revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

 

apresentação

 


Em seu número 7, a Fevereiro traz aos seus leitores um conjunto de artigos teóricos e de atualidade política que, cada um à sua maneira, dão continuidade ao sentido maior do projeto da revista: o de aprofundar o pensamento sobre a democracia e seus outros, de modo a contribuir para a formulação de diagnósticos não reducionistas de nosso presente histórico, bem como para a construção de alternativas não regressivas para a esquerda socialista.

Em “O ciclo do totalitarismo e os impasses da esquerda mundial”, Ruy Fausto prossegue em seu fundamental esforço - tanto teórico-filosófico quanto de acurada análise histórica - de elucidar o grande enigma político do século XX: o totalitarismo. A estratégia usada foi a de comparar os dois grandes modelos de totalitarismo de esquerda do século passado, oriundos das revoluções russa e chinesa. Como resultado, tem-se a apreensão de um ciclo histórico-político que leva dois importantes países da periferia capitalista a regimes totalitários de terror, trabalho escravo e genocídio (sobretudo de camponeses), os quais, por fim, após períodos de distensão, desembocam novamente em regimes capitalistas, agora industrialmente desenvolvidos, porém pesadamente autoritários e altamente corruptos. Uma das grandes argúcias do Autor consiste em demonstrar que o atraso desses países revolucionários ganha maior densidade crítica quando compreendido nem tanto em sua dimensão econômica, mas sobretudo no que concerne à inexistência neles de verdadeiras tradições democráticas. Em “O ciclo” nos é apontado o desconcertante paradoxo de que Outubro de 1917, visto retrospectivamente, marca não uma vitória do marxismo, mas o início de seu envelhecimento tanto como teoria política como teoria da história. Com efeito, se na teoria de Marx há uma brilhante crítica do capitalismo, ela, como R. Fausto nos tem chamado a atenção, esteve desde o início mal aparelhada para a compreensão do fenômeno totalitário surgido de revoluções dirigidas por partidos que, ironicamente, reivindicavam o seu legado. Emblema da limitação da teoria da história marxista foi (e é ainda...) a espécie de “ortodoxia crítica” a que se pretendeu o movimento trotskista, presa que sempre esteve a uma visão dual da história, de modo que nunca foi capaz de tematizar adequadamente a existência de um terceiro termo entre capitalismo e socialismo, isto é, de uma forma historicamente nova e original de dominação. E não o fez não apenas por insuficiência teórica, mas também porque, na realidade, sempre foi muito mais parte do problema do que da solução. Pois, se as limitações do pensamento de Marx são apontadas, o grande alvo da crítica não é aqui o “marxismo” de Marx, mas o de Lênin. Responsável por introduzir dentro do marxismo todo o peso antidemocrático do atraso russo, o leninismo, ao triunfar na Rússia e, depois, também na China, na forma do maoísmo, serviu de funesto modelo a ser imitado pelos partidos comunistas de todo o mundo.

Saindo do passado totalitário para os problemas postos pela ofensiva política e teórica da direita contemporânea, Juliette Grange busca, no artigo “A expressão do neoconservadorismo em filosofia, ciências humanas e sociais na França”, traduzido por José Luiz Neves, traçar um mapa da introdução do pensamento neoconservador em seu país. Descreve como mudanças na cena política francesa a partir dos anos 2000 possibilitaram que um grupo caracterizado mais por sua sensibilidade e solidariedade políticas do que por constituir uma consistente escola de pensamento assumisse posições-chave tanto no Estado quanto nas principais instituições culturais e intelectuais francesas. Unidos por sua oposição ao que seriam os perigos do “hedonismo”, “individualismo” e “marxismo”, os neoconservadores franceses pugnariam por uma “nova espiritualidade” como remédio à “perda do sentido” e ao niilismo contemporâneo. Entretanto, adverte a autora, o novos reacionários não são meros tradicionalistas, uma vez que pretendem se legitimar acusando o suposto arcaísmo tanto da “filosofia continental” quanto da emblemática figura do intelectual progressista francês. Adornando-se com a retórica da ruptura, pretendem encarnar a justificação teórica e filosófica da ponte entre o ultra-liberalismo e o conservadorismo moral e religioso.

Quando a crítica perde o gume e se transforma em ideologia? Este é precisamente o tema do ensaio teórico de Axel Honneth, “Reconhecimento como ideologia”, traduzido por Ricardo Crissiuma. Aqui, Honneth desenvolve uma densa análise sobre a possibilidade de a teoria do reconhecimento, “cerne normativo” de inúmeros esforços políticos de emancipação, sofrer uma captura ideológica, perdendo assim parte de seu potencial crítico. Através da adesão voluntária dos sujeitos, que experimentariam incrementos em sua autoestima oriundos de nossa cultura afirmativa de reconhecimento apenas retórico, isto é, desacompanhado dos necessários procedimentos materiais que lhe confeririam substancialidade, a ordem social dominante ganharia para si uma nova camada de legitimação, esvaziando assim demandas socioculturais por reconhecimento e autonomia, mesmo que estas em sua origem possuíssem o ímpeto da contestação. 

Entretanto, a necessidade de pensar as possibilidades de captura ideológica de impulsos emancipatórios não surgiu hoje. Em seu artigo “A paralisia da crítica e a democracia como tabu”, Silvio Carneiro nos apresenta elementos para se elaborar uma concepção marcuseana da democracia, destacando como o pensador frankfurtiano entendia as utopias enquanto possíveis formas de crítica às limitações das democracias nas sociedades de capitalismo tardio. Não para negar a democracia, mas para aprofundá-la, através da elaboração de uma “política do possível”, de modo que se pudessem romper as amarras impostas pelas sociedades capitalistas e sua “mais repressão”.

O aprofundamento dos mecanismos ideológicos de repressão, de certa forma, também é o tema de Mariana Zanata Thibes, em “Vigilância em tempos de internet: o temor da perda da privacidade e a exposição de si nos meios virtuais”. Em seu artigo, a Autora nos fornece um vívido quadro das novas possibilidades de controle social abertas pela tecnologia digital. Após traçar uma breve história da arapongagem, que muito cedo passa a ser exercida por governos de Estados democráticos contra seus próprios cidadãos, na forma da espionagem de lideranças de movimentos sociais, de dissidentes políticos reais ou potenciais e, até mesmo, de populares beneficiados pela assistência governamental, Mariana explora os condicionantes socioculturais que conferem à atual vigilância informática grande parte do seu poder. A chave da compreensão do fenômeno, sustenta-se aqui, não está tanto na tecnologia (embora esta seja fundamental), mas no chamado “segundo espírito” do capitalismo, este que impõe a permanente exposição de si como imperativo na busca individual por reconhecimento e sucesso. No centro da análise está o desmoronamento das tradicionais distinções burguesas entre as esferas pública e privada, pela qual subjetividades e habilidades profissionais cada vez mais se confundem através de práticas de contínua auto-exposição enquanto performance. Em nossa época de “capitalismo conexionista”, ser e aparecer imbricam-se como nunca, de modo que a vigilância de todos sobre todos e de cada um sobre si mesmo passa a ocupar um lugar central como forma de controle e produção de ajustamento social.     

As relações tensas entre capitalismo e democracia sempre se tornam mais agudas em épocas de crise. No artigo “Nas pegadas da crise”, Cícero Araújo discorre sobre algumas importantes interpretações da crise capitalista iniciada com o estouro da bolha imobiliária estadunidense no ano de 2008, de cujos efeitos, como sabemos, o mundo ainda não se recuperou. Num ensaio que combina exposição legível e fina análise, o Autor, a um só tempo, informa e faz pensar. Seu comentário estrutura-se na contraposição de duas formas muito diferentes de entender a crise. De um lado, o filme Inside Job, de Charles Ferguson, e o livro All the devils are here: the hidden history of the financial crisis, dos jornalistas americanos Bethany McLean e Joe Nocera, cujas estratégias críticas são ancoradas na denúncia - julgada aqui um tanto maniqueísta, embora necessária -, dos “vícios” e “excessos” do capital financeiro. De outro, as análises de orientação marxista, que sempre buscaram ressaltar as necessárias conexões internas entre a produção capitalista e o processo de financeirização do capital. O interlocutor privilegiado aqui é o geógrafo David Harvey. Cícero expõe muito bem a inteligência e a riqueza das análises de Harvey, mas também indica o seu ponto fraco, na medida em que, partindo do fracasso dos sistemas democráticos existentes em evitar a crise, o autor de “O enigma do capital” pressupõe a total integração da democracia aos imperativos da acumulação capitalista, o que, sustenta Cícero, limita a compreensão histórica, bem como as possibilidades de se pensar as alternativas políticas a partir de um entendimento da originalidade do próprio campo do político.

Essa busca por entender o campo do político em sua originalidade e diversidade histórica é também o que norteia o artigo “Revolução e contrarrevolução no Oriente Médio: o ponto de inflexão”, de Fábio Metzger. Desde 2011, os países árabes e/ou islâmicos do Oriente Médio vivem convulsionados. Da perspectiva ocidental, uma “primavera árabe”, que prometia democracia e justiça social foi sufocada por um inverno islamita que, num país-chave como o Egito, produziu (finalmente?) o retorno do regime mubarakista, mas sem Mubarak. Todo esse processo é detidamente analisado por Fábio, que enceta aqui uma original visão global do sentido maior dessas transformações médio-orientais, através da introdução do conceito de regime misto.

Voltando o foco para pensar os dilemas e possibilidades da política democrática no Brasil, Fevereiro traz como tema de debate o livro “Imobilismo em movimento”, de Marcos Nobre, que tem sido considerado uma principais tentativas de balanço histórico e análise teórica das características estruturais, avanços e limites dos governos petistas feitas até o momento. A resenha de Brasílio Salum, aqui publicada, além de resumir o núcleo teórico-político do livro com precisão, avança algumas importantes críticas que, sem dúvida, contribuirão muito para enriquecer e aprofundar um debate tão necessário quanto urgente das razões subjacentes ao truncamento da democracia brasileira.

Na sessão dedicada ao debate sobre as questões ecológicas, este número de Fevereiro traz o substancioso, claro e muito bem fundamentado estudo de Luís Marques: “A regressão ao carvão”. Nele, é desenvolvida uma análise dos motivos econômicos, mas também políticos, responsáveis pela sombria perspectiva de que, nos anos vindouros, seja elevada ao primeiro plano, em escala planetária, a mais poluente e ambientalmente destrutiva de todas as matrizes energéticas. A conclusão é aterradora, pois, como alerta o Autor, se esta tendência não for politicamente bloqueada (eis aqui novamente o conflito entre democracia e capitalismo!), “teremos em breve ultrapassado - se já não ultrapassamos - o limite além do qual ingressamos num terreno cujo declive nos impele inapelavelmente a um colapso socioambiental de proporções insondáveis”.

Em seção inédita de artes visais, Tiago Mesquita revisita o trajeto artístico de Lygia Clark, esta artista que foi, talvez, ao lado de Hélio Oiticica, uma das maiores propulsoras do movimento neoconcretista brasileiro.

A respeito da seção literária, a Fevereiro traz nomes de peso e de suma importância para a literatura universal: poemas dos alemães Heine e Goethe (tradução Ruy Fausto),  pequenos contos do autor russo Daniil Kharms (apresentação e tradução de Daniela Mountian) e destaque especial para o Dossiê dedicado ao ialiano Pier Paolo Pasolini (com apresentação de Alex Calheiros, tradução de Vinícius Nicastro Honesko, Davi Pessoa, Pedro F. Feise, Maurício Santana Dias e Marina Yajima. Vale a pena conferir, nas seções de Kharms e de Pasolini, as ilustrações de Rafael Carneiro e Vitor Butkus.

Boa leitura!

 









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