revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Tarso GENRO

O pecado que pagamos

 


Mais além do que desgaste que o Partido dos Trabalhadores vem sofrendo na crista das investigações sobre a corrupção no Estado brasileiro, outras e decisivas causas vêm influenciando o cenário político de “fim de ciclo” e marcando o cotidiano da política nacional. Explico-me: a possibilidade de colocar o PT e o Lula como responsáveis pela corrupção no Estado brasileiro só ocorreu porque, de uma parte, o PT adotou formas de financiamento de sua atividade política e eleitoral que foram “naturalizadas” pelos partidos tradicionais ao longo da história recente e, de outra, porque nossos governos usufruíram de formas de governabilidade conservadora, que marcaram todos os governos do país, antes e  depois da redemocratização. As consequências desse processo foram que o PT se encaminhou para um processo de tradicionalização corrosiva de seu patrimônio ético, e a direita e o oligopólio midiático modernizaram-se politicamente, assumindo uma “guerra de posição” defensora de uma ética pública (farisaica) de grande impacto nos setores médios - e inclusive nos setores de renda mais baixa - que ascenderam durante os dois governos do presidente Lula. Essa crise, no entanto, está fincada em outras épocas.

  Hannah Arendt, em seu clássico A dignidade da política, diz que “a doutrinação é perigosa por nascer principalmente de uma deturpação não do conhecimento, mas da compreensão” e que ela “só faz promover a luta totalitária contra a compreensão e, em todo o caso, introduz o elemento da violência em todo o domínio da política”. É o que vem ocorrendo hoje no Brasil. Aqui se conforma uma espécie de crise pós-moderna de nossa tardia República de Weimar, pois, no âmbito de uma crise econômica,  ao centrar as notícias da grande mídia em informações sobre o PT, legais ou “vazadas” ilegalmente, destacando especialmente os inquéritos e processos contra próceres do PT (agora, principalmente, contra o presidente Lula), essa mídia - unida à direita mais reacionária -  faz uma doutrinação brutal contra a esquerda. Tal doutrinação não separa a responsabilidade dos indivíduos que cometeram ilegalidades da responsabilidade da comunidade partidário orgânica (ou mesmo a sua ampla base popular), ficando então fixada doutrinariamente no senso comum a imagem de que a democracia e a política são “sujas” e que a era petista inaugurou a corrupção sistêmica no país. Daí para a incitação ao ódio e à violência de rua é apenas um passo. E é o que começamos a assistir.

  Os esquemas de corrupção política ocorreram, obviamente, em todos os governos depois da Constituição de 1988. Eles são um modo perverso de privatização do Estado e de subtração de suas funções públicas, que se capilarizaram em todos os partidos e que foram franqueados, muito menos no PT do que nos demais partidos políticos, como se vê no próprio “ranqueamento” das personalidades investigadas e já processadas pela Justiça Penal. Porém, independentemente dos abusos que estão sendo cometidos, e de verdadeiros nichos de “exceção” que hoje estão sendo constituídos, esses inquéritos e processos não podem ser tidos como uma mera conspiração política contra a esquerda. Na verdade, eles carregam, em sua ambiguidade, a própria ambiguidade do Estado Democrático de Direito que, se funciona  para manter os privilégios e os “direitos” das classes “superiores”, carrega também um grande potencial de promoção de mais igualdade e neutralidade formal de suas instituições, essas que são grandes conquistas da modernidade democrática. Convém destacar, ainda, que foi nos governos de Lula que as instituições de controle do Estado nacional e a Polícia Federal receberam valorização política, pessoal, recursos e meios para iniciar um ataque  sistemático à corrupção, mesmo no contexto interno de um sistema político adverso a uma maior moralização da vida pública.

  Deitar um olhar sobre o passado é também reconstituir a ideia do presente. Nos debates que travamos, não só dentro do PT, mas também nos mais largos espectros da esquerda, é importante perguntarmo-nos, hoje, se o presente, como está, seria a única possibilidade. Há duas questões fundamentais para a democracia social no Brasil, as quais penso ser o limite - neste ciclo - de nossas utopias por mais igualdade. Tais questões, que poderiam ser tomadas como agenda reformista forte, pela esquerda, não o foram no momento mais oportuno. A partir do segundo Governo Lula, que teve início com um capital político extraordinário, poderíamos ter travado uma luta de vida ou morte, em termos políticos, para realizar uma Reforma Política e uma Reforma Tributária. Com uma ampla base política no Congresso, com um apoio excepcional das classes populares, com um processo de inclusão massiva jamais visto no país e com a aprovação de uma boa parte dos setores empresariais (naquele momento, os mais dinâmicos da economia nacional)  o governo e os partidos de esquerda e centro-esquerda - ainda que minoritários no Congresso - poderiam ter chamado uma grande campanha popular reformista para, com essas duas reformas, mudar os fundamentos da governabilidade econômica e política da nação e redesenhar o contrato político democrático da Constituição de 1988, cujos suportes já davam sinais de exaustão.

 Após dezenas de consultas a especialistas acadêmicos e a quadros políticos de diversos partidos, desenhamos, no Ministério da Justiça - coordenado pelo secretário Pedro Abramoway -, a pedido do presidente Lula, a proposta de uma Reforma Política. Ela só foi enviada ao Congresso - com o apoio militante do então ministro José Múcio (à época  ministro de Relações Institucionais) - ao final do segundo Governo Lula. Aquela proposta de reforma, retomada quase que integralmente em 2014 pelo deputado Henrique Fontana (seu novo relator na Câmara Federal) recebeu uma enorme resistência na maioria do próprio PT. O Partido já havia adentrado aos métodos tradicionais do fazer político democrático sem se dar conta das armadilhas de uma institucionalidade, não propriamente feita para exaltar virtudes públicas, mas para facilitar negócios extraordinários e paralelos ao Estado de Direito. A Reforma Tributária descansava, impávida, no imobilismo causado pela renda das commodities, que financiava galhardamente o país, em uma situação que estava prenhe de armadilhas recessivas quando o cenário internacional viesse a mudar.

  São esses pecados por omissão que estamos pagando, hoje, dentro de um sistema político que só reproduz fragmentação e fisiologismo e que cada vez tem menos potencial político para enfrentar  reformas tão importantes como essas duas, assim como o é a reforma para democratizar a comunicação no país, hoje conduzida por algumas famílias, que não só substituem os partidos na promoção das pautas políticas que interessam aos seus negócios, como também conduzem as contrarreformas recessivas em uma sociedade em que 1% da população detém quase 50% da renda nacional. O ciclo lulodesenvolvimentista mudou muito o país, mudou-o para melhor. Consagrou o presidente, na área social, como um dos grandes construtores de um país mais justo e mais democrático nas últimas décadas. Mas ele terminou. Precisamos abrir outro ciclo, em um futuro próximo, para, além de formatar um novo conceito de frente e de coalizão governamental, pensar em uma Constituinte originária que seja um novo remédio salvador da democracia após a devastação neoliberal que vem por aí.

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ