revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

 

apresentação

 


Após um intervalo mais longo do que o previsto, o leitor tem em tela o 6º número da revista Fevereiro. Estávamos com a maior parte dos textos praticamente prontos e prestes a subir a revista para o nosso site, quando fomos surpreendidos pelas manifestações país afora. Resolvemos, então, segurar a publicação - a vantagem é que no formato on-line isso não envolve “parar as máquinas” - e nos mobilizar para preparar algumas reflexões acerca do que houve nas ruas no conturbado mês de junho. O interessante é que, ao final, com todo o material em mãos para montagem deste número, notamos uma inesperada convergência entre os textos finalizados antes e depois das manifestações.

Conforme as números anteriores da Fevereiro, organizamos os textos deste número em diferentes seções temáticas. Na primeira seção, foram agrupados quatro textos, todos tratando de questões contemporâneas, mas a partir de objetos bastante distintos. Na abertura, Cícero Araújo analisa o julgamento da Ação Penal 470 - referente ao assim chamado “mensalão”. O texto sublinha que ao se acompanhar a atuação do Supremo Tribunal Federal - desde a recusa a desmembrar o processo, passando pela definição dos réus, até a forma dedutiva que presidiu os votos dos ministros na condenação de alguns dos acusados - fica-se com a impressão de que o julgamento foi, grosso modo, conduzido por uma lógica muito mais afeita ao cálculo político do que aos autos. Sem fazer coro aos que pleiteiam um cordão ao redor do STF que sirva de isolamento à política, o articulista convida o leitor a ver o julgamento não como um “ponto fora da curva”, mas como um “momento especialmente nevrálgico”de um movimento profundo de afirmação do STF em detrimento de outros órgãos constitucionais; um movimento que coloca questões inquietantes para nossa democracia. Araújo ainda aborda os desdobramentos do julgamento para seu outro protagonista, aquele que, na maior parte do tempo, esteve sentado no banco dos réus: o Partido dos Trabalhadores. Qual seria o impacto na identidade do PT - tanto no imaginário de seus próprios militantes quanto no da sociedade em geral - da condenação de quadros históricos do partido em um caso de corrupção, uma vez que - ao menos desde o início da década de 1990 - o partido insistiu em calcar sua imagem na de defensor da moralidade na política? Para além dos efeitos eleitorais a curto prazo, o articulista advoga que caberia indagar até que ponto não teria sido deflagrado um processo irreversível de corrosão de um dos principais patrimônios políticos do Partido dos Trabalhadores. Antecipamos que outro texto de Cícero Araújo publicado neste mesmo número busca averiguar, precisamente, em que medida as recentes manifestações não reforçariam alguns processos desencadeados pelo julgamento do “mensalão”.   

Na sequência, transitamos para um texto escrito pelo historiador Yves Cohen em que encontramos uma análise da trajetória do discurso da liderança e da figura do líder em quatro diferentes países - Estados Unidos, Alemanha, França e União Soviética - cobrindo os cinquenta anos de intervalo entre 1890-1940. Por meio dessa chave histórico-comparativa, o articulista abre a possibilidade de mostrar que, independentemente do regime político e dos diferentes traços culturais de cada uma das sociedades analisadas, a figura do líder e o discurso da liderança tiveram um papel central para a organização política e social ao longo de toda a primeira metade do século passado. Considerando, no entanto, as manifestações que vimos nos últimos tempos, de “Tunis a Moscou”, Cohen questiona se a figura do líder continuará desempenhando um papel tão fundamental para a organização política deste século como desempenhou para o que passou. O historiador sugere que estaríamos entrando em um tempo em que as multidões recusariam qualquer um que queira arrogar-se à condição de líder para dirigi-las.

Na mesma linha de relacionar os problemas legados pelo século passado e os desafios para o atual, Américo Kerr coloca em questão como poderíamos pensar o desenvolvimento de uma sociedade sustentável. Kerr parte do debate entre fontes renováveis e não-renováveis de energia para contestar certas concepções de que nossos problemas ecológicos poderiam ser resolvidos por meio de uma transição de matrizes energéticas desacompanhada de uma profunda mudança na estruturação de nossas sociedades capitalistas. Ao longo do seu argumento, o autor vai ao encontro de um dos tópicos que esteve no cerne das mobilizações das últimas semanas: o modelo de transporte. Kerr aponta que seria impensável alcançar um modelo sustentável de sociedade, por mais renováveis que possam se mostrar os novos combustíveis, sem uma transição do transporte individual para o transporte público.

Esta primeira seção encerra-se com um artigo de fôlego de Peter Uwe Hohendahl que visa reconstruir as disputas em torno da ideia moderna de universidade nos debates sobre o ensino superior na Alemanha Ocidental do pós-guerra e nos Estados Unidos das décadas de 1980 (conservadores vs. multiculturalistas), e 1990 (liberais vs. neoliberalismo). Em ambos os casos, por uma indistinção entre a universidade humboldtiana tal como historicamente constituída na universidade de Berlim do século XIX e o ideal humboldtiano de universidade, o nome de Humboldt  seria invocado - seja implícita ou explicitamente - de maneira ambivalente. O interesse de Hohendahl reside em mostrar que somente através de uma reconstituição do debate em torno da ideia moderna de universidade a partir dessa distinção seria possível reatualizar conceitos como os  de “autonomia universitária”, “Bildung” e “comunidade de aprendizes”, essenciais ao ideal humboldtiano, para poder fazer frente ao modelo de ensino superior regido pelos ditames investimentos e contrapartidas, do treinamento para o mercado e da administração gerencial que imperam no atual modelo neoliberal de universidade.

Um tanto mais enxuta, a segunda seção da revista abre espaço para um breve debate entre nossos articulistas. O mote é a visita Yoani Sachéz ao Brasil no mês de fevereiro e a deixa, um texto sobre sua repercussão escrito por Maria Caramez Carlotto. Nesse texto que dá a partida para o debate, Carlotto nos conduz por uma incursão bastante instrutiva no excêntrico imaginário de nossos partidos políticos conforme expresso nas diversas manifestações contra e a favor da blogueira ocorridas durante a sua rápida passagem pelo país. Ao seu texto, seguem-se intervenções de Ruy Fausto e Alexandre Carrasco, que analisam criticamente a abordagem que a articulista confere à visita de Sanchez. O debate se encerra com um breve comentário de Carlotto, que pretende apontar para as diferenças disciplinares que separam a sua perspectiva da de Carrasco e de Fausto.

Entrando em seara mais teórica, este número conta com uma seção composta por três textos estruturados em torno de embates a respeito do que seria uma posição crítica de esquerda. O início fica a cargo de um artigo de Ruy Fausto, que dá prosseguimento a um debate com Vladimir Safatle sobre o conceito e as tarefas da esquerda hoje. O artigo consiste em uma resposta daquele articulista a um texto publicado em blog de uma revista de cultura, em que Safatle contesta as críticas de Fausto ao seu livro A esquerda que não teme dizer seu nome. Agora, retomando, desenvolvendo e esclarecendo os argumentos contra o livro de Safatle formulados no post-scriptum do texto “Esquerda/direita: em busca dos fundamentos e reflexões críticas”, saído em nosso número anterior de Fevereiro, Fausto visa expor com maior detalhe e extensão as questões teóricas de fundo que sustentam suas principais divergências com as posições de Safatle.

O texto seguinte, de José Szwako, analisa a transformação do exercício da crítica nos trabalhos de um dos principais centros de estudos políticos e sociais do país, o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, mais conhecido como CENEDIC. O autor sustenta que, no início dos anos 2000, à medida que seus principais pesquisadores assumem o diagnóstico de que o neoliberalismo implicou um fechamento do horizonte de emancipação, o Centro deixa a fértil crítica que desenvolvia desde sua fundação, por meio do potencial normativo contido em conceitos como “cidadania”, “direito” e “espaço público”, degenerar nas aporias de uma “atitude hipercrítica”. A mesma contradição que Habermas atribui à Dialética do esclarecimento afetaria, sempre segundo o autor, a crítica promovida pelo CENEDIC que, por excesso, ganharia um caráter afirmativo. Isso porque, com o embotamento de toda dimensão normativa da teoria, seriam perdidos os próprios critérios da crítica e, com eles, a própria possibilidade de se contestar e superar o presente estado de coisas.
Fechamos essa seção com um texto de Mônica Stival, que contrapõe as diferentes posições que Foucault e Habermas apresentam em relação ao papel do direito nas sociedades modernas. Enquanto Foucault atribui ao direito a função de reforçar o ethos da concorrência à medida que a economia política passa a definir os padrões de validade das normas jurídicas, Habermas ressalta o papel comunicacional presente no direito como essencial para a integração da sociedade moderna. Essas diferenças remontariam, segundo Stival, ao diagnóstico de cada autor em relação ao papel do direito quando da superação do quadro das sociedades tradicionais.

Esta Fevereiro segue com toda uma seção dedicada exclusivamente às manifestações de junho. Ela abre com uma longa entrevista realizada por Maria Caramez Carlotto com Lucas Monteiro, militante do Movimento Passe Livre. Por meio da entrevista, o leitor tem a oportunidade de conhecer melhor a história política do MPL, tratando da sua relação com o movimento alter mundialista, com o Fórum Social Mundial e com iniciativas como o Centro de Mídia Independente. Amplia-se também o conhecimento dos principais pontos de vista teóricos que balizam a posição política do movimento, bem como os princípios que orientam a organização do movimento e a sua relação com partidos políticos. Por fim, discute-se igualmente as estratégias do movimento para a revogação do reajuste e a sua avaliação das conquistas obtidas e dos desdobramentos das manifestações.

Em seguida, perfila-se uma sequência de textos escritos por três membros do nosso comitê editorial sobre as manifestações de junho. No primeiro deles, Cícero Araújo procura retomar as reflexões feitas em seu texto do “mensalão” à luz do sentimento antipartido vindo à tona durante as manifestações. Sem deixar de saudar a contribuição dada pelo Movimento Passe Livre no sentido de impulsionar uma retomada do espaço público dos agentes da sociedade incivil e de quebrar o corporativismo de grande parte dos partidos, sindicatos e movimentos sociais tradicionais, Araújo manifesta suspeita quanto algumas tendências que despontaram nas manifestações indicando uma perigosa recusa a toda forma de política institucional que reforçaria tendências em curso que colocam riscos a algumas de nossas conquistas democráticas. Na sequência, Ruy Fausto avalia o significado dos movimentos recentes para a esquerda nos país. Sua análise enfatiza sobretudo as potencialidades e os limites que movimentos que se articulam por meio de organizações horizontais apresentariam para fazer avançar as pautas de esquerda no país. Fechando a seção, Maria Caramez Carlotto parte da questão de “quem são” e “o que querem” os manifestantes que tomaram as ruas de São Paulo em junho deste ano. Pois seria à luz da composição social das “jornadas paulistanas” e das principais pautas levantadas que se tornaria possível apreender o potencial político desses movimentos. Desviando das interpretações que enfocam exclusivamente os efeitos dos protestos em âmbito nacional, a autora sublinha a importância da questão urbana local para a mobilização dos manifestantes de junho.

Já caminhando para o fim, a Revista traz, ainda, uma quarta seção com textos de cunho mais cultural. No primeiro deles,Alexandre Carrasco analisa mais um fruto da interessante cena cinematográfica contemporânea do Recife - o novo longa-metragem do diretor Claudio Assis, Febre do rato. O filme, como nos conta Carrasco, narra a vida de um conjunto de personagens bem pouco convencionais agrupados em torno de Zizo, um poeta marginal, morador da periferia do Recife. Para o articulista, tanto no seu conteúdo quanto na sua forma, o filme resgataria a temática da promessa de uma outra sociabilidade que Antônio Cândido analisava em seu clássico ensaio “Dialética da malandragem”. Segundo Carrasco, Febre do rato poderia ser visto como uma message in a bottle que anunciaria para um tempo ainda por vir a possibilidade de uma outra imaginação que fosse capaz de inventar uma ordem de outra ordem; a saber, uma ordem surgida do seio de um anarquismo latente no potencial - tantas vezes reprimido - de nossa cultura popular.

Prosseguindo nessa mesma seção, há ainda um texto de Ruy Fausto se posicionando no recente debate travado pelo crítico Roberto Schwarz e o músico Caetano Veloso. Em linhas gerais, Fausto procura mostrar que da mesma maneira que Schwarz se vale das relações entre política e estética para criticar o livro de Caetano, a relação entre política e estética também permitiria uma metacrítica a Schwarz. Nessa medida, sem desconsiderar o acerto de diversos reparos de Schwarz ao livro de Caetano, Fausto previne, ao mesmo tempo, que determinadas censuras que o tropicalista faz às ilusões e às tendências totalitárias da esquerda antes, durante e após a ditadura têm muito mais sentido do que o crítico marxista gostaria de admitir - e acabariam atingindo as próprias posições de Schwarz. O ponto é que a prosa provocadora e polemista de Caetano muitas vezes necessita de uma “dupla leitura” para acertar as posições pontuais de um determinado trecho com o sentido mais geral do livro. Em suma, encontra-se aí um debate muito interessante, desafiando o confinamento de especialidades e competências em prol de uma questão carregada de generalidade.

O mesmo Alexandre nos traduz uma resenha escrita por Mélisande Labrande sobre o novo livro de Emmanuel Carrère, vencedor do prêmio Ronaudot, que se vale da ficção e da realidade - no caso, já por si bastante extravagante - para contar a vida dessa estranha figura que é o soviético Éduard Limonov.

Na nossa tradicional - mas nem um pouco tradicionalista - seção literária, temos um poema em prosa de Nuno Ramos e um poema de Edgard Lee Master (traduzido por Alexandre Barbosa e acompanhado de um vídeo de Daniel Nasser). No mais, remetemos à apresentação que precede à seção redigida por Marcela Vieira.

E, para encerrar mesmo a fatura, na seção em língua estrangeira, publicamos o original em francês da resenha de Mélisande Labrande.

Mas antes de colocar o tão protelado ponto final nesta apresentação já bastante extensa, toda a equipe de Fevereiro gostaria de agradecer mais uma vez o trabalho de concepção e produção do projeto gráfico da nossa revista desempenhado até aqui por André Lopes. Agora, soma-se a André Lopes, Luís Arnaldo Ribeiro, que cuidará do dia-a-dia operacional da revista. Fica aqui também nossa já usual menção especial à Marcela Vieira que além de compor a equipe editorial da Revista também assume o difícil trabalho de revisão de todos os textos. Desta vez, pela quantidade e extensão da revista, queríamos conferir uma ênfase especial a essa menção. Lembramos ainda que os leitores contam sempre com a possibilidade de nos enviar críticas, sugestões e comentários pelo nosso link de contato.









fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez




ilustração:Rafael Moralez