revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Fábio Weintraub

Apresentação

 


Três poetas contemporâneas, Fabiana Faleiros, Luísa Nóbrega e Marília Garcia, em diálogo “cego”, sem identificação dos remetentes, com uma quarta, Hilda Hilst, falecida há mais de uma década. Quatro mulheres numa correspondência disparada não pela poesia, mas por fragmentos em prosa da escritora ausente, retirados de livros como Ficções (1977), A obscena senhora D (1982), Contos de escárnio. Textos grotescos (1990) e, sobretudo, Cartas de um sedutor (1991). O mosaico de fragmentos, elaborado por Marcela Vieira, proponente do jogo, varia conforme o destinatário, iniciando-se contudo com o mesmo parágrafo, de teor metalinguístico, oriundo dos Contos de escárnio.        
Estimuladas por tal recorte na prosa hilstiana, Fabiana, Luísa e Marília reagem respondendo não à Hilda, mas trocando textos entre si, textos aos quais são acrescentados novos fragmentos hilstianos, geralmente nas extremidades de cada segmento. No final, três textos sem destinatário específico, sem nenhum “para” após as iniciais de cada poeta. 
Configurado desse modo, o jogo cria um fluxo discursivo desigual, em que a sequência de textos rompe com a ideia estrita de correspondência, pois, embora haja ecos e retomadas do discurso alheio entre as “carteadoras”, isso não configura propriamente respostas específicas, focalizadas, a estímulos antecedentes. Comentando a natureza dos textos do mendigo Stamatius e do aristocrata Karl, personagens complementares de Cartas de um sedutor, o crítico Alcir Pécora refere-se a seus escritos menos como “conversas efetivamente trocadas entre pessoas diversas” e mais como “desencontros acirrados, rompimentos, desenganos”, uma vez que, para Hilda, a tarefa da escrita “parece condensar o silêncio das cartas jamais correspondidas”.1
Aqui, no entanto, essa incorrespondência, na qual a solidão fornece lastro para a ousadia criativa, adquire novas dimensões, não apenas pela ausência da remetente inicial - cuja voz, sem embargo, continua a ressoar no diálogo das poetas por ela instigadas numa espécie de paraventriloquismo -, mas também pelas diferentes distâncias assumidas por Fabiana, Luísa e Marília em face da voz espectral.
Se em Hilda muitas vezes a figuração do feminino assume face negativa, como penhor da sinistra domesticidade que a pornografia vem desestabilizar, em Fabiana Faleiros, as tensões entre os espaços doméstico e social (“Chego em casa sozinha depois do show”) atualizam o problema da violência de gênero, com direito a evocações da boçalidade troglodita de uma figura como o deputado federal Jair Bolsonaro (“não estupro porque você não merece”), associadas ao bullying misógino, homofóbico e capacitista contra a garota de seios grandes e botas ortopédicas. A isso se somam hesitações entre o vago desejo de maternidade (“filhoounao” é a senha da personagem nas redes sociais) e uma vivência traumática do corpo, adoecido (a mãe com febre chikungunya) ou teratogênico (“sonhei que tinha uma teta na altura do antebraço/ na mesma altura onde mamam na gente”).
Tais obsessões ecoam a mística corporal hilstiana e o desejo de ascese erótica, tão central em um livro como A obscena senhora D, ressurgindo com inflexão diversa nos textos de Luísa Nóbrega, poeta e performer como Fabiana, cujos trabalhos frequentemente incorporam elementos biográficos (a deficiência auditiva congênita2 da artista comparece autoficcionalmente em passagens do tipo “eu escuto, mas só escuto mais ou menos”, “tem um livro na mesa que eu não sei de quem é/ chamado ‘os surdos’” e “talvez seja o estrondo/ talvez o cano no meio do caminho/ mas você não ouve bem”).
Enquanto em Hilda o corpo é ao mesmo tempo obstáculo à iluminação e via de passagem para o divino, buraco cheio de excremento por onde Deus circula (“Deus entra e sai, Ehud?”), nos textos de Luísa ele é sítio de permanente falta e reinvenção, corpo amputado e protético, avesso a indagações metafísicas (“eu quase nunca uso a palavra corpo eu quase nunca uso a palavra Deus”), superfície sujeita à violência das perfurações artificiais, livro a ser escrito ou flauta aberta ao ar dos objetos, sem perspectiva de comunhão (“eu abro buracos em muitos lugares distintos,/ como a parte de trás do pescoço, a parte da frente,/ no peito o osso externo/ debaixo do umbigo, a virilha”; “as costas são páginas duplas/ que você escancara ao mesmo tempo/ como se rasgasse um embrulho// o tampo da tua garganta faz um click/ quando a carne se descola”).
Nota-se então como, a despeito do caráter fragmentário, das diferenças de gênero, estilo e temperamento entre os textos, alguns fios narrativos vão aos poucos se delineando. Às lucubrações metafísicas de Hillé/Hilda segue-se a travessia do vale da morte, recolhida por Fabiana (“Escuto um homem gritando na rua/ da minha casa:/ eu vou atravessar o vale da morte/ quando eu morrer quando eu acordar/ vai ser pior aqui filho da puta em vida”), o que se casa à enunciação do apocalipse reproduzida por Luísa (“faz uns dias tinha um pastor/ num palco montado na praça/ repetindo aquela frase do apocalipse/ e os que não morreram pedem pela morte,/ mas ela não vem”), associando a reflexão sobre o fim dos tempos à ideia de artifício, do tal corpo inventado, amputado, protético. Corpo que já não constitui objeto de humor, horror e epifania, como em Hilda, mas de um deleite contraditório:

 

   
  eu gosto/não gosto das flores artificiais
eu gosto/não gosto do fim dos tempos
[...]
se um cachorro arrancar meu braço
será que sai sangue ou tinta?
será que meu braço é de plástico?
eu não sei, eu acho bonito
   

 

 

   

ilustração: Raquel Nava

 

 Marília Garcia, terceira voz nesse correio arretado, ingressa na conversa seguindo de modo rigoroso a sugestão do segmento inicial: “não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim”. Marília se aferra ao ideal de subversão do encadeamento lógico-linear das narrativas e faz três entradas: a primeira dedicada aos “começos”, a segunda aos “meios” e a terceira aos “fins”. Em “MG para FF”, uma sequência de diferentes começos (citações de frases lidas ou ouvidas) suspende o fluxo narrativo pela reiteração do espanto diante de potenciais disparadores dialógicos (“como se começa uma conversa com alguém?”). Em “MG para LN”, é a vez dos “meios”: ela se serve de imagens de travessia e perfuração presentes no texto de Luísa para pensar “o que acontece durante”, “o que acontece no meio”. Curiosamente, é no final desse segmento que a meu ver a inclusão de fragmentos hilstianos feita por Marcela alcança a maior “liga”, com um miniconto oriundo de Cartas de um sedutor,3 em que a exigência convencional feita a um escritor quanto à necessidade de “fôlego” narrativo, isto é, de desenvolvimento do que se situa entre o começo e o fim, é “respondida” com um texto “breve, leve conciso, apressado de si mesmo, livre de dados pessoais” em que se narra a morte do crítico, cujo fôlego termina durante uma prova de natação.
Já no segmento “MG”, são os fins que dominam, mesmo que provisórios (“por enquanto acabou”, “acabou o tempo”, “chega-se ao fim pelo contato”). Dentre as três poetas, Marília talvez seja quem segue mais à risca as “instruções” do jogo, cingindo-se de modo sistemático aos textos alheios para edificar o seu discurso.
Por falar em instruções, vale lembrar que, além daquelas que definem o mecanismo da correspondência, há também as inventadas pela própria Hilda, como as “Pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para senhores e donas de casa”, incluídas em Contos de escárnio, retomadas por Luísa Nóbrega (“instruções expressas para uma espécie de ritual”) de modo explícito (“arranho essas citações de madrugada a te imitar”) e em seguida por Marília (“um dia chegaram as instruções”). Parodiando a forma didática dos manuais de etiqueta e revistas femininas, em Hilda, tais receitas consistem numa série de performances nonsense para solapar a ordem doméstica: há várias sugestões de abandono do lar (por suicídio ou viagem); as crianças são mais de uma vez alvo de crueldade; a família, a televisão e o mundo do consumo sofrem contínua avacalhação, ao passo que a relação com o leitor oscila entre o incentivo ao autocontrole (“contenha-se”) e o estímulo ao desrecalque (“tá na hora”). No jogo ora armado entre FF, LN e MG, as instruções funcionam numa chave mais grave (isto é, com menos humor) e metalinguística, definindo, porém, uma assimilação surpreendente do legado hilstiano.  
Que o leitor aceda então ao cerne dessas conversas cruzadas, dessas cartas misturadas cuja leitura talvez demande de nós aquele colírio “feito da mesma substância/ que existe no olho dos peixes/ que moram no fundo do mar”.

 

Fabio Weintraub. Poeta e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH/USP. 










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1 Pécora, Alcir. Nota do organizador. In: Hilst, Hilda. Cartas de um sedutor. São Paulo: Globo, 2002, p. 10.

2 A esse propósito, explica a poeta Érica Zíngano: “Não me parece, portanto, equivocado ressaltar como o seu próprio corpo (e as suas deficiências biológicas congênitas) tornaram-se suas matérias de trabalho (quer dizer, de contato). Em muitas das performances que começou a realizar, Luísa vale-se da sua própria deficiência auditiva ou da sua dificuldade articulatória para extrapolar-se, testando os limites da linguagem como um medium e da sua única morada, o corpo, esse conjunto informe de farelos”. Zíngano, Érica. Mercúrio em conjunção com o ascendente: Érica Zíngano apresenta o trabalho de Luísa Nóbrega. In: Revista Modo de Usar, 28 ago. 2014. Disponível em <revistamododeusar.blogspot.com.br/search?q=n%C3%B3brega>. Acesso em 2 ago. 2015.

3 Hilst, Hilda. Cartas de um sedutor. São Paulo: Globo, 2002, p. 154-5.