país), em 1973/1976 (presidência de Héctor J. Cámpora, Perón e Isabel Perón)1. Isso, por si só, traduz uma descontinuidade de natureza bastante diversa da descontinuidade brasileira (alternância entre os "partidos" da linha dura e dos "castelistas"). Também é índice de menor coesão ideológica e mesmo política daqueles que assumem o mando pela força, no país vizinho. O saldo dessa diferença pode ser mensurado, como hipótese, de algumas maneiras: a sobrevivência do peronismo pós-ditadura, na Argentina, a maior força política (e em ascensão) antes da ditadura, pode ser uma pista para supor como a ditadura argentina foi incapaz de cooptar politicamente uma maioria social. As condições políticas para os julgamentos de ditadores, torturadores e seus asseclas decorreria disso. Por outro lado, no Brasil, a emergência de novos atores políticos no fim da ditadura, entre os mais notáveis, o Partido dos Trabalhadores; a capacidade ou não desses atores em formar maiorias sociais não-autoritárias, e sob que condições; as transformações modernizadoras (em sentido regressivo) que a ditadura impingiu ao país, tudo isso pode indicar o modo pelo qual a ditadura "se impregnou" na sociedade brasileira, instituindo novas variações de sociabilidades e de práticas. Por contraste, pode-se dizer que não há um único ator político relevante hoje, no Brasil, que venha da cultura política pré-golpe. E seguindo na analogia, fica compreensível (mas não aceitável) o motivo pelo qual a sociedade brasileira se recusa a julgar os criminosos da ditadura brasileira, recusando lastro político a qualquer tentativa legítima de levar a juízo os perpetradores de torturas e assassinatos. Mal resumindo: parece crível supor que a sociedade argentina sai menos diferente do que entrou na ditadura, ao passo que no Brasil dar-se-ia o oposto. Sem muito aviso, estou coordenando os dois elementos que pretendo destacar do comentário de Yara. O primeiro: rechaçar hoje, sem mais, a especificidade da nossa democracia, pós-ditadura, é retornar à uma tópica recorrente ao pensamento autoritário brasileiro e bloquear, por extensão, a possibilidade de pôr em questão nossa democracia nos seus termos. Explico-me: como fazer a crítica da democracia por mais democracia? Sem esquecer que, se há laivos autoritários na esquerda brasileira desde sempre, o pensamento anti-democrático no Brasil é tipicamente de direita. De modo que, uma crítica "de esquerda" à democracia leva a já se adivinha onde: ao colo do pensamento autoritário de direita. Por outro lado, há que se conceder que a ditadura permanece relativamente presente no Brasil: o período autoritário brasileiro mudou profundamente o país; à parte sua herança moderna (para os interesses do capital, vale lembrar), ele produziu um regressão política, social e civil, digamos assim, sem precedentes. E hoje, boa parte dos dispositivos democráticos adormecem por falta de conteúdo social que os reivindique e que os mobilize, por falta não simplesmente de atores, para falar a língua da ciência política, mas sim por falta de script a esses atores. Aliás, esse era um dos propósitos do general Golbery: esvaziar de conteúdo real a representação política. Do habeas corpus aos diretos fundamentais à educação, à saúde e à moradia (por exemplo), há um inegável hiato entre forma e conteúdo. Ou por outra: há uma evidente demanda aparentemente incapaz de se mobilizar politicamente. Isso se traduz e também é indício de uma desmobilização social mais ou menos pregnante, mas naturalmente nem eterna, nem fatal. Noto que não pretende com isso advogar a tese de uma sociedade simplesmente desmobilizada (e, mais uma vez, acompanho o comentário de Yara), mas de que a mobilização política no Brasil de hoje mostra-se mais custosa e oblíqua, porque foi uma prática socialmente "desaprendida", "abolida" (a despeito dos vários momentos de intensa mobilização social durante a ditadura), deslegitimada socialmente. A melhor compreensão disso se dá quando se considera, sem exageros, que a ditadura brasileira cooptou parte importante da sociedade, e foi relativamente legitimada, a ponto de se poder defendê-la abertamente em jornal de circulação nacional, algo impensável hoje na Argentina, mesmo para o mais desvairado gorila (anti-peronista empedernido).

Ora, diante desse quadro é que se poderia perguntar quais as condições de possibilidade para o juízo político no Brasil, pensando naturalmente na teoria arenditiana do juízo político e no uso que Yara faz disso em seu comentário. Há que se lembrar que aqui não se fala nas condições transcendentais de tal juízo. Talvez a dificuldade de compreensão disso ou a confusão em torno da natureza desse problema, a saber, como diante da instauração de uma sociabilidade regressiva, poderia a democracia "funcionar"?, é que torne compreensível certo sucesso de público que os advogados do "estado de exceção" desfrutam. Porque a experiência parece nos dizer que não estão dadas essas condições. O que, por outro lado, não significa que elas não possam ser dadas, e só o poderiam a partir das imperfeições e dos impasses de uma democracia qualquer.

Claro que o problema não se resume assim tão simplesmente: o que se depreende do texto de Paulo Arantes é que há uma impossibilidade "especulativa" para tal juízo político - que em "circunstâncias democráticas" se dá em um espaço aberto, público, em que se poderia construir um diálogo a partir da perspectiva do outro. Essa impossibilidade, não sendo meramente discursiva (oposição entre democracia e ditadura), seria "lógica": não haveria "condições democráticas" em sentido especulativo para o juízo político, e isso é que seria o "não-sei-que-critério" que Yara rastreia na crítica de Arantes como o modo pelo qual o autor nega a possibilidade de uma "emancipação" democrática, qualquer que ela seja. Não haver política de reconhecimento e de redestribuição que o faça mudar de ideia significa tão somente que não há política.

Abramos um parênteses. Esse pressuposto que nunca se põe (o "não-sei-que-critério"), ao não poder ser posto, revela-se, afinal, radicalmente anti-dialético e dogmático. O que significa que não importa o que ocorra, a democracia não se efetiva. Essa nota especulativa não vem sem propósito: apontar para isso é indicar o modo formal de se recusar a pôr - aqui, o juízo político - em mediação, de se recusar, por princípio, as condições não transcendentais para o juízo político, o que significa, em última instância, recusar a política como mediação positiva. E isso podemos assimilar como análogo à indeterminação como caráter constitutivo da democracia, como aponta Lefort: uma indeterminação positiva, mas não abstrata, que torna possível que a crítica à democracia seja crítica por meio da democracia, para uma democracia mais "democrática" ainda.

Suspeito que assumir tal indeterminação positiva equivaleria, no esquema de Arantes, a uma queda sem mais no entendimento, que, por definição (sua finitude) não supera, não ultrapassa a finitude das condições dadas. Trocando em miúdos: pretender melhorar aqui e acolá, por meio da democracia como modo de ser do que é possível, seria aceitar que, afinal, nada se muda. Fecho esse parênteses hermético e concluo.

Salta aos olhos o rebaixamento da democracia à condição de ditadura travestida. Algo, porém, permanece daqueles anos: menos a memória dos que precisam ser lembrados, mais uma adesão à ordem não raras vezes violentamente contrária ao outro, a herança moderna da ditadura, o pão nosso de cada dia. Entre um, e outro, um certo trabalho ingrato, do juízo e da política.

Talvez, diante disso, a memória seja o mais precioso dos instrumentos: porque diferente do que nada mudou ou do que tudo mudou (que não é o teor do comentário de Yara), vale o que se lembra, o que pode ser lembrado, e o que deve não ser esquecido, a diferença viva entre o que passou em silêncio (político e social) e o que há para se lembrar em viva voz, o que se lembra abertamente.

Daí a importância relativa de certos discursos, não pelo que dizem, mas pelo que nos levam a lembrar. E lembremos que a lei da anistia (Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979) não foi nem ampla, nem geral e nem irrestrita. Que se aprovou por margem mínima (206 votos contra 201) uma lei de anistia restrita, e que se permitiu "anistiar" os perpetradores oficiais de tortura e assassinatos - a chamada anistia de "dupla mão". Os votos contrários foram daqueles que queriam a anistia ampla, geral e irrestrita. Que desde então se estabeleceu uma simetria perversa no senso comum, fazendo equivaler o legítimo direito de resistência (legítimo mesmo em um estado hobbesiano) e o puro arbítrio do estado. Lembremos que foi na aplicação da lei de anistia, nos tribunais, que se ampliou, paulatinamente, seu alcance. Vamos lembrar que parte da oposição à ditadura "aceitou" os termos dessa lei para que se começasse o processo de relaxamento das prisões políticas, para que tal pauta entrasse, então, na ordem do dia. Lembremos que o Supremo Tribunal Federal poderia não ter recepcionado (em virtude dos princípios constitucionais da Carta de 1988) o absurdo jurídico que representa nossa lei da anistia, com seu dispositivo de "mão dupla". Lembremos todos os mortos ainda sem sepultura e a marcante indiferença social em relação a isso - o que também é nossa democracia. Vamos lembrar e não esquecer.

































fevereiro #

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1Boris Fausto, Fernando J. Devoto. Brasil e Argentina. Um ensaio de história comparada (1850-2002). Editora 34, São Paulo, 2005. p. 397.