revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Panteleimón ROMÁNOV1

contabilidade italiana

 

tradução de Moissei MOUNTIAN2

colaboração de Daniela MOUNTIAN

 


Já havia quase três horas que uma família de cinco pessoas estava sentada à mesa para preencher o formulário... As perguntas eram as habituais: qual a idade, origem social, o que fazia antes da Revolução de Outubro, etc., etc.

− Que trabalho dos diabos, sinceramente não tenho mais forças pra isso - disse o pai, limpando o pescoço grosso e suado. - Apenas cinco linhas sarnentas, mas dão um suor, parece que estou puxando uma carroça.

− Onde paramos? - perguntou a esposa.

− Onde... sempre no mesmo lugar, na origem social. Eu esqueci o que escrevi da última vez, apenas isso.

− Talvez passe, quem sabe nem percebam?

− Como é que não vão perceber se vai pra mesma repartição, não diga tolices.

− Parece que você escreveu ser de origem clerical - disse o filho mais velho.

− Não, não, de origem advocatícia, eu me lembro - disse o mais novo.

− Mas isso nem existe. Se não entende de nada,não se intrometa. E pra que essa barriga em cima da mesa ?..

− O que está fazendo, paizinho? - perguntou o vizinho ao entrar no aposento.

− Pois é, sempre na mesma questão...

− Mas você age com muita cerimônia. Aqui é necessário ter mais coragem.

− O que significa isso? Não tem nada a ver com coragem, o negócio é que eu esqueci a origem social do formulário passado. Estou tentando dar um tiro no escuro. Se escrever que é de tal origem, pode não condizer com a profissão. Já estraguei três folhas. Lá vou eu pedir outras. Fico até sem jeito.

− Acima de tudo, é necessário prestar atenção na origem.

− Mas já faz três horas que estamos prestando atenção nisso... Numa folha eu escrevi origem clerical, então fiquei com medo. Depois me apresentei como um cidadão honorário, mas hoje em dia isso é uma honraria inútil... Oh, Deus, quando poderemos respirar livremente!.. Veja bem, meu avô era um deão, meu pai um proprietário rural (muito pequeno), já eu sou um nobre honorário...

− Hereditário...

− Melhor dizendo, hereditário. Então, na verdade, qual seria a minha origem ?

− Isso nem pr’o diabo serve - disse o vizinho inclinando-se sobre a mesa com uma carranca. - Mas nesta folha, ao que parece, está escrito: filho de uma faxineira e um pedreiro.

− Não, isto eu... eu apenas rascunhava uma combinação...

− Mas achou uma combinação bem esquisita - disse o vizinho -, por que precisamente uma faxineira com um pedreiro? Sugere ideias meio indecentes.

− Sim, tem razão.

− Então, pulem esta parte, senão a cabeça dele vai ficar ainda mais cheia - disse a esposa.

− Que seja, não há nada a fazer, passemos adiante. Mas isto aqui é ainda melhor: no item seguinte perguntam o que eu fazia, veja bem, antes da Revolução de Outubro e como eu colaborei nela. Tratem de inventar alguma coisa.

− Participava das procissões - disse o filho mais novo.

− Que bobagem, qualquer asno pode participar das procissões.

− Escrevia panfletos - disse o mais velho.

− E onde estão eles?... Só o diabo é que sabe. No início, isto tudo podia ser até hilário, mas, agora, não tem graça: amanhã é o último dia de entrega, e nada ainda. Por ora, terei de pular este item também. Agora: recebe algum ordenado? Se eu escrever que recebo, será necessário dizer quanto. E, em consequência, tomarei um imposto. Mas, se eu escrever que não tenho ordenado nenhum, irão se perguntar: de onde vêm os recursos dele? Quer dizer, eu teria ocultado um capital. Mas que tratado diabólico. Uma espécie de contabilidade italiana.

− Eis o que você deve lembrar como uma regra geral: dar respostas sucintas e, de preferência, usar tracinhos. Mantenha-se numa posição passiva, e não ativa.

− Excelente. Só que aqui eles nos sugerem responder às perguntas. E, por obséquio, se me perguntam qual é a minha origem social, isso seria o quê? Ativo ou passivo?.. Ah, chegou Micha, uma figura oficial. Ajude-me, irmão, vocês nos torturam com esses seus formulários...

− O que tem aí? - perguntou ao entrar o homem corpulento, que vestia uma blusa cingida por um cinto estreito.

− Pois temos aqui uma nova distração: estamos decifrando um rébus.

O recém-chegado também apoiou os cotovelos na mesa, puxou as folhas para si e franziu a testa. Todos olharam para ele com esperança e expectativa.

− Por que você preencheu desse jeito estranho? - perguntou ele, olhando para o dono da casa com perplexidade.

O pai enrubesceu, sorriu desnorteado e disse:

− Porque nós aqui, por assim dizer... fazíamos uma combinação pra ver no que daria...

− Bela combinação: numa folha você é um cidadão honorário, e na outra um oriundo do clero... Mas quem é você na verdade ?

− Como assim quem ?

− Bem, qual é a sua origem ?

− Hum... meu avô era um deão, meu pai um proprietário rural (muito pequeno), já eu...

− Então escreva que é oriundo do clero. E fim de papo.

− Mas e se de repente...

− "E se repente" o quê ?

− Então, está bem, eu apenas tinha começado a rascunhar.

− Viu só, em cinco minutos resolvemos tudo. Bem, estou com pressa.

Quando o homem corpulento saiu, o dono da casa limpou a testa suada e olhou em silêncio para o vizinho:

− Mal me olhou, esqueci que é meu cunhado. Oh, Deus, tenho medo de qualquer um. Ainda bem que eu inventei essa de rascunho. Olha só o que ele deu de escrever.

E, olhando para a porta, rasgou a folha e atirou os pedacinhos à fornalha. Depois, esticando o corpo, disse:

− Não, não consigo mais, melhor amanhã de manhã, com a cabeça fresca.

A esposa, que havia saído a algum lugar, aproximou-se da mesa e deu uma espiada no formulário. Diante dela jazia uma folha em branco.

− Não conseguiu escrever nada ?

− Somente a idade.

De noite, a esposa despertou e viu o marido sentado à mesaapenas com roupa de baixo e meias.Ele segurava a cabeça e balbuciava:

− Então, está bem, vamos supor que eu seja um profissional liberal, mas de qual tipo ?... Se eu escrevia panfletos, e eles queimaram... Bem, comecemos do início:

Meu pai era um proprietário rural, meu avô um nobre honorário, já, eu, sou um deão.

Oh, meu Deus, eu vou subir pelas paredes !...

 

1921

































fevereiro #

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1O conto "Contabilidade italiana" (Italiánskaia bukhgaltiéria) foi traduzido de Panteleimón Románov, Sviétlye Sny, roman, rasskázy. Moscou: Moskóvskii Rabótchii, 1990, p. 115-118.

2Moissei Mountian, nascido na Moldávia, então parte da URSS, é tradutor e editor da Revista e Editora Kalinka.