revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO

O ciclo do totalitarismo e os impasses da esquerda mundial (II - fim)1

 


Nota: A primeira parte desse texto foi publicada no número 7, da Revista Fevereiro. O conjunto do artigo foi redigido por volta de maio de 2014. Revi e modifiquei algumas passagens, além de acrescentar algumas notas (maio/ julho de 2015)

 

6. Reconstrução da teoria:

a) A experiência do ciclo do totalitarismo. História cíclica e história pendular. Progresso. Sobre as Teses de Benjamin;

b) O projeto de uma nova teoria da história e os textos do “melhor" Marx;

a) Esse itinerário histórico do totalitarismo é, sob muitos aspectos, surpreendente. E ele exige uma verdadeira reconstrução do discurso político das esquerdas. Talvez a primeira coisa a considerar seja o próprio fato de que, em lugar de um governo protosocialista, teve-se uma ditadura burocrática que floresceu sob a forma de um regime totalitário e genocida. Qual a necessidade histórica dessa sequência? A meu ver, não basta dizer que, por certas razões, a revolução (qualquer que fosse a sua forma, pacifica eventualmente) não veio. Esse tipo de formulação já supõe coisas demais. Insinua que a revolução deveria vir. Deveria vir, onde? Nos países mais avançados? Já indiquei que esse tipo de consideração não é satisfatório. Supõe-se sempre que, historicamente, a revolução estava na ordem do dia, em algum lugar pelo menos. Como necessidade, rezava o discurso mais ortodoxo. Como possibilidade, diz o que chamei de “melhor marxismo”. Sim, como possibilidade, mas na realidade mais como possibilidade abstrata do que como possibilidade concreta. A experiência do ciclo do totalitarismo deveria nos convencer de que o “destino normal” - sem falar de um destino fatal - das sociedades contemporâneas, mesmo para o caso dos países mais desenvolvidos, não é a revolução (qualquer que seja a sua modalidade, pacifica ou não), mas a continuidade - sob uma forma ou outra - da dominação e da exploração. Digamos que a experiência do século XX revela uma profunda inércia da história, isto é, daquilo que Marx chamava de pré-história da humanidade (mas essa conceituação, veremos, é muito problemática). A revolução - entendendo esse termo em sentido bem amplo - é, na realidade, uma ruptura bem maior do que supunha a teoria hegemônica no interior da esquerda. Em que sentido? No de que as forças de conservação são muito fortes, e mais, de que a tendência histórica é antes para a emergência de novas (ou não muito novas) formas de exploração e de opressão, do que para a emergência de um regime pelo menos protoemancipador. A tal ponto, que não se pode mais partir da ideia do “deveria vir e não veio”, ou fracassou, como se o caminho que desemboca na revolução fosse o “normal” (por muito que se admitissem dificuldades e obstáculos); isto é, não se deve partir da hipótese da revolução que “deve vir” (apesar de tudo essa hipótese, de forma implícita ou explicita, ficava subjacente), mas da ideia de uma história cíclica, no sentido de que o caminho “normal” (aproximadamente, o mais provável) é o de uma história que vai revelando sucessivas formas de opressão/dominação. É como se, finalmente, os teóricos do ciclo (Políbio, Vico, Michels, talvez Pareto), qualquer que fosse a versão da história cíclica pela qual tivessem optado - enquanto teóricos em sentido estrito, isto é, sem que se aceite o seu projeto político, e a sua atitude e juízo diante da realidade da inércia e do ciclo - tivessem tido bastante razão, em contraposição aos teóricos do progresso.2 A revolução - entendida como uma verdadeira revolução, duradoura e emancipadora -, e não como um golpe de Estado que se apresenta como revolução, ou como um momento efêmero de emancipação que logo se esvai e passa no seu contrário, seria, na realidade, uma ruptura mais profunda do que a se pensa até aqui, digamos, uma ruptura da lei histórica, que é uma lei cíclica. Dir-se-á que enveredo aí por uma crítica do progresso; e que esta crítica não é tão nova, e vem mesmo ganhando terreno, nos últimos anos, em muitos meios da esquerda. Sim, mas atenção. A crítica corrente do progresso, a de esquerda inclusive, concentra-se em geral nos problemas ecológicos, os quais são muito importantes, essenciais mesmo, mas não são todo o problema; por isso, ela fica, na maioria dos casos, aquém da crítica propriamente política do progresso. Temos, por exemplo, certos discursos ecossocialistas, para utilizar uma terminologia que serve de bandeira a alguns, em que se combina marxismo e ecologia, às vezes até leninismo ou trotskismo e ecologia... Ora, não há crítica do progresso, se não atacarmos as raízes dessas ideologias, no fundo hiper-“progressistas”, que são o leninismo ou o trotskismo. E, quanto ao marxismo, sem jogar fora toda a sua herança, pois há nele uma vertente válida, mas insuficiente (acho eu) para que seja legítimo se declarar marxista atualmente, é evidente que é preciso pelo menos repensá-lo criticamente a fundo. A meu ver, deveríamos partir de uma história que “em si e para si” - para falar hegelianês - é a história de ciclos de poderes dominantes que se sucedem na história. Uma revolução, como verdadeira virada emancipatória - o que, no estágio atual, não passa de um possível abstrato - viria quebrar essa “lei” dos ciclos (isso é um pouco diferente do que diz a tradição; significa que, a rigor, a revolução não está inscrita na história). Na mesma ordem de considerações, refletindo ainda sobre o ciclo do totalitarismo, seria preciso dar uma latitude muito maior à ideia de regressão histórica. Regressão em sentido ético-político e não técnico ou científico (conforme o caso, poderia ser não simplesmente técnico-científico). Isto é, pensar seriamente na ideia aparentemente abstrusa de uma história que vai para trás. Bem entendido, encontra-se, nos clássicos da esquerda, a ideia de regressões históricas; porém, não havia lugar, pelo menos no quadro da modernidade contemporânea, para regressões da ordem daquelas a que assistimos. Sequências como a do “grande salto para frente” maoísta, ou do calvário dos camponesa sob Stálin, nos anos 1930, na realidade toda a trajetória do stalinismo e de suas ramificações (e, a fortiori, do nazismo), constituem verdadeiros movimentos regressivos da história. (Sem dúvida, em sua fase final principalmente, podem-se reconhecer nos totalitarismos “igualitaristas”, no meio de muita regressão, certos elementos de progresso extracientífico, elementos em geral efêmeros; mas não muito mais do que isso). Eis aqui um tema ainda a meditar seriamente: como foi possível que movimentos - e, depois, processos históricos de aparência eminentemente revolucionária, tidos, por isso mesmo, pela opinião de esquerda esmagadoramente dominante, como indiscutivelmente emancipatórios - tenham provocado a aniquilação de mais ou menos 50 milhões de pessoas, para afinal desembocar em sociedades autoritárias, de capitalismo “selvagem” ou “mafioso” (ou, talvez, os dois?). E a meditar, especialmente, sobre o “detalhe” curioso de que, durante anos, muito pouca gente, na esquerda, se deu conta disso. De fato, uma parte, talvez o melhor da intelectualidade ocidental, em pleno processo, por exemplo, daquele grande massacre que foi “o grande salto para a frente” saudava as vitórias da revolução chinesa e se comprazia no culto do grande Mao (como cultivara, alguns anos antes, o mito do grande Stálin, “pai dos povos” e melhor encarnação humana do projeto socialista...). Alguma coisa ainda nos escapa nisso tudo. Não o digo em benefício da política do pior, ou do pessimismo niilista. Só afirmo a necessidade de tentar pensar, ainda uma vez,com coragem e rigor, o sentido da sequência totalitária. A propósito do progresso, seria preciso completar, acrescentando que a social democracia, à sua maneira, também pagou um preço pelo culto do progresso (embora seja verdade que Bernstein tenha falado em “regressão” a respeito do “comunismo” russo). Nesse caso, o progresso é concebido de um modo simetricamente oposto ao do totalitarismo “igualitarista”. Progresso sem rupturas, história como processo ascendente contínuo. Porém, não só a social-democracia mas também o“comunismo” é “progressista”. Ambos o são. E é uma insuficiência maior das famosas teses Sobre o conceito de História, de Walter Benjamin, que elas deem um peso excepcional à crítica do progressismo socialdemocrata (ver tese 11, tese 12 e tese 13), enquanto a crítica do “comunismo”, pode-se dizer, fica qualitativa e quantitativamente a meio caminho. A respeito do “comunismo”, há principalmente (ver tese 10) uma alusão crítica a um episódio sem dúvida funesto e escandaloso, da sua história, mas não suficientemente representativo da sua essência, o pacto germano-soviético, mais algumas referências que poderiam servir aos dois casos, como quando se fala da “adaptação servil a um aparelho incontrolável” (tese 13). O fenômeno do totalitarismo “igualitarista” (com os seus antecedentes leninistas) não é tema das teses de Benjamin (que, entretanto, escrevia em 1940, e antes de frente anti-hitleriana). Por isso, elas puderam alimentar e alimentam ainda um gauchismo que chega à crítica ecologista do progresso, mas permanece “progressista”, malgré lui, no plano político, o que, de um modo particular sem dúvida, poder-se-ia dizer também, por paradoxal que isso possa parecer, e apesar da sua crítica ao progressismo socialdemocrata, do próprio Benjamin.3


Um desdobramento da ideia de uma história cíclica é a de uma história pendular. O leninismo e, depois, o stalinismo e o maoísmo, aparecem, sob certo aspecto, como projetos de inversão brutal do capitalismo (do capitalismo democrático, em particular). Assim, se neste tem-se um contrato que garante certo número de liberdade sociais e políticas, mas não se garante a ninguém o direito de não morrer de fome, naqueles, pelo menos em tese, e fora os períodos de terror (que, entretanto, foram quase a regra...), garantir-se-ia a sobrevivência e a satisfação das necessidades elementares, mas em troca de uma alienação de todas as liberdades. Aliás, não é por acaso que os Castro e companhia apelem tanto para o tema das crianças que têm fome. Há, de fato, milhões de crianças no mundo que têm fome, mas não é por amor às crianças que eles voltam tanto ao tema. É porque o seu ideal político - e isso no melhor dos casos - é o de instaurar um poder que estabeleça uma relação paternalista entre o tirano e os seus súditos. Estes últimos terão o suficiente em termos de comida, bebida e algumas outras necessidades básicas (isto, em tese; na realidade, já se foi a época em que essas vantagens eram sagradas), mas, como as crianças, não terão direitos políticos. Crianças não votam nem fundam partidos Os totalitarismos exprimem uma historicidade pendular. Tudo se passa, como se tivéssemos lá uma simples - mas, por isso mesmo, brutal - inversão do que se tem nos capitalismos. Assim, o regime maoísta praticou sistematicamente a discriminação contra os de “má origem”. Desde os primeiros anos de poder, distribuíram-se formulários a preencher obrigatoriamente, através dos quais, cada um informa qual é o seu meio de origem, o que permite classificar os de boa cepa (filhos de camponeses pobres, por exemplo), os de média (intelectuais, por exemplo), e os de má (filhos de camponeses ricos, por exemplo, e, por “rico”, entendeu-se muita gente que, de rico, propriamente, tinha muito pouco). Essas diferenças acompanharão cada pessoa durante toda a sua vida e decidirão o seu destino. Por exemplo, se ela pode ou não pode ter acesso à Universidade. Há aí uma espécie de inversão radical da antiga situação, mas que é ao mesmo tempo algo como uma volta a um “ancien régime” pré-capitalista, em termos muito imprecisos a um “feudalismo” (o termo não é rigoroso, mas tem a sua verdade, e foi muito utilizado pelos opositores ao regime). Que esse tipo de política e de atitude tenha algo a ver com o projeto e os ideais do socialismo está longe de ser evidente. De resto, o jovem Marx já condenara o “comunismo grosseiro” que queria apenas generalizar a propriedade privada. Contra a história pendular, que é uma expressão possível de uma história cíclica, é preciso pensar uma história futura que acumule conquistas. Em que se empunhe a bandeira da igualdade, sem negar a liberdade. Porém isso também não significa aceitar a ideia bernsteiniana de um simples contínuo entre as duas “revoluções”. A liberdade tem de ser reconstruída e a passagem à igualdade é, de qualquer modo, uma ruptura. A igualdade não liquida, entretanto, a liberdade, mas a clarifica e desenvolve.


Se, portanto, é preciso reconsiderar as ideias de história cíclica e de regressão histórica, é necessário, igualmente, entre outras coisas, repensar a questão das relações entre capitalismo e democracia, ou, mais precisamente, entre capitalismo, democracia e autoritarismo. Na teoria hegemônica da esquerda, o capitalismo “vai junto” com a democracia, com o que esta aparece como uma forma política que corresponde ao primeiro. Já insisti, em outros lugares, e por isso não me estenderei muito aqui, sobre a necessidade de considerar separadamente o capitalismo e a democracia, e também o “autoritarismo”. Não se viu, ou não se viu suficientemente, a tensão virtual ou real, que existe entre o impulso igualitário da democracia e o impulso anti-igualitário do capitalismo. Pensou-se, apenas, como o primeiro pode mascarar o último e, assim, funcionar como instrumento dele. Mas não há só isso. Existe uma relação tensa entre capitalismo e democracia, e uma afinidade secreta entre capitalismo e autoritarismo.4 Isto é verdade, ainda que a noção de “democracia” seja, por outro lado, instrumentalizada para servir ao capitalismo e ao imperialismo, e mesmo se a democracia no ocidente é laminada pelo peso do capital, e tenda a transformar regimes democráticos (democrático-capitalistas) em regimes oligárquicos. A ideia de democracia, ideia teórica e prática, é essencial à crítica do totalitarismo. E, mais ainda, ela é fundamental à análise da crise dos sistemas totalitários e, com isso, da crise presente. Se não separarmos capitalismo e democracia, a história das lutas dos anos 1990 na Rússia, por exemplo, é inteiramente incompreensível. Como afirmaram certos comentadores, elas não se travaram entre capitalistas e anticapitalistas, mas, muito mais precisamente, entre democratas e inimigos da democracia. Porém, que não se perca de vista: democratas são aqueles que se opõem não só ao totalitarismo como ao autoritarismo, a saber, tanto ao “comunismo” como aos neoautoritarismos pós-comunistas. O que “o Ocidente” não viu ou não quis ver, ao apoiar Yeltsin. O terceiro aspecto é o da crítica da violência. É evidente que a chamada “violência revolucionária”, que, na origem, deveria ser contra-violência e, por isso, violência afetada de “negação”, se transformou, na época totalitária, em violência tout court. Não mais “negante”, mas plenamente positiva, e hiperpositiva. Mesmo se o tema já foi discutido mais de uma vez, é preciso insistir nas ilusões alimentadas em torno das grandes virtudes da violência revolucionária (ler as páginas idílicas de Engels, contra Dühring, tecendo loas ao pretenso compromisso não ambíguo da violência com as forças de emancipação). Para dar mais um exemplo. Mesmo antes das grandes festas de horror, do tipo do “grande salto para a frente” - como vimos, na primeira parte desse texto - a história do comunismo na China é uma sucessão de atos violentos e arbitrários, cometidos contra gente inocente. Uma sucessão de cenas de sangue que não pode se justificar em nome do socialismo. Na realidade, mesmo se tudo tivesse “dado certo” - e não foi bem o que aconteceu -, o que se passou na China teria de ser justificado de uma forma ou de outra. Assim, é necessário reconsiderar o problema da violência, em geral proscrevê-la, ainda que não saibamos se ela poderá vir a ser necessária enquanto contra-violência imposta por uma eventual violência dos adversários. Mas ela só poderia ser uma contra-violência consciente do emprego abusivo que dela se fez até aqui, e do risco que, finalmente, lhe é inerente, o de se degradar em violência tout court.

b) O projeto de uma nova teoria da história e o “melhor” Marx - Se quisermos situar esses desenvolvimento críticos - penso, principalmente, no que se refere à teoria da história  no contexto do tema já antigo, mas não esgotado, apesar das aparências, da crítica do corpus marxiano -, seria possível fazer as seguintes considerações. Comecemos observando que alguma coisa resta, sem dúvida, do marxismo. O “capital” tende sim a dominar o mundo. Mas por trás do capital - ou por sobre ele - há realidades não só muito complexas, mas muito diversificadas. Se a concentração da riqueza e o aumento da desigualdade sob a hegemonia do capitalismo financeiro superou todas as expectativas (ver a respeito o best-seller mundial de Thomas Pikkety), tudo isso ocorreu num quadro político que, a rigor, está em ruptura com a “teoria”. Alguns elementos bastante importantes da herança marxista clássica ficam, entretanto, de pé. E poder-se-ia mesmo dizer que também algo da construção “formal” da história, mas na versão que chamei de “melhor marxismo” - o discurso dos Grundrisse, principalmente - é defensável. Assim, a perspectiva marxista é confirmada, no plano do conteúdo (em alguns dos seus aspectos), no sentido de que o capitalismo se expandiu, e continua se expandindo muito, como uma força irresistível, e no fato de que, com a hegemonia do capital financeiro, ele produziu um formidável processo de ampliação das desigualdades. E o corpus marxista pode se sustentar também no plano da forma - refiro-me aqui, entretanto, a algo bastante específico, o esquema de história que propõem os Grundrisse - já que, em princípio, este não seria incompatível, mutatis mutandis, com a experiência da sucessão de formas sociais que se teve na história contemporânea. Naquela teorização, que pode ser considerada como a versão mais rica de uma teoria da história encontrável em Marx, há um discurso posto, que tem por objeto os modos de produção, e um discurso pressuposto (em sentido dialético, isto é, não fundante, precisamente “esquematizante”) que visa o conjunto da história. O que caracteriza o primeiro é a descontinuidade, como também a relação original, que ele induz, entre determinismo e contingência. Cada modo tem uma história determinada - embora não fatalmente determinada - porém a determinação está em sua morte,5 ou seja, em seu processo de decomposição e não em seu nascimento. De fato, se há determinação no curso descendente, o movimento ascendente (a sua gênese) não é imediatamente determinado, mesmo se, progressivamente, o processo vai fugindo da indeterminação. O surgimento dos modos depende de um processo que é em grande parte contingente, embora ele se faça necessariamente sobre a base de elementos pressupostos (aqui o termo “pressupostos” - sempre em modo dialético - é utilizado, entretanto, no interior do discurso da posição). É a partir desses pressupostos - e não mais do que “a partir”, não se trata de causalidade - que se dá a gênese e, depois, o desenvolvimento do novo modo. Sobre essa configuração de dispersão se alinha o esquema totalizador pressuposto. Este remete, por um lado, a um discurso sobre uma outra gênese, a gênese do homem, a história da geração do homem, processo que, segundo Marx, conduziria este último da sua pré-história à sua história.6 De um modo mais analítico (e mais aceitável), diríamos que se trata da passagem de um “homem”, aproximadamente “suporte” de relações (há, porém, particularizações nessa determinação), até um homem na condição de sujeito. Ou, então, segunda possibilidade de totalização (pressuposta), descreve-se um movimento ternário em que aparece primeiro um homem sujeito, mas limitado (e, portanto, só em certo sentido, sujeito), situação que corresponde ao mundo antigo; depois, um homem negado em “suporte” (mas um “suporte” de processos sem limite, “infinitos”), é a época capitalista; e, finalmente, um homem plenamente sujeito de um processo sem limite, isto é, a volta ao sujeito, mas que é agora ilimitado ou infinito, e habita um universo social de liberdade e plena expansão: o comunismo. Essa é propriamente a totalização que oferecem os Grundrisse, mas as duas esquematizações, mesmo se de estilo teórico diferente, podem coexistir.
No conjunto dessa “mise en forme” da história, de que, aliás, se tem um eco, modificado, em Adorno, o que há de mais fecundo é, sem dúvida, a ideia da descontinuidade das formas e da emergência quase-contingente na base dos pressupostos, combinada com a da determinação do processo de “degenerescência”. Dentro de certos limites, o quadro poderia ser preenchido por formas sociais muito diferentes daquelas que Marx conheceu. Sem dúvida, seria preciso mudar algumas coisas. Por exemplo, é insustentável supor como categoria mais abrangente (mesmo se também ela, e inclusive em Marx, não é, a rigor, fundante, embora seja “primeira”) a noção de “modo de produção”. Trata-se, na realidade (para além de Marx), mais precisamente de algo assim como de “modos de produção e de poder”, expressão (e objeto) em que aparece uma determinação socioeconômica e uma determinação política (duas determinações, não necessariamente harmônicas, de direito). Mas a teorização das formas com seu processo contingente de nascimento e determinado de “corrupção” tem certa pertinência e fecundidade. Envelheceu mais o registro pressuposto, principalmente um deles. É difícil, falar, hoje, em “nascimento (ou gênese) do homem”. Tentando resumir, deve-se dizer que ela se funda numa noção  de homem que é muito otimista, até mais ou menos idílica; em todo caso, “pré-freudiana”. Quanto à tripartição, ela tem certa validade, para os seus dois primeiros momentos. Sobre o terceiro, não se sabe nada, ou, antes, tal como Marx o formulou, não é, certamente, o caso.


Mas a experiência do ciclo do totalitarismo igualitarista, também a do nazismo, mais a emergência da história “antropológico-ecológica”, abre um campo para outros esquemas quase-totalizantes. Poder-se-ia pensar, por exemplo, em um movimento global na direção não do nascimento do homem, mas da sua destruição (ver Adorno a este respeito). Também seria possível supor um quadro puramente descontínuo, em que não houvesse eixo de continuidade, o pressuposto como que coincidindo com o posto, ou, preferindo, um quadro sem pressuposto. No limite, é a isso que conduziria a ideia pura e simples de uma “história cíclica”. A história seria a sucessão dos modos, sem nenhuma outra linha, ascendente ou descendente, de caráter englobante.


É a esta última direção que aponta em primeira instância a reflexão sobre o ciclo do totalitarismo. Mas há a alternativa, menos pessimista (ainda que menos otimista do que a marxiana) de introduzir um esquematismo totalizante diferente, e mais complexo do que o de Marx. Nele se combinariam linhas de progresso com linhas de regressão (ou de destruição). As primeiras seriam as sequências parcialmente vitoriosas de progresso, que a “história” surpreendentemente oferece (o feminismo, os avanços na liberação sexual...). As regressões são as marcas da “ordem de inércia”, frutos da reprodução “infinita” dos modos, cada qual com seu potencial específico de exploração e de dominação. - Estas são apenas algumas indicações sobre como as reflexões a que nos convida a experiência contemporânea se revelam até certo ponto compatíveis com certos quadros formais não exatamente do “marxismo”, mas de Marx, e, mais precisamente, do que se deveria chamar de melhor Marx. 7

7. Retomando o “ponto de chegada”: China e Rússia. Perspectivas.

- Voltando ao nosso problema e, com ele, a uma certa empiria. O nosso ponto de chegada - ver o final da primeira parte desse texto, em Fevereiro, nº 7 - fora o fenômeno da passagem, tanto no caso chinês como no caso russo, de uma sociedade burocrática-totalitária para uma sociedade capitalista-autoritária (ou capitalista burocrático-autoritária), se a caracterização é suficiente. Além da necessidade de aprofundar um pouco a análise do significado desse terminus relativo, é preciso discutir quais seriam as perspectivas, incluindo, é claro, a questão fundamental das relações entre esses dois poderes, cuja história se discutiu, e o capitalismo ocidental.
Um ponto essencial é o de saber se haveria uma evolução dessas sociedades na direção da democracia. Para o caso da China, a discussão continua aberta, mas se crê cada vez menos que a China se tornará democrática a curto, ou mesmo a médio prazo. Sua história recente poderia, entretanto, sugerir um movimento dessa ordem. A passagem, que se operou, do totalitarismo a uma espécie de autoritarismo burocrático, representaria, como creem alguns, o primeiro movimento de um processo que, se completando, levaria do autoritarismo à democracia. Claro que não se pode excluir que isso aconteça, por um impulso “de baixo”, ou sem ele. Mas a caracterização que vai se impondo - tanto no real, como na cabeça dos que tentam decifrá-lo - é a de um movimento assintótico. A China se aproxima da democracia, no sentido de que o autoritarismo burocrático está certamente mais próximo da democracia do que o totalitarismo, mas isso não significa que ela “completará” o movimento. A China parece, pelo contrário, se cristalizar em sociedade capitalista antidemocrática ou “iliberal”. Na Rússia, há - ou houve, há até bem pouco tempo - uma espécie de democracia “formal”: existem partidos e alguma possibilidade de expressão. Mas esse espaço de liberdade é cada vez mais restrito, de forma que o regime, também de capitalismo burocrático-autoritário, embora de uma modalidade um pouco diferente da variante chinesa, como que se afasta, progressivamente, da democracia ou do que resta dela.8
Como se relacionam, diante do capitalismo “ocidental”, essas duas sociedades, que remetem, grosso modo, a uma mesma forma social? É curioso observar que, pelo menos para o caso russo, mas um pouco também para o caso chinês, o capitalismo ocidental supôs ter encontrado um aliado. E há de fato uma interrelação econômica estreita entre eles (digo, entre os ocidentais e cada um deles). Mas, politicamente, é a figura de uma relação tensa a que vai se impondo. Foi em parte com vistas a uma aliança que o FMI e o governo americano jogaram com tanta força a carta da chamada “terapia de choque” (liberalização dos preços, privatizações...). O outro elemento dessa política era, sem dúvida, a fidelidade ideológica, mais ou menos cega, a um certo modelo econômico. Mas o FMI e, principalmente, o governo americano se empenharam acima de tudo para que a economia russa operasse uma ruptura bem nítida com o “comunismo”. E, para efetuar essa ruptura, o que seria mais apropriado do que pôr em prática uma reforma de tipo claramente neoliberal? Havia aí o projeto da construção de uma economia capitalista fundada no grande capital (falou-se, por exemplo, na necessidade de ter uma estrutura sólida de acionistas, isto é, de afastar todo programa de um capitalismo com alguns rasgos de democracia econômica). Pois o resultado, que foi muito ruim para a democracia (em primeiro lugar, em sentido econômico: as classes médias começaram perdendo os seus meios de vida), acabou sendo ruim também para o poder americano. A nova classe capitalista dos oligarcas, e também de Putin, que os “exprime” de algum modo - apesar de que, como sempre, ele joga o próprio jogo e, de vez em quando, entra em choque com algum oligarca - estão longe de serem aliados dos americanos e menos ainda dos europeus, apesar dos laços econômicos que estabeleceram com cada um dos dois. Deve-se relevar também, nesse contexto, um fenômeno bastante sinistro, o encontro da extrema-esquerda pós-totalitária, se ainda podemos dizer assim, com a extrema-direita pós-totalitária (nos dois casos o “pós” é relativo). Trata-se da chamada união vermelho-marrom, da que Putin é um grande expoente.
Se os dois capitalismos, russo e chinês, remetem a um mesmo modelo, oposto ao norte-americano, poderíamos dizer que, hoje, tende a se cristalizar um novo bloco “do leste”, politicamente oposto a americanos e europeus? Se de fato for este o caso, à frente desse bloco estaria a China, a grande potência capitalista-autoritária emergente.
Há de fato indícios de uma espécie de reconstituição do antigo bloco totalitário, o que significaria uma ressurreição (relativa, pelo menos) da Guerra Fria (ver a crise ucraniana). Teríamos, assim, de um lado, Estados Unidos e Europa, mundo democrático, principalmente, mas de democracia poluída pelo capitalismo, e que tende a se transformar em oligarquia. De outro, um novo bloco antiocidental. Se isso acontecer, uma esquerda reconstruída teria de enfrentar um problema parecido com o do período anterior. O de se situar com lucidez diante de dois blocos agressivos. Como nos tempos da Guerra Fria, mas de uma forma modificada, as forças pró-emancipação - penso nas da Europa, mas, também, e principalmente, nas do terceiro mundo, hoje, em parte, “mundo emergente” - têm de continuar a crítica do hegemonismo americano - porque este não desapareceu, embora tenha se enfraquecido -, mas, de novo, sem supor com isto que “o outro lado” representa o grande vetor da emancipação. Pelo contrário, se o peso do hegemonismo americano é o que se continua sentindo mais de perto, o seu antagonista revela traços cada vez mais sinistros. Se, à luz de tudo o que foi a sua política no passado, é preciso muita cautela ao lidar com o lado ocidental - pense-se no papel terrível da CIA, que não ficava aquém do seu homólogo do lado de lá -, e apesar do que se continua assistindo hoje (ver o apoio que oferecem os EUA a um país como a Arábia Saudita), creio que, globalmente, subsiste uma diferença entre um poder que reivindica os direitos do homem, embora os transgrida, e um outro que simplesmente não os reconhece - assim como subsiste uma diferença entre uma democracia muito afetada pelo capitalismo, e que tende a se diluir em oligarquia (nas condições do predomínio do capital financeiro), e um governo burocrático-autoritário (capitalista e burocrático-autoritário). Principalmente se considerarmos que o lado ocidental ou liberal não é apenas o dos EUA mas também o da Europa. Se a Europa está ameaçada pela nova direita, ela (ainda?) não naufragou, e em momentos decisivos, quando os EUA, sob o peso de presidentes republicanos arquirreacionários tomou o rumo de uma extrema direita com delírios fascistizante, parte da Europa, pelo menos, resistiu (cf. a Guerra do Iraque). É preciso não perder de vista essa diferença, o que significa de novo recusar o princípio do terceiro excluído: o inimigo do inimigo não só não é nosso amigo mas pode ser pior, e de fato é pior, do que o nosso inimigo. Um corolário do argumento, em termos práticos, é que devemos apoiar sem hesitação toda iniciativa dissidente, com exclusão das da extrema-direita, no interior do campo autoritário, em qualquer continente (por exemplo, apoiar os dissidentes cubanos, mesmo quando não são propriamente homens ou mulheres “de esquerda” - em geral eles são de centro esquerda - excluindo, é claro, todo apoio a oposições de extrema-direita).
Em um livro interessante, e à sua maneira importante,9 Stefan Halper desenvolve a tese do choque entre os dois modelos, o do capitalismo liberal e o do capitalismo “iliberal”.10 Halper, que é um autor próximo dos republicanos (de Kissinger, principalmente), mas que é também aberto ao pensamento dos keynesianos (Stigliz e cia), insiste na ideia de uma competição em que os americanos são, de certo modo, a parte mais fraca. Mais fraca não só por causa dos muitos erros de natureza política ou econômica, que eles cometeram (o projeto do FMI para a Rússia, as invasões em nome da democracia etc), erros que Halper reconhece, mas também por outras circunstâncias, algumas das quais, também se julgadas de um ponto de vista diferente do de Halper, se verdadeiras, aparecem como positivas (mesmo se limitadas e contraditórias com outras práticas): por exemplo, o fato de que os EUA (mas também, e talvez, principalmente os europeus) impõem restrições aos empréstimos por razões de respeito aos direitos do homem, e de honestidade administrativa, fatores que são indiferentes aos olhos dos chineses. Estes financiam déspotas corruptos, investem em países em que se violam abertamente os direitos do homem, e assim por diante. Halper não crê que haja ameaça militar por parte dos chineses (os americanos continuam muito à frente em matéria de aparelhos militares), nem mesmo no plano estritamente econômico (a penetração econômica da China tem sempre mais de um lado); o perigo estaria, digamos, no plano da hegemonia. Os chineses vão encarnando, como modelo de sociedade, o ideal do capitalismo autoritário. Este se apresenta cada vez mais como um modelo alternativo ao do capitalismo liberal-democrático e se opõe a ele em forma progressivamente aberta, num espaço de jogo que vai sendo o do planeta. Creio que a tese de Halper tem um lado verdadeiro, mas ela deve ser reconsiderada, porque há ali um extrato ideológico duvidoso, a discutir.11

 

8. Conclusões. a) O ciclo e os ciclos. b) Pequeno balanço das lutas. c) A percepção (ou não percepção) do fenômeno totalitário e da sua crise na Europa e no Brasil

a) O ciclo e os ciclos. O ciclo do totalitarismo, escrevi no início, se processa no instante mesmo em que emerge o que chamei de “história antropológica”, uma história que envolve as relação dos homens com a natureza, e dos homens com o Homem (essa relação agora é posta e não apenas pressuposta, como era no passado). Digamos que os dois lados, o totalitário (e depois pós-totalitários) e o capitalista liberal-democrático jogaram profundamente a carta aufklärer (iluminista) - ou, mais precisamente, prometeana - da dominação da natureza e do crescimento ilimitado, com os resultados desastrosos que conhecemos. Ao final do ciclo, que começa com a primeira guerra mundial, a primeira guerra com real significação “antropológica”, o horror ecológico está às portas. De um lado, as ameaças ao clima, que já são mais do que ameaças, ocasionadas pelo acúmulo de CO2 na atmosfera; de outro, o perigo agudo que representam as centrais nucleares. Uma nova catástrofe é previsível para os próximos vinte anos. Seria bom não esquecer, o Brasil não está fora da lista dos países de risco. O ciclo do totalitarismo, episódio da história tout court se articula assim com essa sequência da história antropológica. Uma se reflete na outra, e nas duas direções; uma alimenta e impulsiona a outra, para o pior. Se quisermos alinhar os vários ciclos: ao ciclo do totalitarismo (tratava-se, como expliquei, do totalitarismo “igualitarista”) se acrescenta um ciclo do totalitarismo de direita e da extrema-direita em geral. Há também um ciclo da social-democracia. Como à sua maneira o totalitarismo “igualitarista”, o totalitarismo de direita reaparece sob formas atenuadas em relação ao que foi a extrema-direita do século XX, mas ainda assim muito radicais e ameaçadoras. Ele ressurge no autoritarismo de extrema-direita, que vai fazendo pontos na Europa. Quanto à socialdemocracia, que passara por um ciclo, sob alguns aspectos, brilhante e cujo ponto alto fora o socialismo nórdico (indiquei, na primeira parte, também alguns dos principais momentos negativos da história da SD), agora, ela como que se esgota. A história do primeiro governo socialista francês do século XXI, história que ainda está em curso quando escrevo (e quando reescrevo) essas linhas, parece indicar um processo de perda de identidade, que conduz a uma convergência, sem fricções profundas, com o capitalismo. É esse o quadro geral do momento, um quadro não muito estimulante nem animador: sérias ameaças no registro ecológico - talvez a coisa mais importante e assustadora em tudo isso -; uma socialdemocracia que se esgota; a extrema direita que levanta de novo a cabeça, e não só na Rússia - ver o caso da Hungria - nem apenas nos países que fizeram parte do “ex” bloco “soviético”, que se veja o que acontece na França e até nos países nórdicos. Um imbricamento de ciclos, em geral nefasto, dentro da história tout court e para além dela.

b) Pequeno balanço das lutas. Olhando um momento para o passado. Em todo esse processo, o que houve, no mundo, em termos de “resistência”? Como, nesse período, o capitalismo continuou se desenvolvendo, qual o balanço das lutas anticapitalistas? E como elas se relacionaram (se é que se relacionaram) com o combate antitotalitário e antiburocrático?
Digamos que as referências privilegiadas, no interior do mundo “comunista”, em pontos temporalmente extremos do processo, são a revolta de Cronstadt (1921) contra o poder bolchevista, e a grande mobilização da praça de Tiananmen (1989), contra o poder burocrático-totalitário chinês. Dois movimentos que foram afogados em sangue. Eles são símbolos fortes das lutas populares - no primeiro caso, de marinheiros, de origem diversa, no segundo, principalmente de estudantes, mas outras categorias também participaram - contra o poder burocrático e totalitário. Dois movimentos aliás caluniados e falsificados à outrance pelos ideólogos oficiais e seus seguidores. A eles se pode acrescentar as “revoluções de veludo” que levaram os países do leste a se livrar do hegemonismo russo. Precedem esses movimentos a Revolução Húngara (1956) e a Primavera de Praga (1968), que foram esmagadas. A eles se poderia, talvez, acrescentar as chamadas “primaveras árabes”, movimentos que combateram ditaduras laicas (ou tendendo à laicidade), e que, em geral, pelo menos imediatamente, foram neutralizadas pelo rolo compressor islamista ou militar (menos no caso da Tunísia). Todos esses movimentos se caracterizam por serem lutas pela liberdade. Movimentos em prol da democracia. Poder-se-ia observar, entretanto, que, de alguns deles pelo menos, participaram, provavelmente, também forças reacionárias, ou elementos de direita, nacionalistas em geral (o caso da intervenção da mouvance fundamentalista religiosa, nas revoluções árabes, é especial). Essa espécie de contaminação dos movimentos pela liberdade, faz pendant à ambiguidade simétrica que pode ser indicada em muitos dos movimentos propriamente sociais, isto é, cuja bandeira era mais a da igualdade do que a da liberdade, no séculos XX e também no XXI. Se há às vezes inimigos da igualdade que lutam pela liberdade - pelo menos por um certo tempo - houve e há inimigos da liberdade, já sabemos disso, entre os que se batem, ou parecem se bater, pela igualdade. Essa ambiguidade reflete os caminhos complicados que trilhou e trilha a esquerda, em sua história internacional; caminhos difíceis que estão no centro dos problemas que quis discutir aqui. Ontem e hoje, a esquerda enfrenta a questão da congruência entre as lutas pela liberdade e as lutas pela igualdade. Um bom exemplo dessa dificuldade está na perplexidade de participantes da Primavera de Praga que partiram para a França, diante do espetáculo da mobilização estudantil e, depois, operária, de 1968, não entendendo o por quê do movimento, nem em geral do descontentamento que estava em sua base.
O movimento de 1968 - passando à análise das mobilizações e revoluções no Ocidente e no “terceiro mundo” - tentou fazer uma síntese das duas vertentes, incorporando, ainda, outros tipos de objetivos e de reivindicações. Mas a síntese era imperfeita, os estudantes mobilizados se exprimiram, em parte, na linguagem de ideologias inimigas da liberdade, o maoísmo, em primeiro lugar. Porém é claro que, nem por isso, ele deixou de ter importância. E o pós-68 foi muito rico. Ainda que quase ausentes do próprio movimento, 68 estimulou o feminismo e a ecologia. Do feminismo, diz-se às vezes, e com razão, que é quase só nesse registro que houve real progresso, entenda-se, progresso ético e político. Quanto aos movimentos ecológicos eles se desenvolveram muito, mas talvez não tanto quanto deveriam ter se desenvolvido, levando-se em conta a situação de urgência em que estamos vivendo. Mesmo se ela se imbrica com outras questões, e com as lutas anticapitalistas em primeiro lugar, a questão ecológica deveria ser posta em evidência, como o que há de mais urgente e de mais grave. Em termos meio simplistas, dir-se-ia que se não se salvaguardar a humanidade, não poderá haver nem liberdade nem igualdade. Se queremos liberdade e igualdade para os humanos, é preciso primeiro que haja humanos. Mas há, na realidade, pelo menos de direito, uma imbricação entre esses vários registros. E é da capacidade de articulá-los que dependerá o sucesso das lutas atuais, pós-totalitárias, pela emancipação.
No que se refere ao Ocidente e ao “terceiro mundo”, há ainda muita coisa a acrescentar. O século XX foi o da independência política dos países coloniais, principalmente da África e da Ásia. Que os movimentos de independência tenham desembocado em situações políticas muito diferentes daquelas com que sonhavam os partidários da independência (participantes ou não da luta), não elimina o fato de que a independência política foi, em si mesma, um progresso. Entretanto, é difícil não ser pessimista, diante do espetáculo dos regimes autoritários, populistas, corruptos, senão totalitários-religiosos, que se impuseram em muitas ex-colônias, embora não em todas (há exemplos positivos ou semipositivos). Só o futuro dirá quando e por que caminhos, os povos submetidos a esses regimes encontrarão uma saída. No plano das questões “de sociedade”, além dos movimentos feminista e ecológico já mencionados, é preciso acrescentar as mobilizações antirracistas que, apesar de tudo, obtiveram grandes vitórias na América e na África. Quanto às lutas sociais de tipo mais tradicional, elas continuaram o seu curso na primeira metade do século XX, levando ao poder governos de esquerda, frequentemente em frente única, mas depois do interregno sinistro do nazi-fascismo, foram esmorecendo progressivamente, em função da atomização geográfica do proletariado, e de sua redução relativa, além de outros fatores, de ordem política. A crise do “comunismo”, que, a longo prazo, é, a meu ver, um fato positivo (porque liberta o movimento emancipador de uma ideologia mistificadora e de um aparelho de poder nacional e internacional autoritário e regressivo), teve, a curto prazo, e um pouco paradoxalmente, um impacto negativo. O sindicalismo, já em dificuldade, por razões estruturais, recebeu, com isso, por razões entretanto explicáveis, um novo golpe. A reestruturação das bases da esquerda europeia, nas condições do capitalismo contemporâneo, está ainda para ser feita. Dada a mudança das condições, o modelo tem de ser bem diferente da forma clássica.

c. A percepção (e a não percepção) do processo, na Europa e no Brasil. Supondo que a descrição tenha sido objetiva, e a direção crítica proposta justificável, pergunto, para terminar: como a esquerda atual reagiu e reage diante do ciclo do totalitarismo? Em que medida ela foi ou é consciente do que aconteceu, e agiu e age em consequência disso? São perguntas que devem ser feitas tanto para a esquerda europeia, como para a esquerda de um país emergente como o Brasil.
I. Na Europa, avançou-se muito, certamente, na compreensão do significado do totalitarismo e do pós-totalitarismo. A esquerda europeia tem poucas ilusões, seja com o passado stalinista ou maoísta, seja com os remanescentes do “campo socialista”, do tipo da Cuba dos irmãos Castro. Por exemplo, ela não hesita em apoiar e saudar os dissidentes não extremistas. Mas subsistem problemas, principalmente nos dois extremos: no campo propriamente teórico, e no campo da prática política. A esquerda europeia, como a esquerda mundial, enfrenta uma formidável ofensiva da direita e da extrema direita, que consegue mobilizar milhares de pessoas em defesa de causas retrógradas do tipo da interdição do aborto ou da recusa, mais ou menos confessa, de uma educação laica. Diante dessa ofensiva, a esquerda europeia está em dificuldade, no plano prático-político, pela ausência de forças capazes de dar uma saída à crise atual. A social-democracia francesa, já disse, se revela, mais do que nunca, solúvel no capitalismo. O governo socialista francês não só abandonou praticamente todos os seus projetos e promessas no plano da ecologia, mas não faz outra coisa senão negociar vantagens oferecidas aos empresários, em troca da promessa de mais empregos. Se não é um partido dos patrões, é um partido com-vistas-aos-patrões. Não muito mais do que isso. Não se pode contar também com os verdes, que vão a reboque dos socialistas. Quanto à extrema esquerda, ou se dissolveu, ou continua encantada com algum adversário dos americanos, ontem Chávez, hoje o sucessor de Chávez, ontem e hoje os chineses e os irmãos Castro, e parece que até Putin... Nessas condições, não há nenhuma possibilidade de enfrentar com êxito o rolo compressor da extrema direita.12 No plano da literatura teórica - da qual não me ocupo propriamente aqui -, a mesma confusão. Na falta de algo melhor (?), os jornais de esquerda independente não hesitam em acolher com maior ou menor entusiasmo os teóricos nostálgicos do maoísmo, ou outros ideólogos radicais neototalitários. Na Europa, é de se salientar dois pontos: a formidável ofensiva do capital sobre a mídia (mais algum tempo e não haverá, talvez, na França, nenhum jornal ideologicamente independente, a não ser dois hebdomadários satíricos). Por outro lado, importa ressaltar o grande problema da esquerda, que não é apenas francês (e sobre o qual passo também rapidamente): a União Europeia. Para dizer em duas palavras, há aí uma espécie de antinomia. O projeto europeu deveria ser bem acolhido pela esquerda. Ele pacifica as relações entre os países, pode constituir um terceiro poder, sem dúvida, por ora, capitalista, mas capitalista de um modo diferente, não só do modelo chinês, como do próprio modelo americano, além de outros resultados, no plano da cultura, por exemplo. Mas ao mesmo tempo, embutido na Europa, vem uma filosofia econômica neoliberal, e mais do que uma filosofia, um poder que impõe as suas regras por sobre as exigências de um Estado com garantias sociais. A Europa, promessa de uma economia, de mercado embora, mas não à americana nem à chinesa, corre o risco de se transformar em cavalo de Troia do poder neoliberal “bruxellois”. Mas é preciso distinguir a Europa do atual “governo” europeu (assim como, mutatis mutandis, se distingue um país das forças que o governam atualmente).
II. Mais complicado, e, por isso mesmo, mais importante, é o diagnóstico da situação do que poderíamos chamar de “esquerdas” nos países emergentes. Claro que vou me referir particularmente ao caso do Brasil.13 Se podemos dizer que, na Europa, a esquerda tomou consciência, em ampla medida, do significado do totalitarismo e do pós-totalitarismo, não seria possível afirmar que isso acontece no mundo dos emergentes, em particular no nosso. As esquerdas continuam “evoluindo” - isto é, planando -, no interior de um universo de confusão política, que se poderia chamar de “arcaico”. Se aceitarmos os elementos que indiquei como exigências de uma política de esquerda consciente e eficaz - repensar a democracia e sua relação com o capitalismo, reconsiderar o problema da violência, aceitar uma teoria da história não comprometida com as ilusões do progressismo político, o que significa fazer a crítica do leninismo, do trotskismo, e, em grande parte, também do marxismo -, se aceitarmos isso tudo como condição, a esquerda brasileira está muito longe de ter alcançado uma atitude lúcida. Se examinarmos os partidos de esquerda hoje dominantes no cenário brasileiro, creio que lá encontraremos, entre militantes e simpatizantes, três tipos de indivíduos: socialistas democratas, que querem um evolução no sentido de uma radicalização não autoritária; ativistas, que, pelo contrário, continuam acreditando mais ou menos firmemente senão no totalitarismo pelo menos nos pós-totalitarismo autoritário (em particular, que comungam com um poder do tipo do dos irmãos Castro); e, finalmente, oportunistas e carreiristas de toda a sorte. É a segunda categoria a que mais nos interessa, aqui, mas as observações podem servir de uma forma mais geral. A primeira coisa a ressaltar é a ignorância, por parte dessa massa de membros ou simpatizantes de partidos, da melhor literatura política, aquela que é indispensável para quem quiser entender a nossa época, incluindo os cem anos que nos precederam. Por literatura, entendo: livros e publicações periódicas. É impressionante como grande parte da literatura crítica internacional de esquerda, como da literatura que não é propriamente de esquerda mas que é indispensável para entender o nosso mundo, fica fora do alcance do público intelectual brasileiro de esquerda. Em parte, esses livros, jornais e revistas - para exemplificar, tome-se uma porção qualquer da bibliografia que fui indicando no decorrer das duas partes desse texto - não chegam ao Brasil. E quando chegam, mais precisamente, quando estão traduzidos para o português, têm duas características: quem os publica não são geralmente as editoras que editam os livros considerados como “de esquerda” (e, às vezes, até frequentemente, é propriamente a direita que se encarrega da publicação deles); e, em segundo lugar, quando chegam ao país, o público de esquerda não os lê. Não se diga que o fato de que a direita os publica prova de que são mesmo, para o contexto brasileiro ou não, livros “de direita”. Na realidade, eles aparentam ser literatura contra a esquerda, simplesmente porque a esquerda não os adota. Ela os joga nas mãos da direita, por assim dizer. O processo é na realidade mais complicado, mas em essência é esse. Provavelmente, são os próprios editores simpáticos à esquerda, que, conhecendo os preconceitos dominantes na esquerda, evitam publicá-los. E assim se constitui um círculo vicioso. Esse círculo vicioso é paradigmático e não vale só para a questão das publicações. O resultado - ou isto é a causa? - é uma esquerda que não deu quase nenhum passo no sentido de repensar a fundo a questão da democracia, que continua mistificando o papel da violência, que não abandona suas ilusões com os governos “socialistas” ou “anti-imperialistas”. Um bom exemplo é a maneira pela qual são acolhidos, no Brasil, os dissidentes cubanos (dissidentes estranhos à extrema direita). Grupos de neoleninistas ou neo-stalinistas violentos simplesmente os impedem de se pronunciar, como aconteceu recentemente com uma jornalista cubana. O argumento é de que os dissidentes estariam a serviço “da direita”, e a prova estaria no fato de que eles foram vistos em companhia de tais ou tais deputados ultrarreacionários e se deixaram fotografar com eles. Ora, temos aqui de novo uma variante do círculo vicioso. Sem dúvida, a direita acolhe e mesmo promove a visita de dissidentes. Isso não teria nenhum efeito negativo se a esquerda os reconhecesse como dissidentes, como faz a esquerda europeia. Na Europa, a direita também tenta recuperá-los ou instrumentalizá-los, mas, na medida em que a esquerda não cai na armadilha, isto é, não os estigmatiza como direitistas, antissocialistas, o que for, qualquer tentativa da recuperação da direita não tem maior eficácia.14
No que se refere à violência, há o mesmo tipo de incompreensão. A mitologia da violência continua vigendo. Depois das grandes manifestações de junho, um militante de um dos movimentos que estiveram na ponta dessas manifestações deu algumas entrevistas, nas quais ficava claro: 1) que ele não é violento, nem propõe a violência como método; mas 2) que ele admira a violência praticada por manifestantes de outras tendências (ou de uma outra tendência). Mais ainda: que ele quase se extasia diante dela, chegando até a defender a teoria, muito provavelmente errada, de que uma grande parte da população a aceita. Há assim uma espécie de masoquismo ideológico por parte dos não-violentos diante dos violentos. Ora, como a experiência parece ter mostrado - de minha parte, escrevi dois textos a respeito, antes que os fatos começassem a confirmar, acho eu, a perspectiva crítica -, o emprego de métodos violentos nas manifestações foi um verdadeiro desastre. Eles foram mal recebidos pela população, facilitaram a infiltração da polícia, e levaram a uma quase desmoralização e enfraquecimento do movimento. Claro que em certas circunstâncias - por exemplo, na Ucrânia, país que era dirigido por um semiditador arquicorrupto - elas podem ser legítimas e levar a resultados. Mas não parece ser esse o caso no Brasil de hoje. Seria preciso trabalhar o tema da violência, desconstruindo uma mitologia, que não é apenas marxista mas também anarquista (mais precisamente, própria a uma das variantes do anarquismo, pois há várias). A propósito, o anarquismo aparece em certos meios como o substituto pseudoideal de um marxismo que não corresponderia mais às necessidades do presente. Ilusão. Se o marxismo envelheceu bastante e o anarquismo acertou em alguns pontos (ver a primeira parte deste texto), em outros, e em primeiro lugar, no que se refere à violência, ele é bem mais desastroso do que o marxismo. Nesse ponto, poder-se-ia acrescentar, aliás, também o que sucedeu e sucede em certas mobilizações dentro dos campus universitários. Neoanarquistas depredam instalações da administração, cortam fios, e fazem outras violências do mesmo tipo. Só um ingênuo pode acreditar que esse tipo de coisa poderia levar a algum tipo de progresso no plano das lutas universitárias, e sociais em geral. O resultado que se obtém em todos esses casos é: 1) o reforço da direita e da extrema-direita, que usa e abusa desses erros para justificar as suas próprias violências; 2) a ameaça para as instituições universitárias, as quais, se um dia caírem na mão dos radicais (temos alguns exemplos setoriais e no exterior) correm o risco de serem destruídas. O que seria terrível, tanto para o país como para a esquerda. O problema político no Brasil se apresenta muito da seguinte maneira (trata-se, de novo, de uma antinomia ou de um impasse). Sentimos a necessidade - principalmente depois de junho - de uma radicalização, mas o problema é que, nas condições atuais, corre-se o risco de que esta se faça em proveito dos grupos radicais, dentro ou fora dos partidos de esquerda dominante. Empreguei duas vezes o termo “radical”, e não foi por acaso: há uma boa radicalização (redistribuir as verbas em proveito da educação e da saúde, rever o injusto sistema do imposto de renda brasileiro, tomar medidas para aperfeiçoar o sistema democrático etc), e uma má radicalização (violência, intolerância, pressão e entrismo dos grupos neoleninistas etc etc). É preciso lutar para que uma coisa não implique a outra. O que nem sempre é fácil. Mas a boa solução não será a de abandonar todo projeto de esquerda, considerado como utópico, em proveito da construção de partidos abertos a forças conservadoras. De lá, não poderá vir uma real transformação.
Falei mais dos militantes do que dos intelectuais, mas, este capítulo, sobre o qual já dei algumas indicações, mereceria um desenvolvimento maior, que não cabe nessas conclusões. Só vou retomar, por um momento, o fio das considerações sobre o desconhecimento, por parte da intelectualidade brasileira, de quase toda literatura crítica (ou histórico-crítica) sobre a política dos últimos cem anos. Tudo se passa como se os universitários (os professores universitários) pusessem toda a sua energia, e, o que é o mais importante, as suas exigências de rigor, na composição de suas teses e livros de tipo universitário. Quando se passa para a política, a regra é a “doxa selvagem”. Fala-se como se, ao passar ao discurso político, tudo se alterasse. Ora, se há, certamente diferenças - o coeficiente de subjetividade aumenta, certamente -, as exigências são, no fundo, as mesmas: é preciso conhecer, em primeiro lugar, os fatos. Depois discutir séria e longamente os argumentos. Entretanto, pessoas que revelam um rigor extraordinário em seus trabalhos universitários dizem mais ou menos qualquer coisa quando se trata de falar de política (não estou perdendo de vista o coeficiente de subjetividade, nem as diferenças de opinião; falo da fundação das posições políticas, qualquer que seja o seu conteúdo). A acrescentar o peso negativo do tipo de sociabilidade que vai dominando certos meios da intelectualidade, a que pratica o culto dos “gurus” e o discurso de convertidos (aqui não se trata apenas de marxismo, a coisa é mais geral); sociabilidade que é incompatível com o desenvolvimento de uma consciência e de um trabalho realmente críticos. O resultado é estranho: um misto de provincianismo, de dogmatismo e de má informação. Ouvi ou li muitas coisas estranhas no Brasil, vindo de gente, no mais, respeitável: o entusiasmo pela China, que iria, segundo alguns, na direção da democracia; sobre a China ainda, a tese de que não se trata de um poder expansionista, deixo de lado o elogio da Coreia do Norte (!) a que já me referi algumas vezes, pois se trata de um caso extremo; uma visão da Europa marcada pela vulgata leninista da Terceira Internacional, e que parece tratar da Europa do início dos anos 1920, não da Europa de hoje; a ignorância a respeito da literatura sobre o leste,15 a confusão entre as formas de dominação e exploração totalitárias, e as demais formas de dominação e exploração.16 Deixo de lado a confusão reinante no plano propriamente teórico. Quanto às perspectivas práticas, é preciso insistir em que, ao contrário do que poderiam sugerir as aparências, não há nada mais esterilizante e mais conservador do que um certo radicalismo abstrato como aquele que professam alguns bons espíritos; radicalismo às vezes “temperado” por um pessimismo profundo.


Mais do que nunca, é preciso defender o projeto  de uma esquerda crítica e independente.17 Só ela será capaz de enfrentar, no plano ideológico, e a longo prazo, também no plano prático, a ofensiva da direita e da extrema direita. Sem dúvida, as coisas estão longe de ser simples. A esquerda oficial trata de desmoralizar, o quanto pode, todo discurso de esquerda crítico, e aqueles que praticam esse discurso. Mas esse foi sempre o destino de toda esquerda dissidente, desde o tempo em que os stalinistas denunciavam os trotskistas como “agentes do imperialismo... alemão”.18 É preciso enfrentar as ortodoxias dominantes. Afinal, no Brasil, elas são mais fracas do que as ortodoxias no poder, como a de Cuba, cuja capacidade de nuisance, diga-se de passagem, é às vezes curiosamente subestimada, para desqualificar os dissidentes. E isto por parte de gente, precisamente, incapaz de enfrentar as ortodoxias “sem poder” e por isso mesmo muito mais fracas, como as que temos, por ora, ao menos, no Brasil. Mesmo que a palavra de uma esquerda crítica e dissidente não possa ter, por enquanto, uma base maior do que a de pequenos grupos, ela é, a longo prazo, muito importante, e, desde já, essencial. Não nos iludamos. Se as ortodoxias marxistas oficiais - refiro-me aqui não às direções dos partidos de esquerda e extrema esquerda brasileiros, mas aos setores mais dogmáticos de certa intelectualidade “marxista”, que eles estejam dentro ou fora dos partidos - chegassem ao poder (o que, por ora, pelo menos, é, sem dúvida, muito improvável), não teríamos socialismo algum, mas governos burocráticos autoritários, com toda a sua carga de opressão, violência e primarismo. Objetar-se-á dizendo que, com essas críticas, corre-se o risco de levar água para o moinho da direita e dos opressores e exploradores em geral. Pelo contrário. E por três razões pelo menos. Primeiro. Diante do que constitui uma verdadeira ofensiva da direita e da extrema direita, a esquerda tem de ter ideias muito claras sobre o significado da história dos últimos cem anos, sem o que ela não poderá ter hegemonia intelectual. O “grande público”, intelectual principalmente, não vai aceitar mais o blablabla tradicional, falso em termos fáticos, e opressivo em termos políticos, em torno de “revolução chinesa”, ou da Cuba dos Castro. Em segundo lugar, não se pode perder de vista que o projeto político de uma certa extrema esquerda  hoje, como já acontecia, mas de outro modo, no passado, não vai  na direção de algum tipo de emancipação. O que ela tem como perspectiva, não nos iludamos, é um governo de tipo populista-autoritário - um puro totalitarismo é hoje problemático, mas não é preciso chegar aí, para instaurar um pequeno inferno político -, um governo que não representaria progresso, mas regressão. Imaginemos - simples hipótese muito improvável, mas vale o exercício - um governo composto por algumas das figuras conhecidas, mais fanáticas, de uma certa extrema esquerda universitária, por exemplo. Sem dúvida, é provável que eles viessem a dar alguns passos em favor de parte do proletariado e dos camponeses (parte que eles incorporariam direta ou indiretamente à burocracia de Estado), mas as vantagens concedidas - a experiência histórica o mostra - não seriam duradouras. Elas se perderiam em alguns anos. Em compensação, eles acabariam com as liberdades no país, instaurariam um clima irrespirável, imporiam uma ideologia retrógrada e mentirosa, deformariam a educação universitária etc etc. E se a sorte daqueles que teriam sido eventualmente beneficiados logo mostraria a sua verdadeira figura, o destino do resto da população, classes médias principalmente, seria desde logo o pior. A acrescentar que não se deve descartar a possibilidade de que parte dos ideólogos de certa extrema esquerda venham a abraçar a ideologia do “socialismo (sic) chinês”. Este é o rumo que está tomando a política dos seus amigos cubanos, sem que se possa dizer, por ora, até onde ela terá sucesso. E em termos - digamos - históricos, é essa a possibilidade concreta que se lhes oferece. O neomaoismo e o neoleninismo, em forma mais ou menos pura, têm muito poucas possibilidades de sucesso. Como já disse, claro que se trata de hipóteses. Mas a experiência mostrou que para uma parte da extrema esquerda (e não só a que controla um Estado), o inimigo é muito mais a democracia do que o capitalismo. Do leninismo e do stalinismo eles herdam, assim, não tanto a crítica ao capitalismo, quanto o horror à democracia, e o autoritarismo. (Quanto aos chineses, eles acabaram celebrando as bodas festivas de reconciliação com o ex-inimigo, o capitalismo. “Ser rico é glorioso”, dizem, desde há já bastante tempo, os “comunistas” chineses). A última razão pela qual, ao fazer as considerações críticas que faço, não levo água para nenhum moinho da direita, é que há um movimento - uma “transferência de populações” - já antigo, que leva uma parte da extrema esquerda até a extrema direita. Sabe-se, de fato, que uma porção considerável dos adeptos do neoconservadorismo vem da extrema-esquerda. Os elementos mais violentos e niilistas da extrema esquerda evoluem - ou involuem - com certa frequência, para a extrema direita. Há exemplos disso também no Brasil. Criticar certos dogmatismos e certas práticas de violência pseudoprogressista é, assim, interromper o processo de germinação dos futuros neoconservadores de daqui a uma ou duas décadas. No centro da minha argumentação está uma tese que vai a contrapelo do marxismo. A tradição marxista nos ensina que o essencial é o que se passa na base social. O que ocorre nas direções, importa - às vezes se diz mesmo que importa muito -, mas permanece sendo, de certo modo, adjetivo. Porém, a experiência do século XX, que tentei analisar, nos mostra que há alguma coisa que não funciona nessa perspectiva. O marxismo é eminentemente sociologista. Ele superestima o social, em detrimento do político. Entenda-se: por “político” penso, aqui, não só, e não em primeiro lugar, o poder de Estado, mas o poder das direções em geral, em particular o dos partidos. A experiência histórica do totalitarismo no século XX mostra que as direções marcam, muito mais do que supunha a tradição, o destino dos movimentos. Elas lhe imprimem o sentido, e, mais que isso, lhes dão como que a essência, embora as manobras das direções não sejam, claro, incondicionadas. Mas isso basta para impor uma mudança essencial na maneira de ver a história, a história do presente, no caso. Frequentemente, ouve-se o argumento de que o que decide é “o processo”. Assim, num manifesto a propósito da crise na mais importante universidade do país, manifesto particularmente infeliz, diga-se de passagem - assinado por muito poucos, mas infelizmente, incluindo gente que, por sua experiência e qualificação, não devia entrar numa galera dessas - lê-se algo assim como (não cito literalmente): “os defeitos (ou ‘as insuficiências’?) serão corrigidos no curso do próprio processo”. Vai aí um típico pronunciamento “sociologista”. Mais precisamente: um pronunciamento “progressista”, no sentido pejorativo do termo (aqui, “progressista” = o que tem “fé” ingênua no progresso). Os signatários do manifesto acham que as violências, o radicalismo vazio, o dogmatismo, o neoanarquismo descabelado, as atitudes de tipo policialesco - não esqueçamos que houve e há um policialismo de esquerda que, aliás, não reprime só a direita, mas principalmente a (outra) esquerda - tudo isso seria “fenomenal”, “secundário”, e viria a ser neutralizado ou liquidado pelo grande movimento subterrâneo. Por outras palavras, as “escórias” seriam devoradas pelo “processo”. Só que o que vimos no século XX foi o contrário: o processo não devorou as escórias, foram as escórias que devoraram o processo. A superestrutura micropolítica engoliu a infraestrutura social. Não foram os camponeses chineses que decidiram aonde desembocaria a revolução chinesa, foram os seus chefes, que não eram camponeses. Os camponeses entraram no que veio a ser o destino da revolução, mas principalmente como carne de canhão. A coisa pode ser dita também de outro jeito, retomando o que escrevi anteriormente. A ilusão está na própria ideia de que o “processo” é em si mesmo de “progresso”. Na ideia ilusória - bem marxista, apesar da complexidade da teoria marxiana - de que vamos na direção do socialismo. É a ilusão do progresso, a qual atinge muito mais gente do que se supõe (atinge, inclusive, como vimos, muitos críticos, marxistas ou não, do “progresso”). Ela está por trás de muitas manifestações ingênuas (?) de quem não deveria ser ingênuo.19 O “processo” não vai na direção do socialismo, nem de um poder progressista. Sem uma intervenção lúcida e descompromissada por parte das forças de emancipação, e que provoque uma ruptura muito mais profunda que supõe a tradição, o “processo” vai, antes, na direção de novas formas de exploração e opressão. Assim, há, de certo modo, duas leituras possíveis da situação presente, nenhuma das quais é, a rigor, marxista: ou devemos pensar que estaríamos diante de um movimento subterrâneo de progresso sim, mas que se revela impotente, dado o peso negativo essencial que têm as direções; ou devemos pensar que vivemos um processo que, em si mesmo, não é progressista; as direções não fazem mais do que sobredeterminar essa força de inércia. Na realidade, a situação é complexa, porque a sobredeterminação negativa pode se manifestar nas próprias bases, constituindo, ela mesma, um elemento das “forças de inércia”. Dir-se-á que os marxistas, os melhores, em todo caso, já sabem de tudo isso. Engano. De fato, eles sabem alguma coisa. mas numa outra escala, isto é, dando aos elementos em jogo um outro peso relativo, ou os articulando de outro modo e, por isso mesmo, o que eles sabem (?) é outra coisa. Sem prolongar essa discussão, importa salientar que nada do que foi dito até aqui implica uma perspectiva pessimista e, menos ainda, niilista, em relação à luta emancipatória. Significa sim que ela é difícil, complexa, “complicada”. Ela pode, porém, ser vitoriosa. Mas a condição necessária dessa vitória é que essa complicação seja assumida e não escamoteada.

 

FIM










fevereiro #

8



ilustração: Rafael MORALEZ


1 Cicero Araujo leu e comentou criticamente uma versão anterior deste texto. Seria pouco dizer que agradeço “sem responsabilidade”. Claro que, sempre “sem responsabilidade”, é necessário precisar que a sua intervenção permitiu não só melhorar muitas coisas, mas bem mais do que isso. Ele relançou uma discussão sobre a adequação possível do discurso sobre a conjunto da história tal como se encontra principalmente nos Grundrisse de Marx, e a história contemporânea. Transcrevi parte dos seus argumentos, mas só pude começar a discuti-los, o desenvolvimento deles levaria muito longe. Porém, o ganho foi evidente. Aceitei, além disso, várias outras das suas sugestões.

2 Sobra a ideia de história cíclica, ver Cicero Romão Resende de Araujo, A forma da Republica: da Constituição mista ao Estado, São Paulo, Martins Fontes, 2014, cap. 3, p. 187 a 201.

3 Evidentemente, o tema merece um desenvolvimento muito maior, que virá em outro lugar. Não se trata de subestimar os méritos de Benjamin, nem a grandeza das teses Sobre o conceito de história. Mas estou convencido de que, apesar de tudo, não enquanto clássico, mas enquanto clássico para o nosso tempo o que muitos querem que elas representem, as Teses não servem. No momento em que Benjamin as escreve , ele está rompendo, ou, antes, já rompeu, com o poder stalinista (depois de um momento de perplexidade - Benjamin diz “ter perdido o seu latim“, com os processos de Moscou - e com muito esforço, maior do que o que fizeram Adorno e Horkheimer). Mas isso não significa nem que ele tenha chegado a uma análise suficientemente profunda da natureza da URSS, nem - até onde sei e li nos textos - que ele tenha acertado contas com o leninismo. Ora, a crítica do leninismo é essencial a uma crítica do progresso, o leninismo representa bem, senão “por excelência“, o progressismo no plano político (entendido o progressismo, como se deve, em sentido bem mais amplo do que o de Benjamin). Como as Teses ficam aquém desse acerto, a crítica do progresso que elas oferecem é enganosa. A ideia de que nada é mais corruptor do que a crença de que nadamos “no sentido da corrente“ (tese 11) é preciosa, mas desde que se a reformule em termos não benjaminianos. Não é apenas a socialdemocracia que pensou seguir a corrente, para ela, uma corrente contínua. Há também um outro otimismo cósmico, e esse se acomoda com a descontinuidade, e mesmo se alimenta dela. Nesse sentido, Sobre o conceito de história fica aquém da dialética: critica só o entendimento continuísta, não o seu oposto, que lhe é, na realidade, inseparável. Razão pela qual as Teses puderam se transformar na menina dos olhos de todos os neoleninismos e neotrotskismos (semi) aggiornati por uma vertente ecológica.

4 A observar, entretanto. A oposição capitalismo e democracia, e a afinidade capitalismo e autoritarismo, são, digamos, históricas. Capitalismo e democracia imperfeita podem coexistir por muito tempo e, sob certas condições, a introdução do capitalismo é um fator disruptivo para uma estrutura política totalitária ou burocrático-autoritária.

5 Aqui se colocaria o problema da latitude desse esquema, e também o do seu estatuto teórico. Assim, a respeito dessa passagem do meu texto, Cicero Araújo indaga, em forma crítica, se quero dizer com isto que as formações necessariamente morrem, e acrescenta: “seria o caso do capitalismo, por exemplo ?“. Parece-me que se trata do seguinte. A “esquematização” (em sentido quase kantiano) de Marx (a esquematização posta, a pressuposta, logo veremos, já é mais problemática) parece ter uma certa força heurística quando se trata de pensar formações como a que representou a sociedade e o Estado nazistas, e a que representou a sociedade e o Estado ditos “comunistas”. Estas nasceram por um processo que tem muito de contingente. Depois, sem que a contingência desaparecesse, nelas se autoinstaurou um certo tipo de determinação, que, de forma inseparável do “mecanismo” de autoconservação, se configurava, na realidade, como determinação “para-a-morte“. E o capitalismo? Aí é complicado. Em primeiro lugar, como afirmo em seguida, creio que, pelo menos se se trata de visar uma formação e não um sistema global, é preciso introduzir também uma determinação política, dizer, por exemplo, “capitalismo liberal-democrático“, ou “capitalismo autoritário”. Todas as formações morrerão um dia, inclusive as que, no nível socioeconômico são capitalistas? É provável que sim, mas é pensável - mesmo se a previsão é incerta e necessariamente um pouco imprudente - que esse processo de morte se revele diferenciado, conforme se considere o extrato socioeconômico ou o extrato político. Na realidade, os dois extratos são potencialmente “contraditórios” e talvez a existência dessa “contradição” seja precisamente um anúncio claro da “morte” futura (a longo prazo) dessa formação. É também plausível (sempre num plano de hipóteses) que o extrato político, se democrático, tenha melhores condições de sobrevivência do que o socio-econômico (com o que, não se quer afirma que fim do capitalismo, seja o equivalente da morte de toda economia monetária, ou, mais precisamente, do fim da chamada “circulação simples”). Com isso, já vamos longe.

6 Para evitar confusão, e como falo do conjunto desses “esquematismos”, como do “melhor marxismo”, insisto desde já que o seu ponto fraco, pelo menos em sua forma literal, está precisamente nessa variante do discurso pressuposto: a ideia de gênese do homem. O lugar desse elemento não é os Grundrisse, mas os Manuscritos de 44, obra de juventude, porém ele está presente também na introdução a Para a crítica da economia política, e por isso mesmo me permiti incorporá-lo como uma variante do esquema.

7 Advirto o leitor de que esse exercício não teve, nem tem nenhuma motivação religiosa. Que a razão esteja ou não esteja com Marx, isto, em si mesmo, não tem importância, a não ser para os devotos. Cientificamente importante e necessário é, sem dúvida, por ordem nas ideias, o que passa pelo trabalho de saber qual é aparentada com qual, e, eventualmente também o de precisar qual se aproxima do que disse, em algum lugar, esta ou aquela grande figura histórica. Mas que essa figura histórica seja Marx ou algum outro é, em si mesmo, irrelevante.

8 Falei em “revanchismo” a respeito do pré-nazismo e do nazismo, e de “ressentimento“, a propósito da China (ver a primeira parte do texto, em Fevereiro,n º 7). O sentimento dominante na ideologia de Putin e cia, parece ser, mais propriamente, a “nostalgia“ de uma glória passada. Claro que nos três casos há um pouco de tudo isso, mas, aparentemente, existe sempre um impulso ou sentimento dominante. Putin joga com as “humilhações” por que passou a Rússia, mas elas não se comparam com as que sofreu a China. Para ele, houve principalmente o que considera como uma “catástrofe histórica”, a dissolução da União dita Soviética. E esta suposta catástrofe alimenta uma nostalgia do passado, o que não quer dizer que ele se limite a cultivar passivamente esse sentimento, como os acontecimentos na Ucrânia vêm mostrando.

9 The Beijing Consensus, legitimizing authoritarianism in our time, New York, Basic Books, 2012 (2010).

10 “Se o capitalismo permanece hoje como elemento vital (lifeblood) do comércio global, há mais de uma forma de capitalismo. Wall Street, que é visto comumente, hoje, como o lugar (home) do medo e da cupidez, é desafiado por um novo modelo autoritário-de-mercado (market-authoritarian model), propugnado pelos seus promotores através do mundo, em lugares não-liberais (iliberal places) como Beijing, Moscou, Singapura, e Caracas. Antes da queda do muro de Berlim, afirma Lester Thurow, o mundo capitalista se mantinha unido pelo medo do comunismo. No período subsequente (in the intervening period), o capitalismo aprendeu a ficar só; em consequência, em alguns lugares da economia global, a democracia veio a parecer mais como seu adversário [Isto é, surgiram no interior do campo, agora unificado, do capitalismo, certos adversários da democracia, RF]. Os nossos ex-inimigos ideológicos, do século passado, aderiram à moderna sociedade de mercado, mas não com os resultados que esperávamos. Em vez disso, eles o fizeram por modos que se revelam novos, diferentes, e em alguns casos como modos mais bem-sucedidos de jogar o nosso jogo”(Stefan Halper, op. cit., p. 47 e 48, grifo do autor).

11 Halper escreve à página 121 do seu livro: “(...) esses acontecimentos [o desenvolvimento do capitalismo russo e, principalmente, chinês, RF] assinalam assim o fim das expectativas otimistas com relação ao poder de transformação dos mercados no sentido de globalizar os princípios do Iluminismo europeu. O casamento da política livre com a economia livre está sendo substituído por governos que se dispõem a reafirmar (reassert) o controle sobre suas economias, aumentando (enhancing) tanto a sua base autocrática como a sua influência global. No final do século XVIII, lamenta Jeffrey Garten, professor de Yale, o capitalismo substituiu o feudalismo, e no final do século XX, os mercados mais livres ganharam a parada. Mas agora o mundo flerta com uma outra virada maior na filosofia e nas regras do comércio global. Diferentemente das mudanças no passado, essa nova trajetória não representa um progresso”. (Stefan Halper, The Beijing Consensus..., p. 121-122, grifo de RF). Aparentemente, nada a objetar. Mas uma leitura mais atenta de todo o contexto mostra uma série de inexatidões e de dificuldades, no texto de Halper (pelo menos, de um ponto de vista crítico). Porque, por um lado, o que, na realidade, representa um retrocesso no curso chinês não é a intervenção na economia, é o caráter repressivo e fortemente autoritário do modo de governar. Não é porque o poder chinês intervém na economia que ele aparece fazendo tábula rasa dos princípios do Iluminismo. Se se tratasse disto, até pelo contrário. Inversamente, ao analisar o que ocorre no “outro lado“, o do capitalismo ocidental, Halper se refere aos princípios liberais na economia e. nesse mesmo contexto, fala do “estilo ocidental de privatização e de liberalização (deregulation) desencadeado por Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos 1980s” (id., p. 121). Ora, se o atual governo dos EUA e os governos europeus podem, até certo ponto, reivindicar uma fidelidade maior aos princípios do iluminismo, não é por causa de Thatcher e Reagan, mas apesar deles... Não há congruência entre a política de “liberalização” à outrance, e a democracia. A experiência russa e o capitalismo chinês mostram, pelo contrário, que grande capital e autocracia podem se dar muito bem, juntos. Por outras palavras, Halper não pensa - nem pode pensar, apesar do seu livro, curiosamente, ter às vezes uma relação ambígua, surpreendente, com um ponto de vista crítico -, que, no capitalismo ocidental, existe uma contradição, pelo menos tendencial, entre o capitalismo e a democracia. Se preferimos Obama mais os europeus, de um lado, a Putin (e eventualmente os chineses), do outro, não é porque no ocidente o Estado intervém menos na economia. É porque eles reivindicam os princípios da democracia - embora os transgridam em mais de uma ocasião! - coisa que Putin ou o PC chinês não faz. Já disse, é, apesar de tudo, diferente, o respeito, mesmo se, em parte, formal, pelos direitos do homem, da negação brutal desses direitos. Ou, me exprimindo de outro modo, não podemos supor que uma economia “livre” é a que tem mais afinidade com uma política “livre”: a expressão “livre” não funciona do mesmo jeito num caso e no outro, e a convergência verbal é ilusória. Halper desconfia da intervenção do Estado e, ao dar exemplo de companhias que correspondem ao modelo não-ocidental, vem, entre outras, a China National Petroleum Corporation, a Gazprom e Rosneft russas, e... a Petrobrás (ver id., p. 122). Nada de grave, se se tratasse simplesmente de dar exemplos de companhias estatais. Mas, no texto de Halper, trata-se de mais do que isto. A referência a essas companhias se faz no contexto da explicitação do que é o novo capitalismo “iliberal”. Isso mostra, finalmente, que existem - ou que necessitamos de - três modelos, e não de dois. O modelo ocidental, em que o grande capital neutraliza mais ou menos a democracia, sem liquidá-la, o novo modelo claramente antidemocrático em que se celebram as bodas do grande capital e do autoritarismo pós-totalitário; e outro modelo de economia e de sociedade, modelo a construir, sem dúvida, em que, embora exista mercado, haverá real controle do capital (cuja propriedade, no limite, pode passar a cooperativas), e um amplo setor estatal (no interior do qual devem ficar os serviços públicos fundamentais, mais a indústria farmacêutica e, se houver, toda produção bélica); e onde reina um máximo de liberdade social e política (assembleias representativas, eventualmente combinadas com formas de intervenção popular mais diretas).

12 Este texto já tinha sido redigido quando veio a vitória eleitoral de Syriza, na Grécia. Junto com um outro movimento, o Podemos espanhol, ele vai modificando o clima político da Europa. Pela primeira vez, um partido de esquerda no poder contesta a legitimidade da política econômica dos atuais dirigentes da União Europeia. É difícil subestimar a importância do combate de Syriza, diabolizado pela opinião oficial, mobilizada. Mas, quaisquer que sejam os méritos desse partido grego de extrema-esquerda sui generis, ele tem, aparentemente, algumas debilidades, principalmente uma atitude acrítica em relação a Putin. Se isso é verdade, sem perder de vista tudo o que representa Syriza, é preciso apontar, sem medo, tais insuficiências, e não cair na atitude tradicional e funesta de quem assina cheques em branco. Na França, começam a surgir movimentos de esquerda/ extrema esquerda independentes. A ausência de populismo parece caracterizar um deles, o que é auspicioso. Mas trata-se ainda de movimentos em processo de desenvolvimento. É preciso esperar algum tempo para fazer um juízo seguro sobre eles.

13 Este texto já estava escrito quando começaram os grandes escândalos em torno da corrupção, principalmente o caso da Petrobrás. Esses fatos corroboram a necessidade - em se tratando de críticas, de esquerda, à esquerda brasileira - de visar tanto ao PT como à extrema esquerda. Por causa do tema geral, o texto quase só se ocupa da última. Um balanço mais completo exigiria que se pusesse os dois na balança. Mas o que nele está dito parece, entretanto, atual, agora que se fala em reorganização da esquerda brasileira passando por cima das divisões partidárias. As iniciativas nesse sentido são positivas. Entretanto, será preciso proceder a um verdadeiro trabalho crítico, que não pode excluir um esforço num plano mais teórico. Estou convencido de que a crítica do leninismo, longe de ser exercício intelectual, é, no limite, um elemento essencial, para que essa refundação seja mais do que um eterno retorno ao mesmo ponto de partida.

14 No caso da dissidente cubana, a que me refiro, houve coisas tristemente curiosas. Acusaram-na de ter-se deixado fotografar com deputados da direita. Acontece que ela não poderia ter tirado fotos com gente de esquerda, simplesmente porque os deputados de esquerda boicotaram a reunião em que a dissidente foi recebida pela Câmara... Claro que se poderia discutir se ela deveria ou não aceitar o convite de viagem feito por associações de imprensa conservadoras. Mas isso sempre aconteceu com os dissidentes dos países totalitários ou pós-totalitários; e é muito difícil exigir deles que recusem esses convites. O importante é o que eles declaram e, desse ponto de vista, no que pude ouvir, não havia nada de errado ou de inadmissível. A politica do “deixa recuperar“ de certos dissidentes tem, claro, os seus riscos, mas é quase inevitável na situação atual. Esses riscos diminuiriam muito, ou desapareceriam, se a esquerda os acolhesse e apoiasse.

15 Assim, alguém - e não pequeno - dizia há algum tempo (não cito literalmente, mas o sentido era este), que “agora se começa a estudar esses países”. Agora? Com isso, não quero dizer que, na imprensa e na literatura política europeias também não se registrem enormidades. A diferença é que, ao contrário do que ocorre no Brasil, quando é o caso, logo aparece gente lúcida e competente que põe os pingos nos is.

16 Assim, fala-se de “capitalismo” a propósito de tudo. Às vezes, até a propósito dos antigos regimes do leste. Claro que se poderia apelar para a noção de “capitalismo de Estado“. Mas ela teria de ser explicada, e, de qualquer forma, “capitalismo de Estado“ sempre foi considerado, mesmo por parte dos que adotavam o conceito, como uma forma muito especial e muito diferente do capitalismo tout court.

17 Uma esquerda crítica e independente é, para mim, resumindo, uma esquerda que não seja nem leninista, nem socialdemocrata. Aos que pensam que essa exigência é utópica ou irrealista, deve-se dizer que, mesmo se não hegemônica, tal esquerda tem uma longa história, e uma longa tradição que é preciso retomar e atualizar.

18 Já expliquei a ambiguidade da dissidência trotskista. A expressão é quase um oxímoro, se pensarmos na reponsabilidade também de Trotski, como bolchevista, na emergência do stalinismo. Trotski quer sovietes livres: ah!, pois foi ele mesmo que acabou com a liberdade dos sovietes. Que ele pensasse nisso no primeiro semestre de 1918. Porém, apesar de tudo, não é menos verdade que, em certo momento, e com as suas limitações e contradições, o trotskismo representou uma bandeira crítica e dissidente. Não representa mais.

19 Mais precisamente: como sempre, aparecem aí dois tipos de personagens: de um lado, os que se iludem; de outro, os que sabem bem o que querem, aquilo mesmo, um populismo autoritário.