revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO
Ilustrações: Daniel NASSER

Variações em torno do Vampiro de Curitiba

 


para ARL.

 

Ao calor das três da tarde, dormia a cidade sob o zumbido das moscas.  O rapaz de linho branco dobrou a esquina - “Eis que vejo a sarça ardente” ; o asfalto mole e pegajoso debaixo dos  pés. Todas as ruas desertas, mas não aquela, apinhada de gente e de tal maneira que transbordava das calçadas. “É um enterro” , disse consigo, “ mas não há morto” .

“A velha querida”, Novelas nada exemplares, Dalton Trevisan.

 

Onde estão as neves de antanho?, e o Vampiro acorda tarde, melancólico, olhos remelentos e de chinelas trocadas sai do esquife da melhor araucária de lei. Põe-se a contemplar o mundo do doutorzinho de preto: o mundo é uma faca no coração, quanto mais mexe, mais sangra.  

 

1. Balada do Vampiro

Ele desce a Trajano, contorna a Catedral e chega à praça Tiradentes. No caminho, os mais variados tipos. Dá um suspiro, um sorriso nervoso, e pensa na última paixão. Para esconder o medo assovia. Mas descobre não saber assoviar e não tem mais tempo para aprender. Escapa dos olhares selvagens que o perseguem - os variados tipos -  pelo calçadão estreito, do lado direito, a salvação, do esquerdo a perdição, e não percebe imediatamente naqueles rostos amarrotados e rotos, naquela oferta bizarra de mercadorias baratas expostas no chão, a mesma sina e destino que o dele, almofadinha de gomex no cabelo: dor de cotovelo, mil anos de paixão, amor incurável no tango de passinho floreado de Ney Traple. Ou melhor, intui vagamente essa filiação metafísica, mas não pensa nem se incomoda com suas consequências. O cogito bateu asas e voou. Estamos todos perdidos? Segue até a Araucária do meio da praça. Uma revoada de pombos encardidos o saúda. Para, e pensa em colocar o cigarrinho na boca. Bendito cigarrinho. Mas eu não fumo, surpreende-se. E ,então, o Vampiro pensa em primeira pessoa. Foram três ou quatro badaladas? Foram seis. Passa a multidão dos mortos-vivos, e eu fico preso a um silêncio atroz, a essa cidade perdida, a um amor. A praça se calou? Para onde foram todas as vozes? Segue em direção à Rio Branco. Ficaram seis badaladas ressoando e todos calados. Quem entrou na Catedral antes de fecharem a porta? No mercado de Flores a mocinha me oferece rosas, em buquê, sortidas, vermelhas: “hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor”. Será que já beijou? Nem todo dia é dia de beijo, e o Vampiro moço mal desconfia dessa verdade; hoje beija, amanhã não beija, e segunda-feira ninguém sabe o que será.
Mas calma, paramos nas badaladas. O sino. O Vampiro para, pensa, ausculta. Nada. Senão o silêncio atravessando tudo. Lembrou de outra cidade. Com suas ruas ortogonais. E pesou ou imaginou pesar a matéria de tudo - reencontraria o cogito  no mercado de flores, bom senso bem distribuído em um banco de sangue universal? Contou os passos. Entrou no café. Procurou a solução definitiva: hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor. É no espelho que eu vejo a minha mágoa, a minha dor e os meus olhos rasos d’água.
O vampiro foge dos espelhos e esconde a sua imagem: tire o seu sorriso do caminho.
Se ela soubesse: no ves que va la luna rodando por Callao, con un corso de astronautas y niños.
O Moço Vampiro bate em revoada com a última luz natural do entardecer.

 

2. Que fim levou o Vampiro de, etc, etc, etc.

Pelo calçadão da Quinze sigo rápido. Tem um sol imenso no céu, e faz um calor atípico. Escondo-me atrás de imensos óculos escuros, escuríssimos, e sigo palmilhando a cidade em horário impróprio. Escaparei do exército de humanos? E se o domador do circo me encontra? Mesmo quente, Curitiba é fria, gelada, e já se vê essa fria substância no olhar da mocinha, de sapatos na mão, chinelinho estalando (salto alto só no escritório, meu bem), na jovem mamãe com a filhinha no colo, as duas sérias e compenetradas em suas seriedades. Vamos mamãe, que paradas é que não ficamos. O vampiro não estranha a frieza desses olhares coloridos nem a seriedade dos bebês. Pelo contrário, acolhe todos e sente o coração aquecido pelo frio cortante dessas gentes, enquanto a rua se inflama, esquenta e faz sublimar os últimos bons sentimentos. Não eram muitos, afinal.
O que temos para hoje, então? Pergunta-se, entre aflito e ansioso. O mar. Meu bem, o mar. Estou em busca do mar.
Ali, na praça Rio Branco, deixei o amor no quarto do Hotel. Duas vezes, mil noites de paixão. Vou ao seu encontro. Era primeiro ou segundo andar, a porta da esquerda? Já não me lembro, mas fazia um frio curitibano nas ruas, enquanto os olhares eram quente e pegávamos o calor um do outro com as duas mãos, consagrávamos e repartíamos o pão. Tendes piedade de mim, óh Senhor. Cuidado pra não se queimar mocinha? Pra você eu sou espinho. Se se queimar, chora mil anos sem parar, e o vampiro cai duro e se afoga na baba amarela da paixão. Passou meu tempo bonitinha, mas o coração continua.
Dá uivos Ohhh porta, grita  Ohhh rio Belém. A mocinha passa de blusa solta, não sorri. Pisa duro. Passo apressado. Encontra o mocinho na esquina da Pedro Ivo: já não é ressoante de abelha? Todos batem palmas pra mocinha de vermelho. O vampiro não inveja nem mostra os caninos: sorri para o amor alheio. Os que se amam sem amor não terão o reino dos céus.
Ninguém me vê. Não são só os óculos. Já sou sombra, sou fantasma, sou fumaça de vampiro que vaza pelo escape do ônibus lotado, às seis da tarde, no ruído abafado da multidão. Vampiro tímido e moço, esconde os caninos,  manca das duas asas e foge dos espelhos, é no espelho que eu vejo as minhas mágoas, a minha dor e meus olhos rasos d’água. Se o olhar certo me descobre, congelo, apaixonado. Não tem alho nem estaca.  E se me descobrem aqui, nesse horário, onde me escondo? Sobram todas as lembranças do que perdi antes de chegar a esse meio-dia que me mata de calor e sede. Mil anos de paixão pela mocinha do hotel; não amiguinhos, não, nem suspiro nem assobio nem cigarrinho nem conhaque no Tic-Tac aliviam mil anos de paixão.
- Por onde andas vampiro louco do calçadão, abandonado; para onde fui, amado pelas táxi-girls, dançarino de tango em passinho floreado, mão no bolso e olhar baixo, dois goles de conhaque e passo apertado, que sem fins me levaram?
Vou em busca do mar?
- Não tem mar,  Alexandre,  na tua Curitiba.

3. Carta perdida na gaveta, de ARL

Remexo papéis antigos e encontro a tua carta. Tem a data de um dezembro antigo. As lágrimas me assustam. Vem-me não sei que pavor de tudo que aconteceu. Dessas tristezas tuas, das minhas indelicadezas. Procurava a carta, como quem te procura. Estás na ponta de meus dedos, ao alcance de mão, e não te toco. Hesito. “Vamos viver intensamente”.  Mas a intensidade devastou uma, duas vidas e sobrou uma areia quente e incômoda, de tudo que antes era rio e floresta. Mas “vamos viver intensamente”, porque você desceu a rampa, e eu, sem graça, te esperava para mim. Quase nada disse porque não sabia o que dizer, mas falei: “vamos viver intensamente.  E não. “Vamos viver intensamente” : ouvindo a música que você me ensinou, rindo alto e conversando horas a fio. Você me dizia: “vamos viver (intensamente)”. E a carta. Volto à carta. Há tiros, barulhos ruins, e sinto o frio d’ alma de quem ouve um ruído distante, no meio da noite e se pergunta: sou eu? Será assim? Vamos viver intensamente: roubar bancos, montar uma guerrilha, mudar o mundo e depois viver com os últimos índios à margem de um rio imenso, caudaloso, dançando uma dança sem fim, que começa em uma madrugada em que não amanhece. Riremos à noite, contaremos as histórias de um dezembro antigo e cantarei a canção que você me ensinou. No fundo do rio viro peixe, viro escama, viro espinho, viro barbatana, viro lama, viro terra. Você voa, vira estrela e entre tuas sardas suaves e a pele branca, a estrela  inventa uma galáxia, uma via láctea particular, um planeta de órbita elíptica e irregular, um sistema solar. 
Vamos viver intensamente: glórias viagens retornos livros sambas café e madrugada; descobrimento do novo mundo às margens de um rio imenso, do velho mundo, e por mares nunca dantes navegados: os confins da vida são também os confins do amor. Curvo-me, estendo a mão. A ti toda a minha honra. Volto ao menino que perdi. Ele me diz: “vamos viver intensamente”.
O Vampiro encolhe os caninos, quebra as asas. No chão, já não voa, espera ouvir a canção antiga enquanto escreve à mão: vamos viver intensamente.

 

4. Epílogo. Diálogos entre o Vampiro de Curitiba e o Profeta do Acontecido, seguido de um epílogo do epílogo.

4.1. Blá, blá, blá, nhêm, nhêm, nhêm

Scientia vinces e lá em cima São Paulo pede para que São Pedro regue o jardim dos paulistas, desde que cada um cuide do próprio.
No meu jardim, chuva ácida, lágrimas de crocodilo.
Na USP scientia vinces, longa conversa com meu velho professor de dialética: e sei e não sei, sei, não sei, sei e não, e não sei. Mimimi conceitual? É a figura imperfeita do conceito que me sacaneia.
Se eu não já soubesse que minha história fosse mais entediante que a do Conde de Monte Cristo, diria que desconfiava.
Imobilismo em movimento: (P)MDB leitor de Bergson.
PMDB: bergsonismo, mais tudo é divino e maravilhoso - na duração todos os gatos são pardos.
(dialética: sei, já não sei.)
Deleuze leitor de Bergson: os autênticos do MDB.
No grande e verdadeiro livro de São Cipriano, o segredo de tudo, que estou a procurar, desde muito:
Êta vida besta meu deus.

 

4.2,  Blá, blá, blá, nhêm, nhêm, nhêm, mimimi

Roberto Carlos = subproduto da Ditadura Militar.
Iê iê iê, pulando direto para a fase cafona do Paul, sem passar pelos discos psicodélicos = subproduto da Ditadura Militar.
LibeLu = eu acredito em duendes ou escola superior para formação de quadros da direita.
JEC = subproduto da Ditadura Militar, não torço.
Se o país fosse sério (tropo retórico típico da direita), o partido da inteligência musical, alegórica e universitária  demitia o Tom Zé e contratava o Rogério Skylab. Melhor e mais barato.
Equívoco de Orson Wells: acreditar que o reformismo não produz obra de arte.
Bergman = o maior artista europeu do ciclo reformista pós 45. Bergman não precisou de/a revolução para fazer obra de arte.
Radicalismo da USP = consciência infeliz por não ter sido quadro operacional da ALN.
USP = uma das últimas instituições da República Velha.
República Velha = São Paulo com algum sotaque italiano mais famílias de longos sobrenomes, mais imigrantes brancos, mais monocultura.
A ação faz a vanguarda = no Brasil, só se a ação for de direita.
Chuva = acordou Homero da catalepsia de ser imortal.
Marco arquitetônico da cidade de São Paulo = autoconstrução.
Rock inglês = classe operária mais Trabalhistas no poder = saúde pública, moradia e salário indireto.
Rock brasileiro = grêmio de escola privada.
Sex Pistols é a trilha sonora dos anos Tatcher = Petralhas.
Tempo voraz que tudo devora: o Vampiro bateu asas e voou.

 

4.3 Peripatético

Caminho pela Paulista, avenida dos e para os, em dia de arroubos melancólicos e turismo incidental. Qual a novidade? Pra variar, dou na Livraria Cultura, tanta gente de bem e tanto sangue ruim, e seu ar radical chique, sem ser uma coisa nem outra. Há um alvoroço, como se diz nas plagas de minha natividade, e lá está o Dado Vila-Lobos lançando “Memórias de um legionário”. Não fez a guerra nem foi mercenário, mas do milagre do golpe, os legítimos filhos da revolução gastaram seu tempo livre, bem acomodados no colchão do milagre econômico, com os rockinhos de sempre. Penso no legionário que fui e já não sou, nas guerras que fiz, de graça e a soldo, e olho pelo retrovisor o assim chamado, em prosa e verso, “rock brasileiro dos anos oitenta”. Que triste definição… Dado Vila-Lobos à minha frente, esse rock, revoltadinho, no passado, e me conformo em ser apenas quem eu sou, sem ter muita certeza disso: a soma imperfeita da abertura pós-ditadura, mais quase hiperinflação dos anos 1980, governo Sarney, PMDB governando 23 estados, plano Cruzado, congelamento e fiscais do Sarney, Lula versus Collor, Colégio dos Santos Anjos, ETT, Glória Futebol Clube e a inconfundível metafísica da Regente Feijó. Não dou em nada, f(x)= - raiz y, mas e só porque uma menina me ensinou quase tudo que eu sei, não sei e não tenho meios de saber. Concluo lembrando que não temos tempo a perder. No amontoado de clichês dou-me conta de como é coisa triste tentar ser proustiano na era da memória terceirizada. Na saída do happening encontro o Lobão, esse mesmo, imaginem, saudado por um incauto, desses que brotam aos montes por aí. Estamos juntos, ele diz. Eu não. O sol não pode viver perto da lua. Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com minha dor. No sonho do Profeta, o anjo Gabriel revela: laranja você secou, leite azedou, banana estragou, inconformado, você pede menos que Diógenes, e se esconde na sombra do tonel.

 

Misturou-se com o povo que, ora diante das portas, ora de cabeça erguida para as janelas, adorava as imagens douradas nos seus nichos, dir-se-ia indiferentes à aflição dos homens, não fora o gesto de esperança com que todas balouçavam a mão direita, unindo em círculo perfeito o polegar e o indicador, no convite ao gozo da inocência perdida e recuperada, até que o rapaz de linho branco as deixou para trás, enquanto duas varejeiras lhe zumbiam em volta da cabeça e mais uma vez repetiu: “Tudo já passou. Não foi nada. Já passou. Agora estou bem.”

“A velha querida”, Novelas nada exemplares, Dalton Trevisan.

 


    
    

 









fevereiro #

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