revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Charles KIRSCHBAUM

Liberalismo político e liberdade de expressão: o Charlie Hebdo affaire 1

 


 

Durante o debate sobre o atentado ao Charlie Hebdo no início deste ano, houve um grande número de artigos que se alinhavam em dois polos: “ir contra os ataques, mas mostrar como o C.H. era imoral”,2 ou “defender a liberdade de expressão, enfatizando que algo deveria ser feito em relação aos fundamentalistas”.3 De uma forma ou de outra, o foco era o Islã. Neste texto, gostaria de deslocar a discussão do Islã em direção a “religiões, em geral”, e queria deslocar o foco do possível abuso da liberdade de expressão por C.H., para falar de “liberdade de expressão, em geral”. Meu objetivo, portanto, é o de abordar algo mais amplo, que nos permita pensar o “Charlie Hebdo Affair” em perspectiva. Esse percurso segue três etapas: (1) remeter ao contexto institucional específico francês, (2) discutir a questão de justiça no embate declarado entre “liberdade de expressão” e “respeito”, para, finalmente, (3) retornar à “liberdade de expressão” enquanto valor público, conjuntamente com outros valores, como a tolerância.


1.  Aspectos institucionais


Grande parte das críticas ao Charlie Hebdo repousa no que chamarei de “moralismo anti-institucional”. Sua fórmula básica, que ganha alterações mínimas, é a seguinte: “não se deve ofender nenhuma cultura. Charlie Hebdo ofendeu várias culturas. Aqueles indivíduos morreram. É lastimável enquanto crime, mas não devemos lastimar nenhum ataque à “instituição da liberdade de expressão” porque, ao ofender, “já haviam abusado dessa liberdade”.
O problema dessa fórmula é que ela elimina o aspecto institucional da análise já de saída. O aspecto institucional que eu gostaria de ressaltar repousa em dois momentos distintos. Um deles é o da decisão judicial. O outro é o das instituições informais de uma sociedade. Ambos constituem-se mutuamente e, juntos, compõem o aspecto institucional.
O momento da decisão judicial diz respeito ao histórico de deliberações da justiça francesa a respeito de Charlie Hebdo, assim como sobre casos análogos. Essas decisões  surtem três efeitos: (1) imediatamente, dão respaldo legal às ações de Charlie Hebdo, (2) demarcam o que é legal de ilegal e (3) criam justificativas públicas para suas decisões. Aqui, encontramos um primeiro problema na maioria das análises: se é verdade que há um “abuso da liberdade de expressão” por parte de Charlie Hebdo, por que a justiça francesa nunca o caracterizou como tal, mesmo depois de tantos processos?4 Por outro lado, é possível que a justiça francesa considere Charlie Hebdo legal (por exemplo, ao atacar o islamismo), mas é repressiva em relação àqueles que ridicularizem outras religiões, o que nos levaria a acreditar que existe um sério viés no seu sistema jurídico. No entanto, na maioria das análises que encontramos, nem juízes, nem seus pareceres, nem suas justificativas são citadas. É nesse sentido que essa posição é a do “moralismo anti-institucional” - porque permite opinar sobre algo que já foi a juízo, sem, no entanto, dar a necessária atenção ao contexto jurídico. Por exemplo: será que importa o fato de a justiça francesa diferenciar a intencionalidade? Será que é importante o fato de que só é enquadrada como racismo a ação que visa explicitamente a criar ódio?5
Acredito oportuno apontar que o contexto do humor é levado em consideração pelos juízes ao julgar o semanário Charlie Hebdo.6 O humor não tem como função apenas o entretenimento ou a expressão artística em si. O humor pode ser uma forma importante de dizer algo que de outra forma ficaria reprimido.7 Assim, é importante observar de que forma a mensagem é enquadrada dentro do humor, se a intensão original é levar ao ódio (hate speech) ou se há outras mensagens inseridas em várias camadas de significado, e se existe uma exposição geral ou restrita à mensagem. No caso de Charlie Hebdo, podemos identificar todas essas ressalvas.
Uma das charges mais criticadas de Charlie Hebdo foi um cartum que trazia gestantes (engravidadas por membros do ISIS) reclamando que não eram atendidas pelo sistema de saúde francês. Os críticos apontaram que Charlie Hebdo era insensível à crueldade que essas mulheres sofreram.8 No entanto, esse cartum remetia à crítica que o semanário fazia à direita francesa, que busca excluir os imigrantes árabes dos serviços básicos de saúde; nesse contexto, o ímpeto discriminatório excluiria até as vítimas do ISIS. Podemos ver que um dos efeitos nefastos do ataque ao semanário foi a eliminação dessas camadas de significado que foram consideradas pela justiça francesa.9
Podemos tomar os exemplos com menor subjetividade como, por exemplo, os cartuns que figuravam o profeta Maomé. Por um lado, esses cartuns traziam um elemento de blasfêmia, ao ir contra o mandamento islâmico de evitar a representação (retornarei à questão da blasfêmia na próxima seção). Por outro lado, há real ofensa na medida em que se ridiculariza a figura do profeta. Nesse sentido, aponta a justiça francesa, os ofendidos são obrigados a ler Charlie Hebdo?10 Esse caso não seria análogo ao filme, peça ou tela que pode ou não ser consumido?11 Não seria análogo ao homofóbico que deveria evitar ir ao Shopping Frei Caneca?12
Obviamente, poderíamos deslocar nossa atenção sobre a justiça francesa e questionar se não há de fato um viés, e se seus critérios não são demasiadamente subjetivos. Mas ao entrarmos nessa seara, nosso “j’accuse” toma como central as instituições. Isso redime o Charlie Hebdo? Talvez não. Talvez a responsabilidade dos atores sociais ainda deva ser enfatizada. Mas isso nos obrigaria sim a prestar atenção nas evidências produzidas e trazidas à justiça - elemento fundamental do debate cívico.
De forma análoga ocorre o descaso com as instituições informais. Tomamos como “ofensivo” (passível de criminalização) aquilo que para nós parece ser repugnante, dentro de nosso etnocentrismo brasileiro cotidiano, aquilo que fere as nossas sensibilidades. Mas uma análise do humor francês, não só de C.H., permitiria entender se esse tipo de humor não é algo bem mais compartilhado do que parece.13 Ao longo dos dias subsequentes ao atentado, muitos sublinhavam como a revista era ofensiva a outras religiões, como o cristianismo e o judaísmo. Mas em contrapartida, era possível mostrar outras peças de humor, francesas ou de outros países, igualmente ou mais ofensivos que C.H.14
Ambos os momentos pressupõem um ao outro. É possível que a justiça francesa leve em consideração o contexto do humor para elaborar suas deliberações. E, ao mesmo tempo, os humoristas levem em consideração “os limites do permitido por lei” quando selecionam as piadas que irão a público. Ir a juízo não deve ser realmente ruim, contanto que trabalhem na área cinzenta. A controvérsia ajuda a promover os cartuns. Portanto, ainda que exista a possibilidade de inclusão de restrições à expressão no código de ética do jornalismo,15 acredito sinceramente ser difícil esperar que os jornalistas se imponham restrições por si sós, principalmente quando as restrições autoimpostas ganham um caráter ambivalente.16 Portanto, a discussão ganha nova relevância quando deslocamos a análise para o nível institucional.


2. A questão entre “liberdade de expressão” e “respeito”


Quando entramos no mérito da questão, temos o embate entre “liberdade de expressão” e “respeito”, onde encontramos três posições: (1) a liberdade de expressão deve ser mantida dentro da tradição secularista da França, (2) não deve haver desrespeito às religiões e (3) não deve haver desrespeito a minorias que não têm o mesmo poder de expressão.
A posição (1) fora defendida nas ruas, na “marcha republicana”, e pela imensa difusão do ícone “Je suis Charlie” nas redes sociais. Ela é defendida por pensadores como Hitchens (2015) como um valor supremo. E, no entanto, uma série de críticos mostraram que a liberdade de expressão deveria ter limites. As críticas vão na seguinte direção: a liberdade de expressão permite que se ofenda os outros. Dessa forma, existe o risco de geração de preconceito e discriminação em relação ao alvo da comunicação. Os defensores da liberdade de expressão geralmente rebatem essa crítica com o seguinte argumento: qualquer restrição à liberdade de expressão leva a arbitrariedades que acabarão cerceando a liberdade de todos, e, com isso, todos serão prejudicados. Em contrapartida, os defensores da liberdade de expressão acreditam que “mais liberdade”, “mais empoderamento” do ofendido é a resposta adequada à ofensa. Bastará para o meu argumento apontar as seguintes críticas a essa posição. Em primeiro lugar, ofensas podem gerar traumas psicológicos que são difíceis de reparar.17 Ou seja, a liberdade de expressão incorre em “custos” nem sempre levados em consideração e a sua irreversibilidade confere um caráter de injustiça à liberdade irrestrita.
Tendo estabelecido a necessidade de delimitar a liberdade de expressão de alguma forma, gostaria de enfatizar que toda proteção às religiões (conhecidas como “leis antiblasfêmia”) é especialmente problemática.18 Essa é a posição (2) que elenquei acima, e foi frequentemente citada entre os detratores do semanário Charlie Hebdo. A forma como irei abordar essa questão seguirá a sequência de argumentos que leva à questão substantiva do equilíbrio entre esses dois valores. Antecipando meu argumento, acredito que o embate seria mais produtivo se fosse reenquadrado dentro do debate de esfera pública e privada, na qual, entre muitos interlocutores, a última parece se impor à primeira.
O primeiro argumento diz respeito ao risco de “autocensura” dos jornais e cartunistas após os atentados no Charlie Hebdo. Por temor a novos atentados, seria tomada uma precaução exagerada em não ofender ninguém. De forma análoga, os órgãos reguladores estariam predispostos a aumentar o controle sobre as redações dos jornais e revistas. Uma releitura de Fahrenheit 45119 vale nesse momento: é justamente porque tantos grupos começam a se sentir cada vez mais ofendidos que o governo é levado a queimar os livros.20
Entretanto, defender o direito de liberdade de expressão evocando exemplos como Fahrenheit 451 traz elementos retóricos pouco produtivos: será que apenas cabe o “fla-flu”? Se somos completamente favoráveis à liberdade de expressão, sua negação é a completa autocensura?21 Será que estamos condenados a um mundo de profundas mazelas, ou ao estabelecimento do Ministério da Linguagem Higienizada? O problema remete à demarcação da linha: o que é ofensivo? Se considerarmos isso ou aquilo ofensivo, quais são as implicações? Se isso ou aquilo deixar de ser ofensivo, o que obtemos?22
Tomemos alguns exemplos para que possamos, por indução, discutir esse problema. Exemplo número 1: um grupo de fundamentalistas pentecostais entra em uma escola pública e chacina o professor de biologia por ensinar darwinismo. O professor já havia sido alertado antes.23 Nesse caso, apesar de ser ofensivo para os pentecostais, em nada podemos repreender o professor - não há intenção de ofender os pentecostais. Ao contrário: há algo na cultura daquele grupo em particular (e não em todos os pentecostais) que o predispõe a ficar ofendido. Nesse caso, o debate entre “público” e “privado” se coloca de forma clara: o poder público entende que o evolucionismo é a teoria que se deve ensinar em sala de aula, enquanto o criacionismo poderia ser ensinado, mas sem prejuízo do ensino do evolucionismo.
Segundo exemplo: em um país onde o casamento gay foi recém-declarado legal, um grupo judaico extremista invade a cerimônia onde um casal gay está prestes a se casar sob a chupá.24 Diz a lei rabínica: apenas dois homens podem ficar sob a chupá, o noivo e o rabino. O casal gay é chacinado, enquanto o grupo extremista declara que o casamento é uma ofensa a um símbolo judaico. Esse caso fictício também segue o mesmo tipo de argumento anterior: a liberdade de culto é estabelecida pelo poder público, o que significa que esses judeus não podem impedir aqueles judeus de desenvolver seu próprio culto.
Esse exemplo pode ser convenientemente modificado para uma situação não muito diferente e não muito distante. Imaginemos um país onde apenas casamentos heterossexuais são reconhecidos pelo Estado, onde as religiões fazem “lobby” para que essa situação não mude. Dentro do mesmo país, é proibido congregações que oficiem casamentos gays, mesmo que informalmente. Em nosso exemplo, católicos gays se casam às escondidas em uma “catacumba” para oficiar seus casamentos informais. Eis que entra uma célula católica extremista e massacra todos os presentes. Aqui obviamente há um atendado “à vida”: os fundamentalistas são presos pela justiça desse país. Por certo, as instituições desse país não permitem configurar o atentado à liberdade de culto (porque esse culto é proibido). Em um país como esse, onde percebemos que a religião molda as instituições públicas (são as religiões que estabelecem qual casamento será reconhecido pelo Direito Civil), temos também um problema de fronteira entre público e privado, mas, nesse caso, os valores privados (a consagração da união de duas almas perante o divino) se impõem aos valores públicos (a possibilidade de estabelecimento de relação estável perante o código civil). Ainda nesse caso, é possível que representantes das religiões argumentem que o casamento é um símbolo religioso, pertence às religiões, e, ao franquear esse símbolo aos gays, há uma ofensa a um símbolo sagrado. Será que nesse país não faria sentido o exercício do humor mais cáustico?
Entre esse último exemplo, já repleto de “tons de cinza” e o caso Charlie Hebdo, a distância já diminui. Em uma das charges “extremamente ofensivas” de Charlie, vemos a Santíssima Trindade dessacralizada. E essa charge, em particular, fora tomada por muitos internautas como exemplo do mal gosto de Charlie Hebdo. Entretanto, no canto superior esquerdo da página lê-se “Casamento gay”. Existe então aqui uma intensão simples e inequívoca de “gerar desrespeito por si mesmo” e “ódio gratuito”? Ou poderíamos interpretar essa charge como uma forma de travar um embate com religiões que ainda querem impor-se à sociedade laica?
Ao discutir a posição (1), concluí que a liberdade de expressão deve ser franqueada ao máximo quando for a melhor forma de defender-se de ofensas e promover o diálogo, mas restrita quando causar danos irreparáveis a indivíduos e grupos específicos. Ao discutir a posição (2), busquei mostrar que a liberdade de expressão é importante justamente na constituição de uma esfera pública laica que pudesse estabelecer limites a grupos religiosos poderosos. A partir dessas duas posições, é possível avaliar a terceira posição: não se deve satirizar grupos religiosos minoritários e discriminados (por exemplo, os muçulmanos na sociedade francesa).25 Em outras palavras, o humor deveria seguir a regra “punch up, don’t punch down”.26
Essa posição traz argumentos importantes. Por exemplo, uma das consequências indiretas da publicação e divulgação dos cartuns seria fortalecer a direita conservadora francesa e europeia, dando munição para o escárnio.27 Ou seja, ainda que os “custos diretos” de ofensa pudessem ser tolerados pelos ofendidos, indiretamente contribuiriam para um clima de clivagem social.28
Ainda assim, em linha com cartunistas como Art Spiegelman29 e várias lideranças muçulmanas progressistas, essa opção é rechaçada, porque levaria à diminuição do “empoderamento” dos imigrantes árabes. Ao contrário, o efetivo aumento das possibilidades de divulgação poderiam servir como forma de promover a liberdade de expressão para todos - que poderia ter como efeito adicional chamar a atenção para os problemas sociais desses imigrantes. Ou seja, essa seria uma forma de remediar a situação, sem descaracterizar o aspecto republicano do Estado francês.

 

3. Liberdade de expressão enquanto valor público


Como nasce a “liberdade de culto”, a “liberdade de expressão” e outras liberdades? Muito do que observamos nos dias subsequentes ao ataque contrapõe a “esfera pública” à “esfera privada” como se a primeira tivesse surgido ex-nihilo, junto com mártires como Giordano Bruno, e a última seguisse seu caminho de resistência, em lento ocaso desde o advento da modernidade.30 Mesmo na argumentação acima, deixei implícito esse embate. Seguindo essa lógica, é importante para as religiões que a esfera pública as proteja, para que possam continuar sustentando suas próprias instituições e garantir sua reprodução.31 Historicamente, isso também significou que a esfera pública teve o papel de resguardar as religiões de ataques violentos de outras religiões. Desse ponto de vista, a emersão de uma esfera pública onde seja possível argumentar livremente para que se possa deliberar coletivamente, e com isso proteger a instância privada das religiões, aparece como tema central das democracias constitucionais contemporâneas.32
Poderíamos, no entanto, percorrer outro caminho. É comum concebermos as liberdades modernas como um pacote único, coeso, onde cada liberdade pressupõe a outra. Na exposição acima, levei o leitor a pensar a “liberdade de culto” como dependente da “liberdade de expressão”. Entretanto, a liberdade de culto não é necessariamente dependente da liberdade de expressão. O valor da “tolerância” também cumpre um papel importante na defesa de cultos e religiões minoritários.33
Bejczy (1997) mostra que o valor da tolerância na idade média era importante para manter grupos religiosos protegidos. Por exemplo, os judeus eram mantidos às margens da cristandade, e a igreja pregava a tolerância, ainda que as práticas religiosas judaicas repugnassem a muitos cristãos. Mesmo em momentos históricos onde não havia uma “pluralidade de verdades” (a igreja católica era hegemônica), era possível o desenvolvimento da tolerância, contanto que os grupos minoritários ficassem à margem da sociedade e fosse garantido que não apresentariam ameaças. Em contrapartida, no interior da cristandade não havia nenhuma tolerância em relação aos hereges. A construção de estados modernos laicos, mostra Bejczy, confere completa liberdade de culto e ao mesmo tempo torna as religiões politicamente neutras. Ao retirar das religiões qualquer influência sobre a política, torna também a tolerância religiosa irrelevante.
Curiosamente, com a criação de uma cultura laica moderna que impediu a influência religiosa no âmbito estatal, seria possível questionar se os medievos não tinham maior liberdade religiosa do que os indivíduos no ápice da modernidade. Junto com John Rawls34 e outros liberais, poderíamos admitir que a fonte de significado para a vida dos indivíduos encontra-se na esfera privada e nas religiões (ao contrário da tese forte da modernidade, onde a autorrealização se daria apenas na participação ativa na esfera pública). Assim, poderíamos admitir que os valores da esfera pública fossem informados pelas religiões, e não sanitizados dos valores religiosos.
Com essa diferenciação proposital entre o “público” e o “privado”, demarca-se também aquilo que pertence à esfera pública e aquilo que pertence à esfera privada. Nessa dinâmica, os teóricos do liberalismo político são levados a nutrir esperanças de que os valores ensejados na esfera pública ganhem analogias ou boas aproximações aos valores professados pelas religiões (pertencentes à esfera privada) e vice-versa. Por exemplo, a discussão da escravatura passa pela esfera pública, mas também pela esfera privada das religiões.35 Especificamente nesse caso, identifica-se a importância de o islamismo encontrar formas de deter suas minorias radicais.36
O problema do caso Charlie Hebdo, nas análises que tentam ponderar entre a “liberdade de expressão” e o “respeito aos valores e símbolos das religiões”, é misturar no mesmo canal, sem maiores considerações, aquilo que é público e aquilo que é privado, como se pudessem ser diretamente comparáveis. Passamos a reconhecer a ação dos jornalistas de Charlie Hebdo como algo “teimoso”. Corremos o risco de ver nesse ato de teimosia apenas uma aguerrida luta por um valor de “caráter religioso” (o laicismo da esfera pública como uma religião e nada mais37 ), no sentido de que algumas religiões e/ou ideologias podem predispor-se a defender, outras nem tanto, essa tal “liberdade de expressão”. O problema é que a liberdade de expressão, conjuntamente com outros valores fundamentais, é constitutiva da esfera pública que existe, entre outros motivos, para proteger a liberdade de culto dos indivíduos, e as religiões das guerras inter-religiosas.
Assim, a liberdade de expressão, ao ser reduzida a uma crença privada, e retirada do conjunto de valores constituintes da esfera publica, dá um passo perigoso na direção de diminuição da democracia. Em contrapartida, ao dispor-se a morrer por um valor pessoal, religioso, entra-se na gramática do martírio.38 Ambos os caminhos são nefastos para a construção da democracia. A implicação prática dessa discussão, relacionada ao princípio da justiça que anima o debate, é que não se deve apenas levar em consideração “o quanto ofende” esses cartuns, mas ter em mente “o quanto limitações à liberdade de expressão leva, a longo prazo, a sociedade a uma erosão de sua esfera pública.”
Em contrapartida, a sociedade deve promover a tolerância em sua forma mais ampla, talvez mesmo recuperando certos aspectos da “tolerância medieval” apontada por Bejczy. Por um lado, é necessário promover maior tolerância entre os ofendidos, e com isso diminuir os “custos da liberdade de expressão”. Por outro, é possível que se aumente também a tolerância entre os grupos majoritários e hegemônicos, levando maior diálogo entre a esfera pública laica e os grupos religiosos. Se um ataque terrorista a cartunistas poderia sugerir já que estamos perante uma “religião insegura” (Zizek, 2015), o mesmo não poderia ser dito de uma esfera pública que precisa se afirmar impermeável a qualquer diálogo com o religioso? A contrapartida já pode ser identificada na Europa, na forma como as distintas sociedades souberam integrar, sem necessariamente assimilar o outro.39

 

Referências

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ilustração: Rafael MORALEZ




1 A primeira versão deste texto surgiu como produto de inúmeras interações dentro do grupo JuProg. Gostaria de agradecer ao Cícero Araujo, Sean White, Sérgio Lazzarini, Paulo Blank, Reginaldo Takara, Luiz Sakuda e Joon Moon pela leitura cuidadosa e generosidade. Assumo a completa responsabilidade pelos equívocos de interpretação.

2 Por exemplo, Wuornos (2015) tenta explicitar que Charlie Hebdo não faz nada além de dar poder aos reacionários de todo tipo, seja da “esquerda islamofóbica”, seja de islâmicos radicais. O problema dessa linha de argumento é que se fosse inequívoco o caráter de hate speech de Charlie Hebdo, não haveria nenhuma razão para a justiça francesa legitimamente dar permissão para a publicação dos cartuns.

3 Por exemplo, Magnoli (2015), Walzer (2015), Zizek, (2015). Ao longo deste artigo, tentarei mostrar que não se trata de defender a liberdade de expressão de forma irrestrita, como defendeu o periódico The Economist: “(...) [C]ircumscribing the principle of free speech would be a bow to [‘terrorists’] medieval fantasies” (Economist, 2015a, pg. 7).

4 Para Magendie (2015), presidente honorário da corte de apelação de Paris, as decisões relacionadas ao caso Charlie Hebdo sempre tentaram alcançar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e o respeito às crenças religiosas. Dizer que o Charlie Hebdo é “racista” sem essa análise é um equívoco (como receio que tenha sido o caso de Boaventura de Sousa Santos, 2015).

5 Chu (2015) é um exemplo típico que desconsidera esse ponto.

6 O contexto é explicitamente evocado por Magendie (2015), e também constante em documentos da ONU (OHCHR, 2012).

7 Southworth (2011) nos lembra que o bobo da corte era muitas vezes o único que poderia transmitir ao rei notícias e opiniões que poderiam custar a vida de outros. Assim, o bobo interrompia o clima de acato dos cortesãos às opiniões do rei. A posição do bobo era privilegiada e defendida através da sua relação pessoal com o rei, o que frequentemente levava à inveja entre os cortesãos. Podemos observar como as sociedades contemporâneas são herdeiras da função política do humor e, ao mesmo tempo, preservam em grande parte os privilégios do humorista.

8 Chu (2015).

9 Fisher (2015).

10 Magendie (2015).

11 Cohen (1996) se refere à propensão universal das pessoas em se ofender por tudo. Portanto, a justiça também deve desempenhar o papel de contenção das reações oriundas da ofensa.

12 Shopping em São Paulo conhecido por ser um reduto gay.

13 Salman Rushdie, citado pelo periódico The Guardian (2015).

14 Ver por exemplo o caso de Sarah Silverman, comediante americana famosa por suas piadas relacionadas ao Holocausto (Thorpe, 2015).

15 Esse é o caso de restrição à cobertura de casos de suicídio, onde fotografias e material filmado podem ser traumáticos para o grande público.

16 As motivações dos cartunistas ao publicar ou voluntariamente reter cartuns ofensivos foram amplamente discutidas. Vários cartunistas defenderam a autorrestrição, argumentando que levaria a um número maior de leitores (AVIVI, 2015). Nouchi (2015) liga o humor à expressão artística e, dessa forma, desaconselha a autocensura do humorista. Martins Costa (2015) serve-se justamente dessa aproximação entre o cartum e a expressão artística para identificar oportunidades de abuso da liberdade de expressão.

17 Ver Cohen-Almagor (2006) para o argumento em geral, e Patton (2015) para o caso específico de Charlie Hebdo.

18 Ver Safatle (2015).

19 Filme Fahrenheit 451, de Fraçois Truffaut, 1966.

20 Essa crítica é central nas recomendações do órgão OHCHR das Nações Unidas às leis que cerceiam a liberdade de expressão, tomando como base apenas a suposição de ‘blasfêmia’: ‘[B]lasphemy laws are conter-productive, since they may result in the de fact censure of all inter-religious/belief and intra-religious/belief dialogue, debate, and also criticism, most of which could be constructive, healthy and needed.’ (OHCHR, 2012, pg. 4).

21 Post (2007).

22 Cohen (1996) chama a atenção para o problema de restrição a subcategorias que então poderia ser aplicada a categorias mais amplas, cerceando de forma exagerada a liberdade de expressão.

23 De forma análoga, os redatores de Charlie Hebdo já haviam sido ameaçados de morte e o jornal atacado com uma bomba.

24 Tenda sob a qual se realiza o casamento judaico.

25 Essa é a posição de Safatle (2015), por exemplo.

26 Chu (2015, p.3)

27 Abdelmalek (2015), Davidson (2015).

28 Cohen, 1997.

29 Goodman e Shaikh (2015)

30 Ver por exemplo em Rorty (1994).

31 OHCHR (2012) afirma explicitamente que a “liberdade de culto” pressupõe a “liberdade de expressão”, o que posiciona uma em função da outra.

32 Esse é o “pacto Jeffersoniano”, defendido por Rorty (1994).

33 A concepção de “tolerância” na modernidade implica na clara separação entre o público e o privado, e a religião e o Estado (MONTERO, 2015). Buscarei desacoplar esses conceitos, alargando o alcance da ideia de tolerância.

34 Ver Rawls (1996).

35 Por exemplo, foi importante que as religiões passassem a ver a escravatura como imoral para que a sociedade encontrasse um equilíbrio entre o público e o privado. Sarna (2011) recupera, por exemplo, como essa mudança operou dentro do judaísmo americano dividido entre unionistas e confederados. De forma análoga, espera-se que a esfera pública possa incorporar valores religiosos socialmente aceitos. Destituídos da prerrogativa epistemológica de “verdade” (RORTY,1994), espera-se que o consenso público possa ser uma sobreposição de valores defendidos na esfera privada (a ideia de “overlapping consensus” de Rawls, 1997).

36 Por exemplo, Clemesha (2015), Husain (2015). Em algumas manifestações após os eventos, alguns comentaristas afirmaram que o apreço à liberdade de expressão é algo restrito ao ocidente e que não se poderia se estender a outras culturas. E por isso não cabia a defesa da “liberdade de expressão” e muito menos o “apelo aos muçulmanos moderados” (o que equivaleria a rotular “bons e maus muçulmanos”). O tema da universalidade dos valores liberais (incluindo a liberdade de expressão e tolerância) foi objeto de discussão na filosofia política. Por exemplo, Walzer (1997) mostra como a tolerância é distinta em contextos não liberais. Cohen (1996) explicita os pressupostos antropológicos e sociológicos subjacentes à liberdade de expressão. Dessa forma, coagir imigrantes muçulmanos a aderir à liberdade de expressão seria uma postura, na melhor das hipóteses, “colonialista” e “assimilacionista”.  No entanto, algumas das referências que remetem aos “muçulmanos moderados” também referem-se aos esforços da república francesa em acomodar e tolerar as especificidades religiosas islâmicas (Economist, 2015b).

37 A diferença está justamente na “epistemologia moral” da esfera pública. Enquanto as crenças e valores das religiões estão fundamentadas na palavra revelada e na autoridade clerical, a construção da verdade na esfera pública não pode apoiar-se na autoridade religiosa (RORTY, 1994).

38 A caracterização da “liberdade de expressão” como um valor análogo ao religioso abre a possibilidade de falar de “martírio” e “sacralização”. Goldhammer (2015), por exemplo, é explícito em condenar a “sacralização” dos jornalistas mortos: ‘To transform the shock of Charlie’s obscenities into veneration of its martyrdom is to turn the magazine into the kind of icon against which its irrepressible iconoclasm was directed’. Em contrapartida, obras literárias como Submissão, de Houellebecq (2015), parecem caracterizar uma luta de vida e morte de um conjunto de valores contra outro.

39 Korteweg e Yurdakul (2014).

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