revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

Tradução Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO

Pintura de um herói moderno: o Limonov de Emanuel Carrère

 

 

O último livro do romancista Emmanuel Carrère, lançado na França em 2011, que será publicado pela Objetiva, no Brasil, será lançado em língua inglesa no outono de 2013. Ele foi coroado, na ocasião de seu lançamento, de um grande sucesso de crítica e por um dos mais importantes prêmios literários franceses, o prêmio Ranaudot. Trata-se da vida de Edouard Limonov.

Quem é Édouard Limonov? Um home de mil faces: nascido em 1943, com a vitória dos russos sobre o Reich, é um adolescente que se habitua bem cedo aos pequenos furtos de ocasião, em Kharkov, a pequena cidade ucraniana em que cresce. Chegando em Moscou, ele começa a escrever poesia e frequenta o underground soviético. Em 1975, ele parte ao “mundo livre”, no qual se descobre, em Nova York, mendigo abandonado por todos e mordomo de um milionário; depois, em Paris, escritor da moda, procurado pela nata literária e mundana. A última parte de sua existência (e não a final, já que Limonov ainda vive) o conduz para o leste, onde vai oferecer seus serviços às forças nacionalistas sérvias nos Balcãs, no início dos anos 1990; depois, cria, na Rússia, um partido de oposição a Putin, do qual o brasão realiza a proeza, no fim do século XX, de evocar simultaneamente o stalinismo... e o fascismo.1 É uma vida eminentemente romanesca, e o primeiro a ter consciência disso é o próprio, já que a maior parte de seus livros tem por objeto sua própria existência: Autoportrait d’ un bandit dans son adolescence, Journal d’ un raté, Histoire de son serviteur, Le Poète russe prefere les grands nègres... Por que, afinal, Carrère quis recontar, dessa vez, a vida de um homem tão ilustre a ponto de ter, ele mesmo, já se encarregado disso?

Verdade que a figura de Limonov estava, em 2011, bastante esquecida na França. No máximo, conta Carrère, quando evocou o projeto do livro sobre ele, os que conheciam Limonov lembravam um sentimento de profundo mal-estar experimentado diante do vídeo, ainda disponível na internet,2 que o mostra atirando em Sarajevo com uma metralhadora, depois de ouvir, com o ar “compenetrado” as ordens de guerra do afável Rodovan Karadzic. Não é, porém, um dever de memória que levou Emmanuel Carrère a escrever essa ficção bibliográfica. Como não se trata de uma reabilitação de alguém incompreendido, caberia, pois, colocar no seu contexto de “Oriente complicado” para deslindar os motivos de sua ação e tomar conta, enfim, de sua complexidade. Carrère diz de chofre: “ O próprio se vê como herói, pode-se considerá-lo um canalha. De minha parte, suspendo meu juízo”.

O que faz o autor, por outro lado, é oferecer um espaço propriamente romanesco a Limonov: ele lhe permite, de fato, ser um herói, compreender sem a conotação moral que o termo pode implicar - mas não necessariamente. Ele faz dele herói no sentido em que ele “lhe faz um presente dessa dimensão: uma perspectiva no tempo”.3 O escritor Limonov já contou abundantemente sua vida, mas por fragmentos, como se sua escrita não fosse senão a excrescência de uma existência feita de uma sucessão de patacoadas e de atos espontâneos. Carrère escolheu, por seu turno, juntar a matéria que oferecem essas narrativas, recortadas por breves notas que tivera do homem Limonov, e confronta o conjunto com outros testemunhos, de modo a retraçar uma linha que, não fazendo sentido em si, teria, eis sua aposta, sentido para nós, leitores do século XXI. Pois, segundo Carrère, a vida de Limonov “é uma vida que narra alguma coisa. Não apenas sobre ele, Limonov, não apenas sobre a Rússia, mas sobre nossa história, a todos nós, desde o fim da Segunda Guerra mundial”.

De que, essa vida e essa personalidade, são exemplares? Qual a verdadeira natureza do projeto de Carrère nesse livro, e o que nos diz sobre as relações que a ficção pode manter com uma realidade histórica que ele pretende, em parte, restituir?

De que madeira é feito o herói de Limonov?

 Segundo nos parece, esse livro diz algo sobre o que se espera, hoje, de um herói, quer o encontremos no mundo real, por meio da mídia, ou no universo ficcional que nos envolve. O Limonov de Carrère encarna, com efeito, de maneira muito completa a característica disso que se poderia chamar de “herói moderno”4: sua vida é plural e complexa, ela se define por um desenraizamento fundamental que ele articula a uma identidade muito forte. O conjunto evoca um tipo de herói picaresco, tingido de filosofia nietzschiana.

Pluralidade, amplitude e complexidade de uma vida

Ele é, pois, para começar, o ator de uma multidão de vidas. É o avesso desse sujeito que, conhecido no ensino médio, reencontrando vinte anos depois, dá a impressão de ter realizado tudo que ele prometia há quinze anos: continuou o negócio do pai, se casou com a filha do professor e convida para vir admirar sua casa financiada. Limonov é esse marginal que se vê em um tal mal caminho aos quinze anos, canivete no bolso, iniciado ao mal radical por uma cena de quase estupro coletivo, que se dá de bom grado à prática do zapoi, em que se destaca, evidentemente - essas “ressacas” made in Russia que podem durar vários dias e devem, é a regra, levar ao esquecimento completa das últimas quarenta e oito horas. Ora, o mesmo sujeito que se descobre, vinte anos depois, em mordomo modelo de uma milionário de Manhattan, “bastante digno de confiança para lhe pedir que vá sacar 10 000 dólares, em dinheiro, ao banco. Zelando por tudo, não esquecendo os gostos e hábitos do senhor. Servindo-lhe seu whisky a boa temperatura. Desviando o olhar, sem ostentação, quando uma mulher nua sai do banheiro” (p. 198-199).

Limonov é esse poeta russo exilado de seu país natal e acolhido de braços abertos pela nomenklatura intelectual do Oeste. Nos braços de sua bela esposa, Elena, ele frequenta as fastuosas noitadas da muito chique nova-iorquina Tatiana Libermann, onde se cruza, inevitavelmente, a coqueluche respeitável desse belo mundo: Joseph Brodsky, que ele não deixará, aliás, de detestar ao longo de toda sua vida já que terão jogado, durante algum tempo, no mesmo terreno - o dos escritores russos que passaram ao Oeste - a quem igualmente não deixará de se comparar, ao seu sucesso e, mais tarde, ao seu prêmio Nobel. Ora, é este dissidente (tal qual, em todo caso, era como aparecia ao espírito dos zelosos, mas afastados observadores da vida política soviética nos anos 1980, grupo a que Carrère fez parte) que incarnava a resistência à opressão totalitária, já que havia fugido da URSS para escrever... é ele mesmo que se verá, alguns anos mais tarde, como adolescente excitado pelas armas pesadas que tem a sua disposição, disparar uma rajada de metralhadora na cidade de Sarajevo.

Além de ser esse indivíduo absolutamente imprevisível e, parece, capaz de tudo, Limonov é seguramente o único homem no mundo a ter podido fazer a aproximação que segue: constatar que os lavabos do campo de detenção Engels, no Volga,5 assemelhava-se exatamente aos do hotel nova-iorquino concebido pelo designer Philippe Starck em que vivera no fim dos anos 1980. A vida de Limonov é uma vida marcada não apenas pela pluralidade, mas também pela amplitude de suas experiências: do bottom ao up, ele fez várias vezes a ida e volta, e isso não mudou fundamentalmente seu caráter ou suas aspirações. Ele parece ser o ator de um mundo em que o indivíduo não é prometido a seu destino por um nascimento, um estado, uma ligação ao dever familiar ou a uma tradição.

Um herói do desenraizamento

Ao ler essa obra, a sucessão de imagens contraditórias desse herói polimorfo evoca um pouco a maneira como a personagem Zelig, do filme homônimo de Woody Allen, aparecia em jornais televisivos dos quatro cantos do mundo. Lembremos que esse filme de ficção, que toma aparência de documentário, narra a história de uma homem-camaleão (interpretado por Woody Allen): na presença de um negro, ele se torna negro, seus olhos se repuxam perto de um asiático e, perdido em um encontro nazista, ele não pode impedir de levantar seu braço direito furiosamente. Zelig sofre de um mal que os psiquiatras não conseguem inicialmente determinar... Os críticos do filme prontamente tomaram esse mal como a tradução simbólica de uma tendência de nossa época: um certo abandono das identidades fixas, das tradições, e seu corolário que é a adoção cada vez mais frequente de uma postura relativista. Zelig é o homem moderno no que concerne sua capacidade de empatia com todo o planeta: desde que seja próximo tal ou qual representante de um povo ou de uma cultura, ele adotará seus usos e costumes, sua língua, seus juramentos e até seus traços biológicos mais particulares.

Pode-se dizer o mesmo de Limonov? Ele não é exatamente esse camaleão, o homem da adaptação suprema: ele encarna, ao contrário, algo (que existe, de todo modo no imaginário europeu) que se poderia chamar o “tipicamente russo”. Sua história não poderia começar em outro lugar que em terras russas, justamente pelo que comporta de contrastes e excessos.6 Uma coisa que Edouard Limonov conta desde o início de seu primeiro texto autobiográfico,7 redigido em Nova York, quando ele vivia ainda sem nenhum tostão senão os 248 dólares fornecidos pelos contribuintes americanos, é que lhe agrada comer unicamente como ração diária o Shchi: grande marmita de sopa de repolho, que ele come com uma colher laqueada vinda da Rússia. Limonov se pinta e se sabe russo.

Porém, ele é um desenraizado também. Metade por acaso, metade por escolha. Por acaso, porque ele nasceu na União Soviética. Em uma passagem aguda, o sedentário Carrère analisa as condições de possibilidade, para um cidadão da URSS, de levar uma vida estável, sobre um perímetro reduzido. A propósito do pai de Limonov, ele escreve: “Ele está longe de sua casa. É a regra, não a exceção na União Soviética: deportações, exílios, transferências maciças de populações, não se cessa de se deslocar pessoas, as chances são quase nulas de viver e morrer no lugar que se nasceu.” (p. 40). Quanto à geração seguinte, visto o canto em que ele cresceu, Édouard não pode ter senão um sonho sendo adolescente: sair daquele lugar e nunca mais voltar. Em um ato fundador, ele proclamará em alto e bom tom essa vontade de desenraizamento, guardando como pseudônimo o sobrenome que seus amigos poetas lhe deram: “Ed Limonov - homenagem a seu humor ácido e belicoso, pois limão significa limonka granada - aquela que se tira o pino” (p. 85). Isso força a admiração de Carrère, que nota: “Mesmo seu nome, lhe agrada não o dever senão a ele mesmo”.

Limonov é esse tipo de herói que escolhe seu nome (e, por isso, o título do romance que lhe narra estando vivo: supremo domínio da narrativa de si!) e que escolhe seus combates. Ele tem, sobretudo desde esses três últimos decênios, o gosto da identificação a causas diversas e variadas, que Carrère tenta, de uma maneira assaz convincente, reagrupar sob a mesma lógica: “É necessário reconhecer uma coisa a esse fascista: ele não ama e nunca amou senão os minoritários. Os magros contra os gordos, os pobres contra os ricos, os canalhas assumidos, que são raros, contra os virtuosos, que são uma legião, e tão errática parece sua trajetória, ela tem uma coerência que é de se por sempre, e absolutamente sempre, do lado deles” (p. 409). Concretamente, essa lógica deu lugar, inicialmente, ao desprezo pelos apparatichiks soviéticos que, no Ocidente, se transformou por um desgosto ainda mais vivo pelos dissidentes adulados pela opinião liberal. Ela o levou a proferir elogios a Stalin no curso de jantares mundanos, o que entusiasmava seus amigos ocidentais, amadores desse tipo de provocação (no primeiro lugar dentre eles, Jean-Edern Hallier). Esse mesmo espírito de contradição o levará, em seguida a apoiar os nacionalistas sérvios nos Bálcãs ou, ainda, a ser partisan da rebelião contra Eltsin, quando da crise parlamentar de 1993 e, mais tarde, a se entusiasmar pelos movimentos russos separatistas, no seio dos países bálticos e da Ásia central.

Que se queira ou não reconhecer a pertinência dessa lógica “estritamente minoritária” proposta por Carrère para compreender os engajamentos diversos e variados de Édouard Limonov, o que é certo é que ele incarna um certo tipo estritamente escolhido, em que se pode distinguir a manifestação de um fenômeno mais coletivo: o ressurgimento do mito romântico do “voluntário do exército internacional”.8 Esse ressurgimento contribui, em parte hoje, e desde várias décadas ao aumento das tropas do terrorismo internacional. Também ele que leva um Olivier Assayas fazer uma série televisiva em torno da figura de Carlos. Dá-se que a figura do defensor de uma causa internacional, cujas referências ideológicas e os meios práticos não conhecem nem reconhecem fronteiras, tem em nossos dias a vantagem do sucesso (tantos nos fatos quanto na ficção) que a do simples mercenário ou mesmo do soldado patriota. Parece-me que o sucesso de Limonov acompanha e decorre desse fenômeno. Limonov nos agrada porque ele reflete esse aspecto do herói “moderno”, sem, no entanto, comportar uma parte de horror grande demais.9

O herói nietzschiano de uma romance picaresco

Face a um tal substrato biográfico, que implicava dar conta de lugares e meios muito diferentes mas também destrinchar dispositivos ideológicos complexos, ainda sensíveis nos dias de hoje, Carrère fez a escolha de se concentrar na figura de Limonov. Nós veremos, em um segundo momento, de que maneira ele resolve a equação complicada da adesão e da distância em relação a sua personagem; quer-se com isso ver quais eventuais modelos filosóficos e literários o autor poderia ter em mente escrevendo o livro.

Carrère evoca, ele próprio, várias vezes, um componente nietzschiano na personalidade de Limonov. Ainda que ele teria podido voltar a esse paralelo, sublinhando que ele não conhecia o suficiente a filosofia de Nietzsche para afirmar com ênfase,10 ainda que, além disso, Nietzsche não faça, aparentemente, parte do panteão de Limonov (tal como relatado por Carrère em várias ocasiões no livro), parece-me que esse componente seja bem presente em nosso herói e que, se ele não o resume, ele é pertinente para o compreender.

A um certo ponto, contando o episódio de sua entrevista com o diretor Werner Herzog, Carrère tenta identificar o que é para ele o fascismo. Ele responde a isso da seguinte maneira: uma postura fascista se nota “pela maneira que cada um de nós se acomoda ao fato evidente de que a vida é injusta e os homens diferentes: mais ou menos belos, mais ou menos talentosos, mais ou menos armados para a luta. Nietzsche, Limonov e essa instância em nós que eu chamo fascismo dizem em uníssono: “É a realidade, é o mundo tal qual”, p. 227. Na sequência, ele se pergunta o que seria o contrapé dessa evidência e responde: “Eu [trata-se de Carrière] diria: o cristianismo”.

 

É notável que a religião esteja ausente desse livro e, pode-se supor, que da vida de Limonov, quer como tentação, quer como redenção. Sua primeira mulher, Elena, leva consigo um ícone em seu exílio aos Estados Unidos. E quando ela o deixa, em estado de melancolia, ele erigirá um pequeno altar pagão a seu amor ausente. Mas é uma boia salva-vidas isolada mais do que um refúgio estável. Mais tarde, ele mostrará uma certa permeabilidade ao ensinamento místico de um guia kazah. Ele praticará na prisão a meditação e contará ter atingido, um dia, o nirvana. Esses últimos elementos testemunham uma propensão a uma espiritualidade muito individual e não uma ligação a uma tradição religiosa coletiva, que pudesse testemunhar, ainda que de maneira incerta, Emmanuel Carrère, por sua própria conta.11 Mas, inversamente, não se encontrará igualmente em Limonov tendência a uma luta nietzschiana contra a religião.

O que está presente, por outro lado, e mesmo o que é constitutivo do herói de Carrère, é o verdadeiro ódio que ele experimenta contra certos processos: aquele que conduz os fracos a tirar partido de sua fraqueza e de fazer disso uma força. É um tema propriamente nietzschiano, mas precisemos que por Nietzsche, o patrono desse processo é o cristianismo. Em Genealogia da moral,Nietzsche demonstra a que ponto lhe parece urgente combater a moral do ressentimento, fornecida pelos padres e invocada pelos fracos.12 Se queremos levar até o fim o paralelo nietzschiano esboçado por Carrère, e aplicar o pensamento filosófico ao universo em que evolui Limonov, os “fracos” seriam esses escritores soviéticos sem eco nem talento, que partem para o Ocidente vender sua boa palavra e são acolhidos por uma opinião internacional (os “padres” nietzschianos) que os cobre de sucesso proporcional a sua mediocridade inicial. Isso dá uma sociedade em que dominam “pessoas do underground, fortalecidas de duas concepções: os livros publicados, os quadros expostos, as peças representadas sendo obrigatoriamente medíocres, um artista autêntico era obrigatoriamente um fracassado. Não era sua culpa, mas a de um tempo em que era nobre ser fracassado”, p. 113. É uma tal aristocracia dos fracos que Limonov ab-roga, e isso é, com efeito, nietzschiano.

Também o é pela fidelidade que ele mostra, ao longo de toda sua vida, a seus sonhos de infância. Em todo caso, é desse modo que mostra Carrère, e não é anódino que o autor tenha decidido dramatizar esse momento preciso da vida de Limonov: a “promessa” que teria feito a criança Édouard Savenko (nome de nascimento de Limonov) depois de ter sido surrado como um saco de batatas por um colega da escola: “ele será um homem que não se bate porque se sabe que ele pode matar”, p. 52. Como diz o próprio autor: a grande diferença entre Limonov e ele é que se pode dizer daquele: “ele fará tudo o que sonhou na infância”, p. 56. Essa admiração pela espontaneidade do homem que assume seus desejos, pronto a ser ridículo e, sobretudo, a apoiar causas duvidosas, que não recua quando ele tem, enfim, ocasião de ir ao fronte (ele, que ao desespero, foi reformado devido à miopia), esse reverência de Carrère em relação à ausência de escrúpulos de seu herói é tanto maior que ele em nada se reconhece nesse aspecto da personagem. E é passando por esse desvio nietzschiano, permitindo dar certa coerência a esse duplo tão diferente dele, que o autor dá conta de fazer da personagem um verdadeiro herói de romance.

Limonov aparece, pois, ao longo do livro, como um herói pronto a tudo, essencialmente livre. Por esse traço, mas também por outros, ele lembra, igualmente, a figura do herói de romances picarescos espanhóis: que se define por ascendência muito modesta, e, com efeito, Veniamin Savenko, o pai de nosso herói, não é senão uma “modesta engrenagem [do] sistema paranoico” que é a administração soviética. Uma aspiração sem escrúpulos ao sucesso social, que ele bem quer acelerar por todos os meios, define igualmente o herói picaresco: Édouard não hesitou em se fazer gigolô, soldado de uma causa que ele crê nobre, ou mordomo de um sujeito de quem ele abusou da confiança, para fazer seu caminho na sociedade, em direção ao ideal infantil que o guiava. Uma outra característica do herói picaresco é sua propensão a ser ultrapassado pela sua natureza de pícaro: aquele que escreveu o Journal d’ un raté vê, com efeito, todas suas empreitadas revolucionárias fazerem água. O herói picaresco porta um olhar muito crítico sobre a sociedade na qual ele está envolvido, e o menos que se pode dizer para um ser que afronta os elementos mais respeitáveis de seu tempo - Soljenitsyn, em primeiro plano -, que dirá de seus semelhantes, por exemplo, os contribuintes americanos.13 Enfim, o romance picaresco implica uma prosa realista, quase naturalista, registro a que, claramente, pertence as bastantes numerosas cenas que descrevem as alegrias ou as decepções sexuais de Édouard e suas sucessivas mulheres.

Todos os traços do herói picaresco estão, pois, presentes em Limonov, com a reserva de que a forma não é autobiográfica. É a voz particular do narrador desse livro, simultaneamente biográfica e introspectiva, e o lugar singular que se dá seu autor, que se gostaria doravante se interessar.

O lugar de Carrère

O autor é bastante presente nesse livro quando ele conta os sintomas de sua escritura, quando ele expõe escrupulosamente as hesitações que o acompanham ou, ainda, ao contrário, quando ele se projeta em peso no seu herói, sem sempre advertir seu leitor.

Limonov: um pretexto para “pintar” um mundo russo que ele não conhece

Carrère parece ser movido por dois motores principais para escrever o livro. O primeiro, ele não o esconde, é seu interesse cada vez maior, dede alguns anos, pelo mundo russo, ao qual ele é ligado pela família de sua mãe, a historiadora e acadêmica Hélène Carrère d’Encausse.14 Uma etapa importante desse retorno às fontes havia sido a filmagem, em 2003, de um filme documentário, Retour à Kotelnitich, em que ele tentava fazer imagens da Rússia pós-comunista, em uma aldeia situada a 800km a leste de Moscou. Já naquele momento ele misturava o interesse por uma realidade que ele ignorava e, frequentemente, o excluía, à sua própria busca indenitária. Esse percurso era redobrado em Un roman russe,15 em que ele narrava, entre outras, a história dessa filmagem, e voltava as razões que o levaram a isso: volta à Rússia para exorcizar um segredo de família em torno de seu avô, que havia sido interpretado pelos alemães e desapareceu depois da guerra. Pode-se legitimamente pensar que Limonov e, notadamente, a parte que se situa em Kharkov, é um novo retorno à Kotelnitch. Carrère estabelece ele próprio essa aproximação entre o que a prosa autobiográfica de Édouard Limonov revela de seu passado na URSS, e o que ele, europeu, pôde ver com seus próprios olhos, quando da viagem à Rússia: ele não hesita em deixar sua imaginação preencher os vazios que deixam os testemunhos literários de Limonov, fonte primeira e matéria do livro.

Mas o que chama a atenção é que Carrère se deixar narrar o que não se permitiria em um quadro de um percurso estritamente documental (Retour à Kotelnitch), ou autoficcional (Um roman russe). Esse livre, Limonov, que é antes de tudo um mergulho em um mundo diferente do seu, é um lugar em que se autoriza um certo pitoresco. Não no sentido negativo do termo, que implicaria uma redução ao mais simples e esperado, mas no sentido em que ele se esforça em dar uma forma, uma estética que raramente está presente em seus romances precedentes: L’Adversaire ou D’autres vies que la mienne - bem-sucedidos sobre outros planos. Limonov é globalmente melhor escrito, em parte para dar conta de que ele restitui a figura de um escritor, e compõe se inspirando em uma prosa que ele admira. O procedimento de inutrição, tão caro a Montaigne, funciona muito bem aqui. Mas parece que haveria uma outra razão a levar em conta nesse modo de liberação do estilo de Carrère: é que ele mostra uma certa facilidade a manejar os clichés. O autor tem, no início do livro, essa frase que soa quase como um manifesto: “Um cliché diz, na Rússia, os poetas sejam tão populares que entre nós os cantores populares, e como muitos clichés sobre a Rússia, este é, ou, pelo menos era, absolutamente verdadeiro”, p. 67. Esses clichés, que ele encontra invariavelmente trabalhando sobre a vida de Édouard Limonov, ele pode escolher jogar, como quando ele nota ironicamente, anunciando a chegada da KGB na narrativa das origens de Édouard: “Imediatamente, o leitor ocidental treme”, p. 94. Ou ainda, ele pode apenas esboçar, fazer a tela de fundo em que a figura de seu herói sairá ainda mais vivo - como quando da sucessão de retratos de militantes nazbols que ele é levado a encontrar para sua reportagem. Os clichés que ele emprega estão presentes, dessa vez, para mostrar quanto o observador ocidental que ele é funciona necessariamente a partir deles: ele não pode se impedir de ver essa garota “muito bonita, esperta, bem vestida”, esses discos do Mano Chao, essa mulher “gênero professora de história esquerdista”, p. 30-31. Mas ele pode, simultaneamente, constatar que essas categorias, se elas lhe parecem a priori incompatíveis com a realidade que ele acaba de contar, remetem, porém, muito bem, a um meio de militantes de um partido nacionalista revolucionário... O cliché é desarmado, mas não anulado: ele permanece na prosa de Carrère e se imprime no espírito do leitor.

A atitude de Carrère consiste, pois, face a essa realidade que ele ambiciona descrever, aceitar plenamente o prisma pelo qual ele a aborda. Acontece-se frequentemente de variar esse prisma, de o examinar a fim que ele apareça tangível ao leitor. Sobre a distinção que existe entre os dissidentes e o underground soviético, ele escreve, por exemplo: “De longe, a quarenta anos de distância, tudo se confunde um pouco, e seguramente os under leem os dissidentes, faziam circular seus escritos, mas em raras exceções, já que eles não tomavam os mesmos riscos e sobretudo não professavam a mesma fé”, p. 115. Mesmo nos momentos em que o narrador se autoriza uma grande transparência, não se esquece nunca completamente que isso que se narra provém de uma voz estrangeira a essa realidade, apenas um pouco menos estrangeiras que nós. Carrère assume, pois, um papel de intermediário: intermediário voluntário de uma vida que lhe parece tão inverossímil quanto nos parece, também fascinante, e por isso, pode-se visá-la de um modo um pouco ingênuo. A ambição desse livro é seguramente de nos fazer perder um pouco dessa ingenuidade e nisso ele responde com umas das vocações essenciais da literatura, que é “desasnar” o leitor: oferecer-lhe um conhecimento sensível mas também pensado e nuançado do mundo.

A vocação da literatura, porém, é também incarnar uma realidade nas figuras que devem ser assaz fortes, assaz elaboradas dramaticamente, para que seus fantasmas continuem a nos assombrar depois da leitura. É o caso de Elena, a segunda mulher de Édouard, a que ele chama sua “mocinha russa”, e que a existência corresponde, com efeito, a imagem que fazemos do destino de uma jovem russa: bonita, bem feita e viva, ele é um arquétipo da would be modelo, que sonha partir para Europa ou, melhor, aos Estados Unidos e de quem Emmanuel Carrère gostaria de fazer imagens quando da sua segunda viagem a Kotelnitch. Ele confessava, em Um Roman Russe, a decepção que ele experimentou observando a moças da cidade: “Eu tinha, em matéria de heroínas femininas, uma ideia um pouco diferente: eu pensava nessas moças longilíneas, loiras, magnéticas, que se encontra nas discotecas de Moscou e que, senhoras dos novos russos, vestidas de casacos de pele sobre micro vestidos muito caros, passeando de Mercedes de vidros espelhados, julgando seus parceiros exclusivamente pelo limite de seu cartão crédito, lançando sobre o mundo um olhar de dureza glacial (...). Eu amaria, em Kotelnithc, encontrar uma menina dessas antes, saber o que elas têm na cabeça...”, p. 184-185. É no coração da vida de Limonov que ele descortinará esse fantasma, à nuance que é nos braços dos americanos ricos e não dos novos russos que Elena se encontra, no início dos anos 1980.

Limonov como duplo

Escrever sobre Limonov é, pois, em certa medida, um pretexto por ter (ou continuar?) uma busca iniciada desde muitos anos por Carrère. Limonov é também, o que não é contraditório, um tipo de duplo do autor, que aqui não busca dissimular essa dimensão. Várias vezes Carrère se compraz em identificar ponto em comum entre seu herói e ele próprio, que lhe parecem tanto mais notável quanto são contrastantes os dois tomado globalmente: de um lado, já evocamos, um sujeito bastante inclinado ao engajamento político ou militar, que teve o tempo de viver muitas vidas em três continentes diferentes. Do outro lado, um escritor parisiense bem posto, integralmente sedentário, ponderado em seus propósitos, a dez mil metros de qualquer partido político, nascido em uma época em que um jovem burguês pode escolher contornar o serviço militar. Certas passagem, porém, situam-nos sob a mesma luz. Eles foram, os dois, meninos míopes, sensíveis e amadores de romances de aventuras. Esse detalhe poderia parecer anódino, e as referências comuns que Carrère compraz de encontrar - Júlio Verne, Alexandre Dumas - não são completamente inesperadas. Mas o paralelo adquire seu sentido quando o autor o situa como ponto de partida para um divergência radical: os dois têm os mesmos sonhos de aventura “tornar-se caçador, explorador, o peito molhado sob uma camisa listrada, tatuado, sarrista, sempre pronto”, p. 50-51. No entanto, um foi fiel, o outro não. Pintar as aventuras de Limonov é, por certo, para Carrères, mostrar-se fiel, ainda que tarde, aos sonhos de infância: na falta de viver, ele terá escrito um livro de aventura.

Uma outra maneira de colocar Limonov sob o signo do duplo é, para Carrère, relacionar ou imaginar os momentos em que o autor e a personagem teriam se encontrado, por acaso, em um mesmo lugar, a alguns metros de distância. É o caso da primeira cena, uma das mais teatrais do livro: a comemoração do drama do envenenamento por gás, pelas autoridades russas, de homens, mulheres e crianças sequestrados por terroristas chechenos em um teatro moscovita. Enquanto ele se põe em simples testemunha anônima dessa cena de peso histórico (“Lembrem-se, era outubro de 2002”, p. 14), Limonov faz sua aparição, como ele deve, à maneira de ator de teatro, central e irradiante. Essa passagem lembra, de maneira simetricamente inversa, a cena situada ao fim de A Educação sentimental, em que “Frederic estupefato, reconhece Sénécal”, seu antigo amigo revolucionário, repentinamente metamorfoseado em “dragão” , ator feroz da repressão. Carrère “reconhecia Limonov”, que, desembaraçado de sua imagem de “pequeno trate”, encarna doravante a resistência muda dessa nobre cerimônia.

É ainda em Moscou que, em 1968, então com dez anos, enquanto acompanhava pela primeira vez sua mãe em viagens pela URSS, Carrère lembra ter-se encontrado próximo de Limonov. Ele sabe, com efeito, que um e outro frequentaram Vadim Delaunay, então jovem vanguardista, e adora “imaginar que depois de ter passado todo o almoço no conselheiro cultural, falando dos três mosqueteiros com um menininho francês, Vadim Delaunay, no mesmo dia, seguiu ao seminário de Arséni Tarkouski e assistiu aos inícios do poeta Limonov no underground moscovita”, p. 111.

Carrère não se contenta em estabelecer os ponto de aproximação ou cruzamento entre ele e sua personagem: ele chega a lhe emprestar traços que provém da sua própria vida sem advertir o leitor. Notemos que Carrère utiliza esse procedimento quando se trata de transcrever cenas muito íntimas, para o autor como para seu herói. Ele mostra, por exemplo, Limonov se embalando com uma pequena canção para acalmar, que ele compôs para sua antiga mulher Natacha, quando ele toma conhecimento de sua morte. Carrère o descreve assim, cantando, em posição fetal, o que lembra ao leitor a busca de conforto que o encontrava, em Un roman russe, graças à letra de uma canção de ninar que sua babá russa lhe cantava, e que ele recita, aliás, nas últimas imagens de seu filme Retour à Kotelnitch. Sempre lendo Um roman russe, pode-se aperceber-se que certas cenas em que o autor relata, com muitos detalhes, os embates sexuais de Édouard, retomando exatamente os termos que ele empregava alguns anos antes para descrever seus próprios embates com sua companheira da época, Sophie. Face a tais passagens, pode-se perguntar se é necessário ver o signo de uma simples falta de imaginação ou de um prazer narcísico de escritor Pigmaleão a se imiscuir no corpo de sua personagem, no coração dos instantes mais secretos de sua existência.

Gostaríamos de levantar ainda outra hipótese, e ver a maneira que Carrère tenta (segundo nós, com sucesso) estabelecer uma tensão que é o fundamento de seu empreendimento literário: a que acompanha a dupla exigência, frequentemente contraditória, de dramatização e veracidade.

Limites e força da ficção biográfica

Há uma tensão essencial no projeto mesmo do livro: desde a quarta capa, sabemos que “Limonov não é uma personagem de ficção”. Mais, “ele existe”, isto é, ele vive ainda, momento em que o livro é publicado. Mas ele é também a personagem de uma vida que é “um verdadeiro romance de aventura” e é como tal que somos convidados à visá-lo ao longo da leitura. De chofre, pois, o quadro está dado, e de maneira aparentemente desenvolta.

É necessário dizer que atrás dessa aparência, há uma forma de engajamento da parte do autor: inicialmente, porque ele não se priva, malgrado o que anuncia, de certas formas de julgamento de seu herói. Depois, porque sua maneira de se engajar pessoalmente na narrativa permite tornar acessível uma certa forma de verdade que uma narrativa puramente jornalística, ou propriamente e objetivamente biográfica, falharia.

Por detrás da desenvoltura, o juízo...

Desde a página 20, o leitor é advertido: se ele quer ter acesso a uma pesquisa propriamente jornalística da personagem, ele é implicitamente remetido a uma reportagem que o autor conduziu em 2008, para o lançamento de uma revista de seu amigo Patrick de Saint-Exupéry, reportagem que constituirá, de fato, a primeira etapa na gênese desse livro.16 Mas vê-se logo que antes mesmo de ter tido a ideia desse livro, e para um simples reportagem jornalística, ele já raciocina à maneira de um romancista, já que ele se interroga sobre a tonalidade que caberia dar à sua narrativa, sobre a imagem que ele pretenderia dar de Limonov: “Tive dificuldade em escolher entre duas versões de romanesco: o terrorismo e a rede da resistência, Carlos e Jean Moulin - é verdade que, enquanto os dados não são jogados, a versão oficial da história terminada, tudo se assemelha”, p. 23.

A última parte da frase não fixa necessariamente o olhar, mas é essencial. Ela toca em uma questão que hoje nos parece central, enquanto “a ficção biográfica tem doravante todas os índices de um gênero instituído no campo literário contemporâneo”17 e que, de maneira mais geral, a tendência a esmaecer a fronteira entre ficção e realidade é cada vez mais assumida no domínio literário, tanto quanto no cinematográfico. Essa questão consiste em saber em que medida é possível, e desejável, fazer uma obra de ficção a partir de fatos reais recentes e comportando uma parte de incerteza. Essa relação é complexa, de um autor de ficção para com a realidade que ele pretende, aliás, restituir em sua imagem exata, pelo menos verídica, é justamente o ponto que pôde suscitar certas críticas em relação à Limonov.

A crítica principal que se pôde fazer a Carrère é de ter escolhido um tema que se revelou, de algum modo, muito grande para ele. “A personagem de Limonov é de tal modo complexa e emblemática que ele merece uma biografia que fosse mais longe e que pudesse ser mais intelectualmente honesta que esse livro (...), escreve Galia Ackerman em um artigo que ela lhe consagrou na revista Esprit.18 Carrère não se mostrou capaz de dar conta do que, para ele, representa o interesse e o perigo da personagem (“O fenômeno Limonov é para se levar a sério19”): por exemplo, sua passagem tardia e crucial da expressão de ideias fascistas a uma oposição democrática bem viva. Ela explica essencialmente esses silêncios de Carrère por um desconhecimento dos textos mais extremos do período de publicista fascista de Limonov, pela boa razão que eles são inéditos em francês: o autor só teria buscado suas informações nos textos “autobiográficos” do seu herói (comportando, aliás, as confissões de Limonovo já uma parte de ficção), traduzidos, da sua parte, na língua de Molière. Essa constatação conduz necessariamente o julgamento que essa crítica comporta, a narrativa de Carrère, de falta de honestidade intelectual? Não pensamos desse modo. O autor desvela, desde o início, a seu leitor, e ao longo de toda obra, a que ponto sua aproximação de Limonov foi empírica, nunca sistemática. Ele não pretende, em nenhum momento, entregar uma bibliografia de referência da personagem. Seu olhar sobre ele é parcial: não é sem razão que a primeira aparição da personagem no corpo da narrativa é um perfil fugaz perdido na multidão.

Por outro lado, Carrère sublinha, em várias ocasiões, o seu amadorismo quando ele arrisca a fazer análises históricas ou políticas. Essa postura do autor é mesmo quase honesta demais: ele nunca insiste suficientemente, segundo seu gosto, sobre a margem de erro que comporta necessariamente o discurso de um ocidental sobre o universo russo, do qual ele não pode tomar todas as nuanças. Para justificar sua alergia constitutiva a toda forma de engajamento político, ele escreve: “Eu tenho, talvez, muita tendência a me perguntar se, entre os valores que consagrados em meu meio, os das pessoas de minha época, de meu país, de minha classe social, acreditados insuperáveis, eternos e universais, se não descobriríamos um dia que eles parecem antes grotescos, escandalosos ou simplesmente errados”, p. 310. Sua estratégia para evitar cair do cavalo da confiança cega em uma universalidade dos valores é, pois, a seguinte: assumir plenamente um olhar “simplista”, e por em cena os acontecimentos históricos chaves que pontuaram a vida de Limonov, por meio de diálogos de vocação pedagógica marcados e quase farsescos. Carrère representa assim as hesitações de Gorbatchev a pôr em obra a liberalização do regime por frases e discursos indiretos livres, do estilo desses: “O partido, de toda forma...”, p. 325. As personagens históricas centrais tornam-se, pois, clichés na letra e na pluma de Carrère, enquanto seu herói vai ganhando mais e mais densidade. Essa postura de amador é perfeitamente coerente com o seu postulado de partida, posto na quarta capa: sobre a questão de saber se ele é um herói ou um canalha, “eu suspendo, de minha parte, meu juízo”.

Se, pois, Carrère nunca oferece um julgamento definitivo sobre Limonov enquanto ator da grande História - pois não é seu papel de escritor o fazer, e ele não explica isso de maneira satisfatória -, tal fato não o impede, no entanto, de emitir juízos pontuais sobre a personagem. Ele não hesita empregar termos de conotação bastante negativa, como o de “vermelho-negro”,20 p. 351, ou ainda, de maneira mais clássica, como vimos, o de “facista”, p. 226, para qualificar Limonov. Esses termos (suficientemente raros para serem notados) não são brandidos como estandartes, mas pesados e interrogados de maneira prudente e inteligente, para serem finalmente colados com firmeza na personagem ou, em todo caso, a um certo período da vida de Limonov. É com os mesmos escrúpulos que Carrère termina por admitir que Limonov poderia, sob um certo ângulo, e o julgando segundo os fatos ou testemunhos, corresponder à categoria “pessoa de bem”, p. 442. Esses julgamentos nunca são feitos abruptamente, tanto quanto eles não são excludentes. Além disso, é interessante ver que eles se tornam cada vez mais frequentes à medida que se avança a leitura: como se, uma vez tomado para si sua personagem, explicado seu percurso, uma vez ele introduzido como a personagem do livre, uma vez feito isso, Carrère pudesse finalmente se permitir dar sua opinião, do interior, como se fala de uma amigo próximo de uma maneira tanto afetuosa quanto lúcida.

... e o engajamento

Há, pois, uma progressão do livro, que vem da sua postura explícita de uma “suspensão do juízo” a uma implicação plena e completa do autor, que não pode se impedir (justamente o que lhe censurava Galia Ackerman) de fazer corpo com seu herói. Essa identificação não tem, entretanto, o corolário inevitável de uma cegueira. Ela implica uma forte empatia, mas sobretudo uma vontade de compreensão que nos parece salutar porque ele permanece pontuada de distâncias: no momento em que Carrère descreve o período mais sombrio de Limonov, na ocasião da fundação da Frente nacional-bolchevique, fundado em 1922 com o fascista convicto Alexandre Douguine, ele escreve: “O bunker margot Fuher ... A esse ponto, não estou certo que meu leitor tenha realmente vontade que lhe conte como uma exultante epopeia, os inícios de uma folha de repolho e de um partido neofacista. Não estou certo de ter vontade, igualmente. É mais complicado que isso, porém. Me aborrece. Não gosto dessa frase. Não me agrada o uso que faz dela os espíritos sutis. A infelicidade é que ela é frequentemente verdadeira. Nesse caso, é.”, p. 381. Considerar que é “mais complicado que isso” não significa justificar tudo que conta seu herói, mas continuar a escrever, ir até o fim, dizer o pouco que pôde compreender dessa vida. A questão que se pode colocar, a esse ponto, não é: deve-se condenar Carrère? Em nenhum momento ele se põe a elogiar a violência e o ódio que caracteriza a personagem e as posições de Limonov.21 A questão é, antes, em que condições tal empreendimento, perigoso, pois parcial em relação aos fins que pretende atingir, tem sucesso?

Parece-nos que é a condição que o autor se engaja plenamente em sua narrativa e não consente em imitar a objetividade. Como escreve Phillipe Lançon, “essa literatura (que mistura as fronteiras entre a realidade e a fantasia, o público e o privado, a ficção e a não-ficção] não tem sentido de força que na medida em que o autor se engaja nela total e completamente. E onde ele descreve e põe em cena, de uma maneira e de outra, as formas que toma esse engajamento. (...). Nessas narrativas, nesses romances, nasce sempre uma personagem, e o próprio autor, segue sua descida ao fundo do poço. Eis talvez o ponto que une tecnicamente essa literatura: não há verdade possível sem corpo presente de personagem e autor”. Esses propósitos aplicam-se perfeitamente aos livros de Carrère. É verdadeiro, em todo caso, para L’adversaire e Limonov. Ele escolheu nos mostrar um homem que, por uma razão ou outra, descobre-se a luz do grande dia, olhado e julgado pelos seus pares. Seu lado monstruoso (Jean-Pierre Roamand) ou simplesmente sulfuroso e condenável (Limonov) parece atrair Carrère, tão mariposa, consciente, aliás, disso: “Que se pense em mim cada vez que se trata de um sujeito encarcerado toda a sua vida em um asilo de loucos, é precisamente isso que mais quero”, escreve em Um roman russe, p. 16. Mas é o que lhe permite escrever. Ele deve tomar esse desvio: encarnar o que lhe é mais estranho, isso que, principalmente, ele deseja que permaneça estranho, saber, a loucura e a violência. Não há, pois, complacência, mas um equilíbrio estável que ele exprime por vezes, entre, por um lado, uma curiosidade estudada pela vida de sua personagem, canalizada pelos procedimentos de investigação que exigem a escrita, e, por outro lado, uma intuição forte de que ele também, Emmanuel Carrère, teria podido “dar errado”. Ele imagina, em L’adversaire, constatando o ritmo de seu cotidiano de escritor, que poderia bem ter uma vida de mitômano comparável, o que o leva a constatar que ele “passa [seu] tempo a estabelecer tais hierarquias (...) que como Limonov [ele pode] não encontrar um de [seus] semelhantes sem [se] perguntar mais ou menos conscientemente, [se ele é] acima ou abaixo dele própria, para seu alívio ou mortificação...”, p. 226. Ele também, em um sentido, tem “uma instância fascista”, escreve abaixo. E esse livro também é escrito afim de compreender por que ele teve razão em não lhe dar ouvidos: Limonov não é, em última instância, um modelo para ele. Ele concluirá, dele própria, que ele teve “uma vida de merda, sim”, p. 484.

Atrás do retrato de Limonov, é o de Carrère que se arma, em fuso, e esse jogo de espelho é justamente o que permite ao leitor seguir e considerar, por seu turno, Limonov como um duplo. Limonov, parece-nos, desse ponto de vista, bem-sucedido, porque ele consegue bem conduzir um trajetória heroica, talvez anti-heroica em certos momentos, mas não no sentido em que a literatura contemporânea tende frequentemente a entender: Limonov não é personagem que, duplo de uma autor neurastênico, torna-se o simples receptáculo de sua angústias e pequenas alegrias cotidianas. Ele é simultaneamente o duplo idealizado, aquele que se sonhou ser quando criança, o poeta e o soldado, e ele é, ao mesmo tempo, o duplo ab-rogado, aquele que se congratula por não tê-lo se tornado. Essa tentação de empatia continuamente desarmada, essa capacidade de alternar identificação e distanciamento, parece-nos ser a força principal do livro.

É o mesmo que se sente diante de um filme como Soleil trompeur, que joga, também, em dois tabuleiros: o da realidade de uma violência política contínua, no contexto da URSS de 1936, em pleno processos de Moscou, e, por outro lado, o de uma intimidade familiar extremamente doce. A primeira cena põe imediatamente essa tensão: o ilustre general Kotov é arrancado de seu dia de folga, distante do tempo da guerra e da política, que ele passa em uma datcha com sua mulher e sua encantadora filhinha de cinco anos. Ele deve impedir que blindados de assalto destruam um campo de trigo em exercícios militares. Todo o filme é conduzido por meio dessas duas dimensões: o prazer que dá viver um pouco essa intimidade de um longo dia de agosto, na companhia de belas personagens tchekhovianas, experimentar o gosto do carinho do pai para com sua filha, a admiração tocante que a pequena tem para com seu tia Mitia, poeta e música... e, por outro lado, a sombria história, a grande história, que se adivinha, que opõe esses dois homens e culmina com uma eliminação política terrivelmente cruel e arbitrária.

Conseguir mostrar essa coexistência, na vida de um homem, em todo caso, o que nutre sua vida íntima, familiar ou amorosa, e sua ação política, é o que faz o interesse insubstituível de obras de ficção que ousam se arrimar em uma matéria histórica e biográfica.

 

   

 









fevereiro #

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ilustração:Rafael Moralez



1 A bandeira nazbol consiste, como a bandeira nazista, em um círculo branco sobre um fundo vermelho, a foice e o martelo substitui, porém, a suástica.

2 http://www.youtube.com/watch?v=tH_v6aL1D84

3 Yasmina Reza, Le Monde des livres, 2 de setembro 2011.

4 Uma figura que interessa Limonov, cf o título de seu romance, publicado em francês, com o título Mort des héros modernes, Paris, Editions du Rocher, 1994.

5 Prisão em que ele passou a segunda parte de sua pena, de 2001 a 2003. Ele foi condenado por “terrorismo” devido a suas atividades de chefe de partido de oposição virulento.

6 Mas pode-se replicar que o fenômeno Zelig decorre de uma questão tipicamente judaica: a da assimilação. Essa história, em certo sentido, não poderia vir senão de um filho de uma ator de teatro yiddish!

7 Le poète russe préfère les grands nègres, Éditions Ramsay e Jean-Jacques Pauvert, Paris, 1980.

8 Esse mito se refere, aliás, a uma realidade histórica importante, que começa timidamente a ser estudada em toda sua dimensão. A maior parte dos trabalhos existente diz       respeito aos engajamentos voluntários a favor da independência grega, em toda Europa e ao longo do século XIX, um fenômeno massivo, que fazia parte de uma movimento de interesse e apoio mais global, o “filohelenismo. Um de seus representantes mais famosos foi o poeta inglês Lord Byron, falecido em 1824, no front grego de Missolonghi.

9 É importante compreender esse ponto: Limonov, a despeito da acusação n. 205 (“terrorismo”), feita contra ele pelo regime de Putin, em 2001, ele não tem grande coisa a ver com Bin Laden, ainda que o chamassem assim na prisão de Saratov, desde 11 de setembro. Pelo que sabe Carrère, de toda maneira, nenhuma de suas ações políticas, tanto quanto as cometidas pelos filiados a suas organização “nazbols” (nacionais-bolcheviques) deram na morte de quem quer que seja. O que confunde ainda mais o quadro, pessoas extremamente respeitáveis, no sentido forte do termo, garantiram a ele seu apoio: a jornalista Anna Politovskaia ou, ainda, Elena Bonner, viúva de Sakrarov e importante ativista dos direitos dos homens.

10 No programa televisivo “Répliques”, de Alain Finkielkraut sobre Limonov, um anti-herói de nosso tempo com Emmanuel Carrère e Pierre Pachet, France Culture, 17 de setembro 2011.

11 Como no fim de L’Adversaire, Paris, P.O.L. 2000.

12 Cf em particular as seções 10 e 13 da Primeira Dissertação de Genealogia da moral: “Quando os oprimidos, os massacrados, os seviciados, sob a tomada dos ardis vingativos da impotência, põe-se a dizer: “sejamos o contrário dos maus, isto é, bons! É bom aquele que não faz violência a ninguém, que não ofende nem ataca, que não usa represálias e deixa a Deus o cuidado de vingar; quem se oculta como nós, evita o encontro do mal e espera pouco coisa da vida, como nós, os pacientes, os humildes e os justos” [Genealogia da moral] Généalogie de la Morale, Frédéric Nietzsche, traduit par Henri Albert, Paris, Mercure de France, 1900. I, 13, p. 66.

13 Como nas primeira páginas de Poète russe préfère les grands nègres, op. cit.

14 Especialista em Rússia, ela é conhecida pela obra L’Empire éclaté, lançada em 1978, em que previa o fim da l’URSS, por um estilhaçamento que decorreria, segundo ela, da alta natalidade das repúblicas mulçumanas da Ásia central - as predição que se revelou, em parte, falsa.

15 Emmanuel Carrère, Un roman russe, Paris, P.O.L., 2001.

16 Cf Emmanuel Carrère, “Le dernier des Possédés”, Revue XXI, hiver 2008, p. 44-45.

17 Como nota Alexandre Gefen em “Au pluriel du singulier: la fiction biographique”, Critique, Junho-Julho 2012, p. 565-575.

18 Galia Ackerman, “Le Limonov d’Emmanuel Carrère”, Esprit, fevereiro de 2012, p. 152.

19 Ibid, p. 154.

20 O termo negro-vermelho [brun-rouge ] ou  vermelho-negro [rouge-brun] aparece a partir dos anos 1990, para designar movimentos que misturam valores de extrema direita, de tendência nacionalista ou fascista, com valores da extrema esquerda comunista. Sua importância começa, segundo o jornalista Philippe Val, na virada dos anos 1970. Cf Reviens, Voltaire, ils sont devenus fous, Paris, Grasset, 2008, p. 210. Limonov toma a sua conta, já que em julho de 1992, no artigo de L’idiot international, o jornal de Jean-Édern Hallier, ele celebra “um fenômeno interessante [que] está em via de se produzir na Rússia: a aliança natural entre a extrema esquerda e a extrema direita, aliança dos vermelhos com os negros, contra o sistema anti-humano de produção, contra o sistema capitalista”. 

21 Um contra-exemplo desse percurso seria o texto que Richard Millet consagrou a Anders Breivik, alguns meses depois dos acontecimentos perpetrados pelo terrorista noroeguês, em julho de 2011. Cf Éloge littéraire d’Anders Breivik, publicado na sequência de Langue fantôme, Paris, Pierre-Guillaume de Roux, 2012, em que o escritor se diz abismado pela perfeição formal dos atos de Breivik, e lhe dá uma dimensão literária.