revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

 

Editorial

 


Os últimos acontecimentos do país, que culminaram na abertura de um processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, têm merecido a máxima atenção daqueles que, no Brasil, lutam pelo progresso da democracia e da justiça social.
Além de expressar seu inconformismo com o voto, dado pela Câmara dos Deputados, de admissibilidade do impeachment - que agora segue para o Senado Federal -, mas ciente da extrema fluidez da conjuntura política, a equipe de Fevereiro decidiu posicionar-se fixando algumas balizas e princípios.
A autonomia e a independência do Ministério Público e do Judiciário, assim como da Polícia Federal, manifestados no combate crescente ao uso ilegal e o manuseio laxista dos bens públicos por parte de indivíduos, empresas e partidos, foram um fato auspicioso, que poderia marcar uma nova etapa da vida política brasileira. Entretanto, a partir de certo momento, ficou evidente que as iniciativas das autoridades tomaram formas abusivas (várias conduções coercitivas, inclusive a de Lula, sem que os acusados tivessem se recusado a depor, prisões preventivas com fundamentos arbitrários, publicação ilegal e dolosa de escutas telefônicas do ex-presidente com a própria presidente Dilma Rousseff e outras barbaridades do tipo), ao mesmo tempo em que foram servindo para alimentar uma parcela despudoradamente militante da mídia e insuflar mobilizações de cor política muito conservadora, quando não abertamente reacionária Essa dupla derrapagem permitiu que se chegasse a uma situação em que as chances de declaração do impeachment, sem que um crime de responsabilidade da presidente seja demonstrado, tenham se tornado muito prováveis, o que representa um grave perigo à consolidação da democracia no país.
O movimento pró-impeachment, que conta agora com o apoio direto de partidos, coletivos e várias associações da classe empresarial, cristalizou-se como um movimento que visa a um governo chefiado pelo atual vice-presidente Michel Temer e uma agenda de corte de direitos sociais. Ora, esse é, sob todos os aspectos, um projeto aberrante. Fazer de Temer o herdeiro-guardião da campanha contra a corrupção é dar prova de um total cinismo. Não só muito dificilmente poderíamos encontrar alguém (de esquerda ou de direita) que ousasse sustentar que Michel Temer é mais honesto do que Dilma, mas tudo leva a crer que o vice-presidente está inserido num esquema muito excuso de relações e propósitos, inclusive uma íntima aliança com o atual presidente da Câmara dos Deputados que, réu na mais alta corte do país, cobrará bem caro os serviços que vem prestando à causa oposicionista. Isso só pode prometer o pior para o país, não só em matéria de honestidade administrativa, mas no que se refere ao progresso social e até às liberdades fundamentais. (Fique claro, para evitar ambiguidades, que nos opomos também a outros planos e variantes de impedimento ou de cassação.) Assim sendo, o ponto de vista da Revista só pode ser o de repudiar as intenções e as práticas dos protagonistas desse movimento, e o de tomar posição entre as forças que resistem a ele e tentam ainda garantir a continuidade do mandato da presidente até as eleições de 2018.
Entretanto, uma posição como esta não significa nem significará nenhum tipo de leniência em relação a práticas abusivas na conduta dos órgãos de direção estatais e autarquias, e da vida pública em geral. Mais ainda, acreditamos que o ciclo da esquerda que nos anos recentes esteve à frente dos governos de vários países latino-americanos, com frequência vulnerável a essas práticas, dá claros sinais de esgotamento. O que coloca na ordem do dia uma profunda reorientação. Se é verdade que devemos (para o caso do Brasil) ao PT e ao lulismo um certo número de medidas progressistas no campo social - a Bolsa Família, as facilidades de crédito, o aumento do salário mínimo, certas iniciativas no plano da seguridade social -, não é menos verdade que sua política foi e é, sob outros aspectos, extremamente danosa para a esquerda e para o país.
Essa política esteve, em geral, sustentada na premissa instrumentalista (explícita ou implícita) que justifica o uso de meios ilícitos para a obtenção de certos fins, considerados acima do bem e do mal: no caso, a preservação do poder, lançando mão dos métodos tradicionais de corrupção parlamentar e eleitoral, para promover a justiça social. A experiência mostrou, no entanto, que esse instrumentalismo não só leva às piores consequências, mas tem curto alcance. Tal lógica remonta a uma esquerda que ainda não procedeu à crítica de parte de sua tradição, replicando em outra chave o princípio, mantido em estado puro em certos partidos de extrema-esquerda, no Brasil e no mundo, de que se os fins são de tipo revolucionário, todos os meios, inclusive os violentos e antidemocráticos, são justificáveis. Além do que, ela alimenta a falácia, de evidente má-fé, mas hoje tão em voga no discurso conservador, que associa, de um lado, agenda de progresso social e, de outro, práticas populistas e antidemocráticas. Na verdade, é bem o contrário: as duas coisas são incompatíveis entre si.
Somos favoráveis a uma profunda renovação da esquerda que, rejeitando qualquer resquício autoritário ou totalitário, não seja também adesista em relação ao neoliberalismo, nem leniente quanto às questões de lisura administrativa. Aqui no Brasil, esse processo de renovação está para ser construído a partir das forças existentes nos principais grupos, movimentos sociais e partidos de esquerda. Ele teria de satisfazer a tripla exigência de compromisso com os valores democráticos e seu aprofundamento prático, crítica do capitalismo e rejeição cabal daquele instrumentalismo que, infelizmente, caracterizou a esquerda à frente de governos no Brasil e na América Latina. É essa, a nosso ver, a orientação que teria as melhores condições para arregimentar em seu favor amplos setores da sociedade brasileira, inclusive parte importante da classe média, que, ao contrário do que se diz, não é uma força fadada a trilhar um caminho reacionário.
Contudo, diante do avanço de uma agenda profundamente retrógrada - mais do que evidenciado no voto da Câmara dos Deputados em favor do impeachment -, que põe em questão importantíssimas conquistas democráticas e sociais obtidas na luta contra a ditadura militar, e consagradas na Constituição de 1988, somos favoráveis também à construção de uma larga frente política em defesa dessas conquistas. Essa frente deve congregar todos os democratas que, independente da origem partidária e ideológica, e do fato de terem ou não apoiado os governos do PT, já confluíram na luta contra o impeachment, e cuja ampliação será decisiva para promover um movimento ainda mais massivo e de forte lastro na opinião pública. Simultaneamente à renovação da esquerda, a consolidação desse campo numa frente democrática orgânica é a principal tarefa a realizar na quadra histórica que ingressamos.

 

A equipe da revista Fevereiro
(Abril de 2016)

 









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