revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

José Henrique BORTOLUCI

Constituinte às avessas: hipóteses sobre o impasse político atual

 


As forças progressistas têm dedicado enorme energia para pensar a atual conjuntura brasileira - talvez o pior momento para as esquerdas desde fins dos anos 1979 no Brasil, mas também um momento em que parecem brotar de diversos cantos promessas de novas formas de fazer política. Para além das posições sedimentadas na dicotomia reducionista entre, de um lado, defensores do Partido dos Trabalhadores ou de algumas de suas figuras centrais e, de outro, aqueles que neles enxergam a encarnação de todos os males, o desafio monumental que setores progressistas os mais diversos devem enfrentar é tanto analítico quanto político, já que as hipóteses sobre as causas da crise política em que vivemos são incontornavelmente informadas por perspectivas acerca de possíveis saídas para ela. Estas linhas são hipóteses interpretativas para o tempo presente e para os desafios futuros, sem pretensões de esgotar o tema, já que ele é inesgotável tanto por sua complexidade quanto pelo fato de que, enquanto escrevo, o objeto continua se movendo em ritmo vertiginoso - a recente condução coercitiva do ex-presidente Lula é só mais um evento, por mais simbólico que seja, da transformação diária do jogo político. Não proponho, porém, uma análise de conjuntura que aponte para qualquer princípio de ordem nesse caos político; levanto aqui algumas notas e hipóteses para se somar às recentes discussões acerca das origens profundas - estruturais, por assim dizer, em oposição à mais comum análise de conjuntura - desse atual impasse político e social.
Primeiro, um breve diagnóstico: entre todos os processos econômicos, políticos e sociais que vivemos, o mais relevante em uma perspectiva de longo prazo é a crise atual de algumas garantias sociais fundamentais que foram assegurados pela constituição de 1988 ou que, ao menos, coadunam com o espírito daquela Constituição. Não é novidade que a carta de 88 é bastante expansiva no rol de direitos econômicos, sociais, políticos e civis, mesmo em comparação com algumas das democracias mais antigas e consolidadas. Se é verdade que ainda somos uma sociedade marcada pela violência e por desigualdade de renda e de direitos quase intocada, também é certo que avançamos na construção de um mínimo e frágil estado de bem-estar social e em uma democracia mais sólida do que aquela que jamais tivemos.1 Esse rol de direitos foi fruto do esforço organizado de forças sociais que ganharam corpo ao longo das lutas políticas contra o regime militar e que forneceram as bases para que a constituinte assegurasse uma plataforma legal para uma nova democracia expansiva, com medidas que norteassem o estabelecimento de um estado de bem-estar social em um país marcado por profunda desigualdade, pontilhado de vastos rincões de pobreza extrema e dotado de uma cultura democrática ainda por se constituir.2
Não creio ser exagero descrever o momento atual como uma constituinte às avessas; um processo difuso e multi-institucional de questionamento do pacto político que orientou os avanços, mesmo que lentos, da sociedade brasileira nos últimos 25 anos. O grande desafio para a reflexão e o ativismo político progressista nos próximos anos, para além dos destinos de movimentos sociais e organizações partidárias específicas (sobretudo o PT, evidentemente) refere-se à possibilidade da articulação de novas forças sociais capazes de fazer frente a esse ataque amplo às conquistas históricas do ciclo anterior de lutas políticas.
Esse processo constituinte às avessas vem avançando por diversos frontes. Em meses recentes, projetos de lei caminharam no sentido de ampliar a criminalização e diminuir o leque de mecanismos de defesa de populações que já são encarceradas em massa.3 Uma surreal e oportunista lei antiterrorismo, proposta pelo executivo federal, ampliou a discricionariedade de delegados e promotores em perseguir e prender manifestantes. Esse mesmo executivo, uma vez apoiado pela principal central sindical do país, dá sinais de que pretende aprovar leis que transformam em política de estado cortes emergenciais no orçamento, inclusive interrompendo o principal mecanismo de aumento de renda das classes trabalhadoras em tempos recentes: a política de aumento do salário mínimo. O estatuto do desarmamento corre sério risco de ser afrouxado. A bancada ruralista avança rápido na proposta de transferir ao congresso a atribuição de demarcar terras indígenas, fragilizando um mecanismo de garantia de direitos fundamentais concebido para proteger os direitos originários dessas populações - direitos esses comumente ameaçados exatamente pelos atores representados por tal lobby. Em nível estadual, diversos governos flertam com a militarização e a privatização de escolas.
Essa lista não para de crescer. Evidentemente, ameaças às garantias constitucionais sempre operaram no período posterior à constituição de 1988, mas de guerras de guerrilha elas se tornaram uma verdadeira Blitzkrieg política, legislativa, judicial e cultural. O punitivismo antipopular que move essa constituinte às avessas se soma a uma nova fórmula neoliberal tão elegante quanto perversa: a constituição não cabe no orçamento. Em política, nada mais eficiente do que uma mentira simples para encobrir verdades complexas.
É certo que esse estado de coisas pode ser explicado, em alguma medida, pelas dinâmicas recentes de enfraquecimento do governo Dilma Rousseff e do Partido dos Trabalhadores em decorrência, entre muitos outros motivos, do descolamento entre as promessas da última campanha presidencial e as medidas anunciadas quando as urnas eletrônicas mal haviam sido desligadas; a isso se somam, por certo, os avanços da operação Lava Jato. Muito vem sendo escrito sobre como a operação é, a despeito de uma série de arbitrariedades, um resultado do sucesso de ações de combate à corrupção que puderam se dar nos últimos anos a partir do aumento da autonomia investigativa da Polícia Federal e do Ministério Público, muitas delas avançadas pelo governo do próprio partido que hoje é a joia da coroa da operação. Não me interessa aqui discutir se as repercussões da operação Lava Jato, em todas suas dimensões institucionais e em seu impacto na cultura política e nas práticas dos agentes políticos e econômicos, serão positivas ou negativas à democracia brasileira - parece-me que qualquer avaliação dessa questão peca pelo vício da presciência autoatribuída.4 Por ora, é impossível prever, por exemplo, se a megaoperação será concluída com empresários soltos e políticos presos, reproduzindo o mito da crítica conservadora que, ao repreender a corrupção, só tem olhos ao corrupto e não ao corruptor; também nada indica, até o momento, que a legislação eleitoral - o nó górdio da contínua corrupção em todos os níveis federativos - será fundamentalmente reformada, ou que outras operações de igual envergadura terão como alvo agremiações partidárias envolvidas em outros esquemas de corrupção. Deixando de lado esse exercício especulativo, é fundamental para um diagnóstico crítico do tempo presente um olhar de longo prazo que busque elucidar o processo de constituição do estado brasileiro em sua relação com as forças sociais em conflito desde fins do regime militar, sobretudo no desenrolar dos processos políticos e sociais que se destravam no Brasil a partir de 2013, na maior onda de protestos de rua no Brasil desde as lutas pelas eleições diretas em meados dos anos 1980.
Nesse sentido, gostaria de propor que os protestos de 2013 e de 2015 (e os de 2016 que, no momento em que escrevo, estão por vir de todos os rincões do campo político brasileiro) devem ser pensados não em suas semelhanças, continuidades, descontinuidades e diferenças, mas como fenômenos possíveis dados alguns processos sociais e políticos de longo prazo - ao menos 20 anos. Com isso, não quero afirmar que 2013 seja irrelevante para explicar o destravamento de uma série de processos que vão desembocar nos protestos de 2015, na emergência de novos movimentos sociais e coletivos à direita e à esquerda, e a disseminação do repertório político do protesto para além da esquerda. É certo que os protestos de 2013 disseminam a ocupação das ruas como tática política, como é perceptível pelo maior uso que as forças conservadoras e/ou antipetistas passaram a fazer delas. Além disso, como aponta Bringel (2016), a onda de protestos deslanchada em 2013 levou a um transbordamento social da política, que passou a ser tema presente e sensível em inúmeras esferas de sociabilidade no país - de reuniões de amigos a grupos familiares no WhatsApp, de grupos de jovens nas periferias das grandes cidades a temas de produções para a TV e o cinema. Mas creio que é analiticamente vantajoso e politicamente produtivo pensar em ambos os ciclos de protestos como consequência de dois processos principais de longo prazo: a mudança nas relações entre PT, movimentos sociais e Estado desde o início dos anos 1990, além da dinâmica atual de formação da subjetividade e da cultura política em um contexto de crescente segregação das cidades e da discursividade política. Esses dois processos certamente não são exaustivos para explicar a conjuntura atual,5 mas me parecem duas dimensões de enorme importância e bastante negligenciadas nas atuais discussões sobre o tempo presente. Analiso a seguir cada uma delas.

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Em suas três fases históricas, o PT foi o agregador fundamental das forças de esquerda no país: de sua fundação em 1980 até a derrota de Lula em 1989, em sua fase de oposição parlamentar ao longo dos anos 1990 e início dos 2000 e como governo, quando esse papel de agregador coexistiu com um pacto conservador que, no mínimo, manteve intocados os interesses do agronegócio, de setores conservadores das igrejas evangélicas, forças policiais e da chamada “bancada da bala”, construtoras e do setor financeiro - ou, para efeitos mnemônicos, as forças BBBBB (boi, bíblia, bala, betoneira e bancos). Um dado fundamental do atual momento político é que os conflitos políticos no país já não parecem mais dar espaço a esse exercício agregador. O que está em processo, em resumo, é uma crise da principal coalizão de esquerda que marcou a construção da democracia brasileira desde a constituinte. Essa crise é paralela ao esfacelamento da estratégia política e eleitoral que, nas discussões acadêmicas recentes, convencionou-se chamar de “lulismo”. 
O diagnóstico de que o lulismo encontra-se em crise já é praticamente consensual. Entretanto, nas análises atuais, lulismo tem ao menos dois sentidos diferentes. Primeiro, o lulismo dá nome à conformação das bases eleitorais do Partido dos Trabalhadores no plano federal a partir das eleições de 2006, com uma diminuição do apoio das classes médias e aumento vertiginoso do voto do subproletariado, como analisado pelo cientista político André Singer (2012). As eleições de 2014 certamente mostram indícios de uma erosão dessas bases eleitorais - por exemplo, o voto majoritário a Aécio Neves em diversas regiões periféricas da cidade de São Paulo, tradicionais rincões eleitorais do PT, é uma das amostras da curta vida dessa coalizão eleitoral que sustentou o PT no plano federal nos últimos anos. Aquele verdadeiro pacto rooseveltiano entre massas populares e uma coalizão de governo que avançasse medidas distributivas não parece ter tido o fôlego esperado por Singer no já distante ano de 2012. Há ainda um segundo lulismo em estado crítico: a estratégia dos governos Lula e Dilma em abraçar o conflito e matizá-lo no interior do Estado. Ou melhor, de abarcar a diferença no interior do governo, incorporando interesses sociais os mais diversos, sem conflito explosivo - do agronegócio à economia solidária, dos sindicatos aos bancos. Essa estratégia de transformação conservadora, de diferença sem conflito, que parecia ter tido em Lula um fiel da balança, encontra-se completamente devastada no governo Dilma, com uma quase total conquista de postos importantes por representantes de políticas conservadoras, a despeito da guinada retórica à esquerda no segundo turno das eleições de 2014. A trinca inicial de ministros Levy, Kassab e Kátia Abreu e as recentes medidas de arroxo delineadas pelo ministro Nelson Barbosa - um antigo baluarte do chamado pensamento neodesenvolvimentista durante os governos Lula - evidenciam essa mudança do equilíbrio no interior do governo Dilma.
Contudo, há um terceiro lulismo, mais estrutural, que se encontra em crise - e é a ele que quero me voltar. Esse lulismo - ou qualquer nome que se queira dar à estratégia dominante no Partido dos Trabalhadores em suas relações com movimentos sociais e com o Estado - refere-se ao conjunto de processos e estratégias de longo prazo que levaram à rearticulação da relação entre o PT e as suas bases populares (movimentos sociais, sindicatos e militantes não profissionais do partido). Esse rearranjo inicia-se com o descolamento do grupo de Lula das dinâmicas do partido com sua primeira derrota presidencial em 1989, com o aumento do número de administrações petistas no país, a decorrente profissionalização e burocratização do partido e, por fim, com a crise de sua base em decorrência de uma série de transformações por que passou a sociedade brasileira desde então. Tais mudanças nas dinâmicas da esquerda se aprofundaram nos últimos anos quando o partido trouxe para dentro do governo grande parte dos movimentos sociais que o sustentaram. Essa continuidade problemática entre partido, Estado e movimentos acabou reforçando, em muitos casos, a uma diminuição do trabalho de base e a uma normalização das reivindicações das forças sociais de esquerda ainda capitaneadas ou organicamente ligadas ao partido.
A autonomização da liderança de Lula no interior do PT deu-se na contramão da notável ampliação de mecanismos participativos internos do partido ao longo das últimas duas décadas. A isso se somou o aumento gradual da profissionalização do partido, atestado por exemplo pelo grande crescimento na porcentagem de funcionários do Estado, assessores e comissionados nos congressos do PT ao longo dos últimos 20 anos, com queda na participação de ativistas de movimentos sociais e sindicalistas quando em comparação com os primeiros anos do partido (Secco, 2011). O partido se tornou, evidentemente, uma eficiente máquina eleitoral, em uma estratégia consciente que privilegiou a conquista da presidência da república em detrimento dos governos estaduais e municipais e em uma relação tensa, nem sempre construtiva, com os movimentos sociais que historicamente lhe forneceram as bases sociais mais seguras. Isso se deu em paralelo ao enfraquecimento de algumas das mais importantes forças sociais de esquerda nas últimas duas décadas, com sério refluxo das lutas sindicais, uma crise terminal de setores progressistas da igreja católica e o enfraquecimento de uma série de movimentos que forneciam capilaridade social ao partido.
Essa transformação do ativismo político, em sua relação com o PT e com o Estado, também se deve a uma peculiaridade do arranjo democrático brasileiro dos últimos 20 anos: a profusão de mecanismos institucionalizados de participação na definição de políticas públicas e dotações orçamentárias, em todos os níveis da federação. A literatura especializada, brasileira e internacional, aponta essa especificidade do sistema brasileiro de relação entre estado e sociedade civil: aparentemente, nenhum outro país é dotado de um número tão significativo de mecanismos participativos (sobretudo conselhos de políticos públicas setoriais e conferências nacionais) como o Brasil. É relevante apontar que o PT foi um agente indutor fundamental, apesar de não exclusivo, desse florescimento de mecanismos participativos. Além de experiências locais exemplares, como o orçamento participativo adotado inicialmente em Porto Alegre, pesquisas recentes apontam que cidades em algum momento administradas pelo PT possuem em média um número significativamente maior de conselhos participativos (Lavalle e Barone, 2015). Ainda há muito a ser explorado acerca da relação dessa estrutura institucional participativa e as dinâmicas dos movimentos sociais em relação com os partidos brasileiros, mas parece certo que, a despeito de seu caráter democratizante, essa arquitetura participativa tendeu a gerar “elites participativas” no interior da sociedade civil. Por elites participativas refiro-me a lideranças de movimentos sociais e de associações que passaram a ocupar esse espaço institucional no interstício entre sociedade civil e Estado. Sem resvalar aqui na crítica apressada da “cooptação” - bastante presente tanto na esquerda não petista quanto entre críticos do partido -, essa dinâmica de formatação institucional da participação certamente afetou as dinâmicas da relação entre bases sociais e lideranças, muito provavelmente reduzindo o caráter radical de muitos dos movimentos e os atrelando aos mecanismos políticos e decisórios partidários - sobretudo do PT -, ampliando o caráter problemático e dessa continuidade entre estado, partido e sociedade civil. No limite, esses mecanismos provavelmente tiveram o efeito colateral de regular a pressão democratizante desses movimentos, diminuindo seus potenciais disrusptivos e democratizantes.6   
Com tudo isso, esse ecossistema político à esquerda, capitaneado pelo PT, está respirando por aparelhos. Nos últimos dois anos houve uma radicalização da polarização política no país. Mas, pela primeira vez em trinta anos, essa polarização se dá em um momento de profunda debilidade de um partido articulador das forças progressistas. O bloco histórico liderado pelo PT encontra-se em frangalhos, o que dificulta, ao menos no médio prazo, que a esquerda articule uma resposta à altura ao crescimento de pautas conservadoras. Com isso, vive-se um momento político que é quase o inverso perfeito do período da constituinte: em vez de forças populares organizadas, nós temos o avanço de forças conservadoras e a fragmentação da esquerda. Em vez de Ulisses Guimarães, temos Eduardo Cunha. Em vez de Mário Covas, Aécio Neves. Em vez de um ativismo legislativo como resposta a mais de duas décadas de ditadura, uma resposta conservadora a 12 anos de um governo do primeiro e talvez único partido moderno brasileiro nascido de uma ampla coalizão de muitas das forças populares que lutaram contra aquele regime, mas que governou em associação a forças conservadoras de todos os tipos - e, ao que tudo indica, também lançando mão de expedientes ilegais que sempre caracterizaram o modus operandi da grande política (ou melhor, da política dos grandes) em toda a história do país.
Ironicamente, não se trata de uma crise geral da esquerda no plano da sociedade: houve, nos últimos anos, uma explosão do ativismo descentralizado por todo o país. Os protestos de 2013 parecem ter aberto uma panela de pressão política que vem assumindo formas diversas - desde uma multiplicação de novos coletivos periféricos, movimentos feministas e LGBT, um crescente ativismo dos movimentos de moradia, além de um expressivo crescimento de movimentos antissistêmicos, de inspiração autonomista e profundamente desconfiados da forma partido. Talvez o exemplo mais claro dessa explosão foi a impressionante onda de ocupação de escolas no estado de São Paulo em fins de 2015, mas que agora também parece ganhar corpo em outros estados, como Goiás e Rio de Janeiro. Além deles, observa-se hoje no país um fenomenal florescimento de forças democráticas pouco articuladas entre si e distantes de um centro articulador partidário: a chamada “primavera feminista”, a disseminação de pautas dos direitos das e dos transexuais, os movimentos de cultura periféricos, as ocupações de espaços públicos em reivindicação ao direito à cidade (como o Ocupa Estelita, no Recife), os movimentos de resistência à violência policial (como o importante Mães de Maio), entre tantos outros.
Esses movimentos, muitos de inspiração autonomista, apontam para algo que já podia ser observado há alguns anos em setores mais consolidados da sociedade civil, sobretudo movimentos ambientalistas e em defesa dos direitos indígenas: uma profunda ruptura com o imaginário e com as práticas políticas que aceitam, de forma quase naturalizada, o PT como centro articulador das forças democráticas e populares no país. Além disso, eles partilham de uma crescente desconfiança com relação à arquitetura representativa brasileira, tanto em sua estrutura complexa de conselhos e assembleias quanto naquilo que ela tem de fundamental: a dependência da forma partido como estrutura organizadora do processo de representação. Aliás, essa crise da forma partido parece ser um processo de dimensões globais, parte de uma crise geral da democracia representativa - as recentes reversões do curso de governos populares na América Latina, o crescimento do movimento Occupy nos EUA e a atual candidatura antissistêmica de Bernie Sanders, e o avanço do Podemos e de coalizões municipais de esquerda na Espanha atestam esse momento de inflexão global.

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Além da rearticulação desse sistema de forças que foi hegemônico na esquerda brasileira nas últimas três décadas, há um segundo conjunto de dinâmicas socioespaciais e comunicacionais que ajuda a explicar o acirramento do conflito político atual. Em resumo, creio ter havido a soma de dois processos que se aprofundaram e se entrelaçaram nos últimos anos: a segregação das elites urbanas e a segregação dos campos de discursividade política - esta última em decorrência, em grande medida, do impacto avassalador das redes sociais na montagem dos repertórios de práticas e discursos políticos no Brasil.
Quanto à crescente segregação das elites: uma série de dinâmicas urbanas no Brasil nas últimas duas décadas provocou transformações nas dinâmicas de sociabilidade das diferentes classes sociais. São Paulo parece ser um caso exemplar dessas dinâmicas. Uma pesquisa recente do Centro de Estudos da Metrópole mostrou que espaços predominantemente de elite em São Paulo expandiram-se e tornaram-se mais homogêneos, ou seja, passaram a ter menos moradores das outras classes (Marques, 2014). Essa ampliação da segregação das elites e a emergência de longa data do medo como afeto fundamental que cada vez mais orienta a vida nas cidades - fenômeno já observado desde a primeira metade da década de 1990 pela antropóloga Teresa Caldeira (2000) - vem ampliando um padrão subjetivo e uma cultura política correspondente que prega que desiguais não podem se encontrar, mas devem eliminar-se mutuamente. Uma lógica social, política e cultural do condomínio7 que transforma toda diferença em conflito insolúvel e explosivo.
Esse exclusivismo na sociabilidade urbana é reforçado pela segregação ideológica nas redes sociais. Como aponta Manuel Castells (2012), as novas redes sociais têm tido papel central na recente onda global de protestos, uma vez que elas permitem a ampliação de práticas autonomista e formas de organização rizomáticas. Contudo, várias pesquisas recentes mostram que elas também levam a um aprofundamento da segregação das comunidades discursivas. Essa segregação é base informacional e relacional para a radicalização dos discursos - algo que algumas forças conservadoras no país conseguiram explorar com grande sucesso, ao menos desde a consciente estratégia iniciada por Olavo de Carvalho no início dos anos 2000 (seguido com maestria por polemistas como Reinaldo Azevedo, Raquel Sheherazade e Rodrigo Constantino) em protagonizar uma verdadeira guerra de guerrilha gramsciana contra o PT e as forças populares. A soma dessas duas segregações leva a que haja pouco espaço de contraponto e de encontro construtivo das diferenças políticas em qualquer esfera de sociabilidade das elites urbanas.
Essa dupla segregação também reforça códigos culturais e formas de vida, principalmente com a articulação de um grande campo da população que passou a organizar sua retórica política a partir de um antipetismo sem nuance, em grande medida identificado com uma aversão a causas populares e tendo o “PT” e a crítica à corrupção como grandes bandeiras de luta. Nesse imaginário político, o PT e a corrupção aparecem como “significantes neutros” concatenadores de uma série de insatisfações, desafetos e animosidades, com grande apelo para a formação de agrupamentos discursivos e políticos, no linguajar de Ernesto Laclau (2005). Como precedente histórico de comparação, pode-se pensar na erosão da coalizão rooseveltiana nos EUA em fins dos anos 1960, quando Nixon consegue articular uma maioria eleitoral conservadora baseada na população branca rural e suburbana - a chamada “silent majority”, uma verdadeira massa de “cidadãos de bem” que se incomodavam com as conquistas de direitos civis pela população negra, com os protestos contra a Guerra no Vietnã e com o (limitado) estado de bem-estar social que marcavam o acordo político vigente nos EUA à época. A partir dessa estratégia política, a direita norte-americana tornou-se hegemônica até meados da década de 1990.
Essa lógica da segregação espacial e informacional impactou o conteúdo político e as bases de sociabilidade dos protestos recentes. Quanto ao primeiro, é notável a emergência de uma “demofobia” que não teme dizer seu nome entre as classes médias e altas - algo atestado na pesquisa conduzida por Pablo Ortellado e Esther Solano nos protestos do dia 12 de abril na Avenida Paulista.8 Demofobia, aqui, não como aversão às instituições da democracia liberal, mas no sentido proposto por Jacques Rancière (2014): a ojeriza ao princípio fundamental que afirma que todos são capazes e detentores do direito de participar igualmente do governo de suas comunidades políticas.
Quanto à sociabilidade de base nas manifestações de março e abril de 2015, conclamadas pelos movimentos antipetistas e favoráveis a um processo de impeachment, é facilmente observável que a lógica do condomínio passou a reforçar a ideia de que a política não se dá pela criação de uma esfera pública onde ocorre o encontro da diferença e do o conflito; a política se daria, ao contrário, pela transposição do privado ao público. A unidade básica de sociabilidade nos protestos de 2015 foi a família, que foi às ruas vestida com as cores da bandeira nacional; essas famílias e indivíduos protestavam enquanto entidades privadas, em desconexão com qualquer organização ou comunidade maior de que poderiam fazer parte (movimentos sociais, sindicatos, centros acadêmicos, coletivos, seja o que for). As “revoltas da varanda” talvez sejam o arquétipo dessa política feita a partir de e como reafirmação do privado: o local de fala (literalmente), assim como os valores que o orientam, não poderiam ser mais explícitos. Para além disso, a própria incidência territorial dos panelaços acompanhou, ao que tudo indica, essa geografia da segregação das classes médias-altas e altas.

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Nesse momento de impasse e de enorme apreensão, prefiro concluir estas notas com questões que apontam para dilemas situados além do dramático desenrolar da conjuntura política e que, exatamente por isso, parecem cruciais para repensarmos cenários de ação para as forças democráticas e populares - tanto as antigas quanto as novas. Primeiro, quais os limites e potenciais atuais de uma esquerda sem que um partido articulador se coloque no horizonte presente? Para além disso, quais são os destinos da forma partido e da democracia representativa, no Brasil e além? Por fim, como reverter essa lógica da segregação, tanto urbana como informacional, com seus efeitos tão devastadores para a construção de uma esfera pública democrática? Tais questões parecem-me fundamentais em um momento de constituinte às avessas - um momento em que não só há a paralização de uma série de avanços democratizantes, mas em que há a perda a olhos vistos de garantias legais que deram base jurídica e fundamentação normativa para uma série de transformações democratizantes na sociedade brasileira desde fins dos anos 1980.

 

Bibliografia

Arretche, Marta (org). Trajetórias das desigualdades. São Paulo: Editora UNESP/CEM, 2015
Avritzer, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
Bringel, Breno. “2013-2016: polarização e protestos no Brasil”. Disponível em <www.opendemocracy.net/democraciaabierta/breno-bringel/2013-2016-polariza-o-e-protestos-e-no-brasil>, 2016.
Caldeira, Teresa. City of Walls: crime, segregation, and citizenship in São Paulo. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2000.
Castells, Manuel. Networks of outrage and hope: social movements in the internet age. London: Polity, 2012.
Dunker, Christian. Mal-Estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
Laclau, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005.
Lavalle, Adrian G. e Leonardo S. Barone. “Conselhos, associações e desigualdade”. In Arretche, Marta (org.). Trajetórias das desigualdades.  São Paulo: Editora UNESP/CEM, 2015/.
Marques, Eduardo Cesar Leão. “Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000”. Dados, v. 57, p. 675-710, 2014.
Rancière, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
Secco, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.

Singer, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 

    
    

 









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ilustração: Rafael MORALEZ


1 Para diagnósticos recentes, ver Arretche (2015) e Avritzer (2016). É certo que alguns aspectos fundamentais ainda praticamente não avançaram, se não regrediram com relação aos anos 1980 - por exemplo, ainda estamos entre os campões mundiais em brutalidade policial e em uma cultura jurídica e política punitivistas, heranças sempre aliadas à persistência quase intocada do racismo e do classismo que ainda tratam a questão social como questão policial.

2 É certo que esse caráter progressista da constituinte também teve que conviver com a presença de representantes organicamente ligados a interesses retrógrados. Por exemplo, a constituição pouco avança em termos da conformação de forças policiais adequadas ao novo momento democrático e dá as costas às demandas dos setores mais radicais dos movimentos rurais e urbanos que pressionavam por reformas mais amplamente democratizantes.

3 Vide a recente decisão do STF sobre a prisão depois de decisão em segunda instância, ou seja, antes do trânsito em julgado, em clara afronta às garantias constitucionais do réu.

4 O que não é o mesmo que reconhecer que o aprimoramento dos mecanismos de investigação e punição à pratica de corrupção seja imensamente positivo à democracia, como vem sendo apontado por analistas em todo o espectro político. Ver, por exemplo, Avritzer (2016).

5 Avritzer (2016), em uma das melhores análises sobre as instituições democráticas atuais, aponta um terceiro fator de extrema relevância: a crise do presidencialismo de coalizão, aprofundada ao menos desde a ascensão do PT e em decorrência dos acordos pós-mensalão, sobretudo nas relações com o PMDB.

6 Uma pesquisa posterior talvez devesse expandir esse argumento, comparando com a observação já clássica na literatura sobre movimentos sociais de que o apadrinhamento de elites econômicas e políticas tende a restringir o caráter radical de movimentos populares (Piven e Cloward, 1979). No caso, diferentemente do apontado por aquela literatura, o mecanismo de regulação seria a existência de canais facilmente disponíveis, porém politicamente limitantes do caráter político da representação.

7 Como bem observado pelo psicanalista Christian Dunker (2015).

8 A pesquisa encontra-se disponível em <www.lage.ib.usp.br/manif/> .