revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Tales Ab´Sáber1

A extrema direita de hoje e o Brasil: modos de usar

 

 


O processo político histórico recentíssimo do Brasil surpreendeu a muitos por recolocar no plano da vida pública, e da produção de energia política e até mesmo de proposições políticas positivas, uma dimensão e uma entidade político social estranha, mas íntima, e dada até ontem por ultrapassada e extinta. Trata-se da velha configuração social de uma particular direita radicalizada, uma força política imaginada, comprometida com arcaísmos aos quais se deve determinar o caráter, até então de pouca extensão e representação, mas que passou a ter função política efetiva no processo da forte crise de governo contemporânea, tornando-se mais intensa, e algo estratégica, no tempo, do que o tradicional conservadorismo cordial, ou banal, brasileiro. Uma força ativa em sua concepção própria, e distorcida, de mundo, tendente ao extremo de um sistema de ideias que, sem o prejuízo de um excesso, buscam e são a repercussão de um real sistema delirante das coisas políticas que evita intensamente dobras ou veleidades dialéticas.
Durante um bom tempo do andamento da crise radical do último governo de ampla coalisão petista-peemedebista, crise real do próprio sistema político brasileiro como hoje se sabe inteiramente, o nosso mundo estável dos conceitos políticos e do entendimento da vida social se recusou a incluir, a compreender e a lidar com a presença e a função estruturante significativa da nova velha extrema-direita brasileira em todo o processo produtor daquela mesma crise. Não só o fenômeno, sua linguagem, seus objetos e subjetividade não eram olhados de frente, como problema real de política e de conceitos sobre o Brasil, e sobre o Brasil atual, como ele era desconsiderado nas próprias funções que passou a ter na real organização da crise, na ação prática que passou ao primeiro plano das forças políticas existentes do país. Como Adorno bem notou um dia sobre este ponto, tudo se passava como se o sistema oficial da inteligência não pudesse nomear e agir politicamente sobre a realidade do fascismo presente em seu próprio horizonte. Um ponto cego político, uma formação negativa e inconsciente, mas também um lance estratégico de política real, como veremos, que sempre cala sobre o pior e, ainda uma vez, que nos cabe perguntar sobre a sua própria origem, a natureza da sua própria recusa.
Agora, passados dois anos da malfadada eleição do segundo mandato petista de Dilma Rousseff, e do cerco de todas as proporções e de muitas forças que se abateram sobre o seu governo, que nunca chegou a existir de fato dada a forte paralisia estratégica politica que levou à sua queda, todos se espantam tardiamente com o real resto político negativo e insistente, a fratura exposta da vida política nacional, tendente a posições aproximadas de alguma modalidade de fascismo, da presença política cada vez mais evidente de um Jair Bolsonaro no país – como se sabe, um ex-militar de baixa patente, formado em regime autoritário, apologista da ditadura de 1964-1984, da tortura e do assassinato de pessoas de esquerda, homem que já declarou com ênfase, em espaço de poder democrático, o seu machismo misógino, o seu racismo e sua homofobia. Uma presença movimento que, ao mesmo tempo que se configura como grotesca e autoevidente piada de mal gosto sobre o nível político e simbólico que o país alcançou, é ação política positiva clara de desprezo efetivo por direitos acordados historicamente, e convite aberto, no limite da prática, à violência direta como ação política. Tal presença mórbida, necropolítica, como dizem os novos teóricos críticos, também passou a representar estranho e familiar projeto de futuro, e de degradação nacional triunfante, no horizonte rebaixado agonístico do próprio jogo contemporâneo do capitalismo mundial, que produz efeitos semelhantes, mas diferentes, em várias outras nações.
De fato, é sempre preciso lembrar e afirmar que, no caso brasileiro, a política oficial da redemocratização em relação aos agentes do terror de Estado da ditadura de 1964-1984, às ações da extrema direita presentes no poder ditatorial – homens que mataram, torturaram, sequestraram e desapareceram com brasileiros e, ainda em 1981, colocavam bombas em espaços civis – foi praticamente nula. A lei geral aceita a respeito do terror de estado brasileiro foi a real lei política outorgada pela própria ditadura civil-militar, a lei da Anistia de 1979, de fato uma lei de autoproteção e autoanistia dos homens bárbaros da ditadura sustentados pelo poder brasileiro. A partir deste princípio protetor forte da extrema direita da ditadura da Guerra Fria brasileira, na ativa conciliação da Nova Republica e do processo geral da redemocratização brasileira, o espaço público e político nacional suspendeu o trabalho de elaboração do seu passado violento e traumático recente, qualquer desejo de operar sobre a sua forma e energia, passando diretamente à fantasia protetora e superficial de uma realidade pacificada por mero desejo, fantasia distorcida defensiva de uma hegemonia cordial nacional, agora modernizada e democrática. Assim o Brasil não só produziu uma exceção em todo o sistema simbólico legal universal das políticas de justiça e de transição, barrando o julgamento real, e, portanto, também o simbólico em alguma medida, sobre a sua ditadura íntima, mas também gestou e manteve viva a ideia de uma real tutela do campo autoritário, sobretudo do Exército e das forças armadas brasileiras, mas também dos senhores e empresários que os sustentaram, sobre o sistema geral da democracia. A ditadura brasileira determinou a lei central a seu respeito que posicionou o próprio Estado de Direito democrático que deveria ultrapassá-la, e não o contrário, como de fato preconizam os acordos e as normas internacionais de transição. A ordem democrática estaria sobre uma determinação mais ampla, uma concessão de força cedida, mas não superada, de tais forças.
Noutras palavras, a extrema direita ditatorial brasileira foi protegida, destacada do processo de julgamento real e simbólico e premiada no processo de democratização, com a própria lei de anistia tutelar com que invadiu e deformou o espaço democrático. Apenas após seis governos democráticos seguidos, e por ser derrotado e condenado em um tribunal internacional de direitos humanos em ação movida por familiares de desaparecidos, na OEA, que não reconheceu a legalidade de nosso rápido recalcamento politicamente interessado da ditadura, o Estado brasileiro inventou uma tardia Comissão Nacional da Verdade, para simular uma justiça de transição que nunca existiu entre nós. Ela passou a funcionar, sem prestígio nem força, com imensos constrangimentos causados pela forças armadas que mal cumpriam suas determinações, durante o primeiro governo de Dilma Rousseff, processo que teve, como veremos, efeito importante na mobilização original contemporânea da nova extrema-direita brasileira.
Deste modo, a democracia brasileira carregou o enclave simbólico de uma força arcaica que, não podendo ser julgada, permaneceu viva como um real transcendente a todo movimento histórico. Ao fim do processo, a forma final do Brasil sair de sua ditadura íntima, sem sair, confirmava a estrutura da presença intocada e retornante do nosso mesmo atraso e violência antissocial, muito bem percebida e formalizada por Glauber Rocha em Terra em transe, de 1967, um filme que tentava exatamente diagnosticar como a vida política brasileira da época girou mesmo em falso, e como a força arcaica de uma repetição infinita de um autoritarismo antissocial extremado brasileiro nos fez então entrar na ditadura...
Do mesmo modo, como todos sabemos, o processo geral da redemocratização não desalienou as polícias locais de seus fortes vínculos militares, de forma a buscar e indicar um estado social de democracia plena como um sistema de segurança fundamentalmente cidadão; ao mesmo tempo que, ao longo do tempo, com a sustentação de múltiplos e sucessivos governos de direita e com o imaginário antissocial e racista tradicional nacional reinvestido nesta política efetiva de Estado, o espaço da democracia liberou e autorizou a real ação paliativa da crise social brasileira, sempre produzida adiada, de um direito informal, mas constante, ao extermínio dos cidadãos matáveis pelas polícias brasileiras, mantendo contínuos, agora sobre a massa de pobres nacionais, os gestos de violência, tortura e assassinatos característicos do período ditatorial.
Tal convivência com o estado de exceção permanente, com um certo grau de extermínio paliativo, para pobres e negros no Brasil, sem falar na realidade da violência constante contra povos indígenas, é de fato uma política continuada de nossa democracia invadida pelo campo autoritário nacional desde a sua raiz, e se ela não é dita pelo poder público, é afirmada praticamente, mantendo-se em um nível infantilizante ideológico de um banal segredo de polichinelo de Estado: uma política sabida e reconhecida por todos, inclusive internacionalmente, mas simplesmente ilegal, contra os códigos acordados desde a constituição de 1984 e os vínculos do país com os protocolos internacionais de direitos humanos.
Assim se configura, ainda mais uma vez, o fundo prático cindido de nossa mentalidade autoritária, atuando em um espaço contra a própria lei simbólica, e afirmando o falso vínculo estratégico com a lei – para a imagem superficial de civilidade dos homens bons da nação – simultaneamente e tudo ao mesmo tempo agora. É uma versão pesada, ctônica, de terror e de necropolítica afirmativa – 60 mil assassinatos por ano, nos últimos anos no país, dos quais as polícias participam com cerca de 10 mil, contra a ordem da lei... – para a velha figura da volubilidade de caráter nacional, de fato, em termos psicanalíticos clássicos uma estrutura socialmente perversa, forma definidora das elites brasileiras desde a leitura de Machado de Assis a seu respeito, ainda no século XIX.
Nosso século XIX em que, aprofundando o ponto, o Brasil estabeleceu a lei do fim do tráfico internacional de escravos visando à abolição completa ainda em 1831, a reafirmou como novidade em 1850 e concedeu o término da escravidão formal, por fim, em 1888, de modo a fazer o espaço social nacional atravessar o século de forma real escravocrata, mas também de modo legal afirmado publicamente contra o tráfico... O homem político nacional advindo daí se tornava assim um nem isso nem aquilo histórico e social, ou ainda, bem ao contrário também, um isso e aquilo simultaneamente. Precisamente, o que Machado de Assis descreveu na forma genial de seu Brás Cubas, de 1880, e que Roberto Schwarz em um outro momento de recrudescimento e exposição do autoritarismo nacional, nos anos de 1960 e 1970, reconheceu a estrutura profunda de formação subjetiva social: liberais escravocratas, homens modernos submetidos às leis de trocas internacionais do mercado de commodities de seu tempo, abertos e checados pela cultura moderna liberal, cientifica e industrial dos países centrais, mas também amarrados com satisfação em seus espetaculares privilégios concentracionários, antissociais e sádicos locais, pela afirmação continuada da forma da vida e da formação escravocrata.
Retornando ao ponto contemporâneo: se a política de extermínio mínimo, prática de Estado e de governos sobre a massa de pobres e jovens negros – os cidadãos matáveis do país – não é afirmada pelos agentes públicos que a promovem, mantendo-se a fachada fetichista de normalidade democrática e de direitos civis efetivos, instância ideológica para o uso narcísico e satisfação civilizatória dos próprios senhores no processo – que além de assassinos também são civilizados, democráticos e elegantes – por outro lado, tal prática se tornou uma clara política cultural, produtora de indústria ampla no plano da comunicação social e da política, gerando um texto matriz corrente de radical ressentimento e de ataque aberto aos direitos humanos. São os muitos programas de rádio e televisão conservadores que se espalham por todo o país, de extrema-direita, por que não dizer, que acontecem de manhã até à noite e que se utilizam da crise social e da insegurança continuada de pobres e classe média para explorar e estruturar o desejo primitivo de vingança, e a fantasia reparadora arcaíssima de que o sacrifício, o extermínio direto do mal social, desde que pobre e excluído, pode dar conta do mal brasileiro mais amplo.
Cria-se assim uma cultura complacente de violência prática contra pobres, a imensa maioria negros, que alimenta e que sustenta a posição perversa de Estado e de governos, de matar e deixar matar e de negar o extermínio simultaneamente. Estes dois campos – como aliás foi muito bem diagnosticado no blockbuster popular dos anos 2000 Tropa de elite, particularmente o filme II – são coordenados e caminham na mesma direção, a da criação de uma hipercultura da violência nacional, legitimada, de aberto desrespeito de direitos e de classe, que investe as polícias nacionais em todos os níveis de um excesso de poder, cultura que é ao mesmo tempo totalmente afirmada, tornada prática e também negada, por essa gigantesca maquinaria ideológica de Estado.
Trata-se de uma ativa cultura da violência sádica e compensatória contra pobres e negros brasileiros, que tenta equilibrar os maus resultados da integração social nacional, da instabilidade e da segurança, de uma sociedade mantida constantemente em risco pelo espetacular e imutável processo concentracionário da renda, plenamente, e cada vez mais, reafirmado por esta modalidade de democracia danificada, muito efetiva e ativa.
Não por acaso, como medidas políticas coordenadas do governo de pouca legitimidade atual, mas de grande interesse classista, um governo que construiu a sua chegada ao poder sobre o aprofundamento da crise econômica brasileira, que toma medidas recessivas e que ataca a estrutura acordada de direitos sociais da constituição de 1988, para claramente aumentar a força do capital frente à do trabalho, também, o mesmo governo, e ao mesmo tempo, faz grandes investimentos em polícia, equipamentos e estrutura de segurança pública... Tudo indica que a real descompensação social do poder, que aumenta o seu já fantástico poder de concentração no Brasil, deve ser compensada por uma integração social na violência, uma ação repressora generalizada de força constante sobre a vida social nacional. Um exemplo empírico: desde que o governo de direita chegou ao poder, sem passar por uma eleição, todas as manifestações públicas criticas às suas decisões, simplesmente todas, sempre terminam com o ritual simbólico da repressão violenta afirmada pela polícia, sinalizando que tais direitos democráticos estão sobre tensão, não são inteiramente desejáveis, e, no limite, podem deixar a qualquer momento de serem aceitáveis... Após se utilizarem pacificamente deste direito democrático à manifestação pública para alcançar o poder, os homens do governo de direita tendem a desqualificar e reprimir o mesmo direito quando utilizado pelo campo adversário. É a forte relação existente, em todo lugar, entre o aumento da ação política econômica de tipo neoliberal e o aumento simultâneo das práticas repressivas ativas de governo.
Estes são elementos históricos sociais prévios para o entendimento da manutenção do espírito de extrema-direita brasileiro, as ações decisivas do fundo autoritário nacional, espírito político baixo que foi espetacularmente reativado na crise política de 2015 e 2016. Porém, antes de pensarmos mais detidamente a natureza velha-nova deste fenômeno de política contemporânea brasileiro, quero evocar um retrato da convocação pública à direita que se mobilizou naqueles anos de crise para a derrubada do governo petista em seu recém-ganho quarto mandato.
Escrevi o texto que se segue em meados de 2015. Ele fazia parte de um conjunto mais amplo, que buscava entender as várias forças de desestabilização entrópicas que acabaram por produzir o impeachment de Dilma Rousseff, com atenção para a mobilização espiritual, prática e linguageira da nova direita tomando as ruas, o espaço público politico visível nacional, sua busca de produção de força política e atuação pública, uma verdadeira novidade no período democrático. Chamei este texto, que fazia parte de um ensaio sobre a destruição e autodestruição, do último governo petista, de “Anticomunismo, antipetismo”.
Estas tensões políticas, clivagens e afastamentos sociais do governo de Dilma Rousseff foram a base da convocação de um outro tipo de agente social, que acabou por ser a fera de ataque mais dura, organizada e eficaz, para a corrosão atual da mística petista. Com o realinhamento gradual e real do grande capital contra o governo, o homem conservador médio, antipetista por tradição e anticomunista por natureza arcaica brasileira mais antiga – um homem de adesão ao poder por fantasia de proteção patriarcal e agregada, fruto familiar do atraso brasileiro no processo da produção social moderna – pode entrar em cena como força política real, deixando de expressar privadamente um mero ressentimento rixoso, carregado de contradições, contra o relativo sucesso do governo lulo-petista, que jamais pode ser verdadeiramente compreendido por ele.
Com as eleições, e o apoio senhoril assegurador do grande dinheiro, que voltava a ser genericamente antipetista, este povo se manifestou em massa. Com a bomba atômica da corrupção na Petrobras revelada, explodindo no colo da presidente logo após a reeleição – a verdadeira ficha do desequilíbrio político final – esta camada média, que havia se organizado ao redor de um candidato e que não se conformara com a sua derrota, ganhou o instrumento definitivo, agora de fato real, que, junto com a sua própria nova organização, de produção midiática de espetáculo de massas, e de muita estratégia na internet, gerou a nova paixão política conservadora pós-moderna brasileira. O desequilíbrio mais profundo da política no capitalismo de consenso geral brasileiro (...) tendia a se desequilibrar fortemente para a direita, nova velha.
Assim, antipetistas indignados com a corrupção do outro, e anticomunistas do nada, tomaram as ruas para produzir o texto para os grandes conglomerados de mídia nacionais repercutirem, o que ocorreu, em tempo real. Estas forças herdaram as ruas a partir dos levantes, originalmente críticos ao governo, mas à esquerda, ocorridos em 2013, se apropriando da legitimidade política e simbólica do que era um outro movimento.
Embora esvaziado em todo o mundo, e particularmente no modo de conceber o poder da até ontem bem sucedida esquerda democrática brasileira, a já tardia ideia de “comunismo” parece ainda ter uma vigência imaginária importante no Brasil, e está bem presente, surpreendentemente, no fundo da ação na rua desta grande fração das classes altas brasileiras. Onde as coisas são assim, pode-se afirmar com alguma certeza, um fracasso de racionalidade do vínculo entre pensamento e política.
Construção que vem de bem longe, ponto de apoio e ideia central para a instauração de duas ditaduras parafascistas no difícil século XX brasileiro, foco de uma guerra mundial pela hegemonia de Impérios, o anticomunismo sobrevive magicamente no Brasil de hoje como uma espécie de imagem de desejo, para a grande simplificação interessada da política que ele de fato realiza. Ele mantém o discurso político em um polo muito tenso e extremo de negatividade à qualquer realização democrática ou popular de governo; ou melhor, ele é contra qualquer realização que desvie a posse imaginária do Estado de seus senhores, imaginários, de direito.
Para antipetistas, movimento de desfaçatez do velho anticomunismo, basta atribuir ao governo o epiteto de estalinista, ou bolivariano – e gritar nas ruas que “aqui não é a Venezuela”, como se algum dia o Brasil o tenha sido – para poder se livrar de explicar todo o sentido real da política brasileira. Trata-se de um sortilégio, da redução da política ao maniqueísmo interessado mais simples, na esperança de desfechos já há muito impossíveis, do tipo guerra fria.
A dinâmica democrática e viva entre as classes e o governo é transformada deste modo em um gesto de desejo imediato, em uma luta imaginária limite, contra os comunistas inexistentes. E, me parece, isto apenas quer dizer que o governo deve ser derrotado in extremis. O anticomunismo é estratégia extremada – ancorado no arcaico liberalismo conservador brasileiro, com fumos de fidalguia, as famosas raízes do Brasil, de origem ibérica e escravocrata – de resgatar o governo de compromissos populares quaisquer, mesmo quando estes compromissos, como no caso dos governos Lula e Dilma, sejam de fato os da inserção de massas no mercado de consumo e de trabalho, evidentemente pró mercado, capitalista.
E, de fato, é necessária uma fantasmagoria limite, exatamente por isso: foi o governo de esquerda que deu uma certa solução política para o avanço capitalista bem paralisado no Brasil do neoliberalismo periférico dos anos 1990, dirigido pela grande elite econômica nacional. Bem ao contrário da alucinose dos homens que ainda usam os termos próprios da guerra fria, como se sabe, o governo de esquerda dinamizou intensamente o capitalismo de mercado interno brasileiro, alcançando de fato um virtual estado de pleno emprego no Brasil.
A taxa de desemprego caiu sem parar durante os governos petistas, de 12,4% em 2003 para 4,8% em 2014, enquanto, de 2009 a 2014; nos Estados Unidos, origem da crise mundial, ela oscilou de 10% para 7%; na Itália, ela foi de 7% para 13%, na França de 8,5 para 10,2% e na Espanha..., de 18 para 27%. E por isso mesmo, nos valores hegemônicos de uma cultura total de mercado, tal governo só poderia ser vencido se lhe fosse projetado o velho desejo autoritário brasileiro, o mais puro anticomunismo com toques de moralismo neoudenista, que, mais uma vez, nada tinha a ver com o caso.
Por isso, inimigos políticos paralisados pelo sucesso mais geral do governo Lula foram revolver os porões psíquicos do passado: após a vitória de Lula com Dilma, Fernando Henrique Cardoso propôs, de modo envergonhado, mas convicto, que o PSDB guinasse à direita e José Serra utilizou-se abertamente de retórica anticomunista em sua campanha contra Dilma Rousseff. Justo eles dois, um dia vítimas da prática de ódio político com que agora flertavam. Essa linguagem já se tornara quase óbvia na campanha de Aécio Neves, campanha derrotada, provavelmente, pelos pobres empregados do Brasil de 2014.
Vejamos os termos sociológicos, e a janela de oportunidades, de Fernando Henrique Cardoso, para essa guinada do partido, contra um discurso político “visando o povão”, a favor do que chamou de novas classes possuidoras, que deveriam ter os próprios interesses aguçados por uma nova política à direita; e a favor do acento do discurso moralista de elite, que fatalmente encontraria a velha estratégia retórica do anticomunismo brasileiro:

     
 

Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os “movimentos sociais” ou o “povão”, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos. Isto porque o governo “aparelhou”, cooptou com benesses e recursos as principais centrais sindicais e os movimentos organizados da sociedade civil e dispõe de mecanismos de concessão de benesses às massas carentes mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, além da influência que exerce na mídia com as verbas publicitárias. (...) Existe toda uma gama de classes médias, de novas classes possuidoras (empresários de novo tipo e mais jovens), de profissionais das atividades contemporâneas ligadas à TI (tecnologia da informação) e ao entretenimento, aos novos serviços espalhados pelo Brasil afora, às quais se soma o que vem sendo chamado sem muita precisão de “classe c” ou de nova classe média. Digo imprecisamente porque a definição de classe social não se limita às categorias de renda (a elas se somam educação, redes sociais de conexão, prestígio social, etc.), mas não para negar a extensão e a importância do fenômeno. Pois bem, a imensa maioria destes grupos sem excluir as camadas de trabalhadores urbanos já integrados ao mercado capitalista está ausente do jogo político-partidário, mas não desconectada das redes de internet, Facebook, YouTube, Twitter, etc. É a estes que as oposições devem dirigir suas mensagens prioritariamente, sobretudo no período entre as eleições, quando os partidos falam para si mesmo, no Congresso e nos governos. Se houver ousadia, os partidos de oposição podem organizar-se pelos meios eletrônicos, dando vida não a diretórios burocráticos, mas a debates verdadeiros sobre os temas de interesse dessas camadas. (...) Seria erro fatal imaginar, por exemplo, que o discurso “moralista” é coisa de elite à moda da antiga UDN. A corrupção continua a ter o repúdio não só das classes médias como de boa parte da população. Na última campanha eleitoral, o momento de maior crescimento da candidatura Serra e de aproximação aos resultados obtidos pela candidata governista foi quando veio à tona o “episódio Erenice”. Mas é preciso ter coragem de dar o nome aos bois e vincular a “falha moral” a seus resultados práticos, negativos para a população. Mais ainda: é preciso persistir, repetir a crítica, ao estilo do “beba Coca Cola” dos publicitários. Não se trata de dar-nos por satisfeitos, à moda de demonstrar um teorema e escrever “cqd”, como queríamos demonstrar. Seres humanos não atuam por motivos meramente racionais. Sem a teatralização que leve à emoção, a crítica moralista ou outra qualquer cai no vazio. 2

 
     

FHC simplesmente sinalizou, em um discurso estranho e novo à leitura política nacional, muito assemelhado aos cálculos sociais de marqueteiros americanos, a brecha possível para a emergente teapartizaçãodo espaço público da política brasileira, um movimento apaixonado de busca de submissão extrema de tudo ao mercado e sua estrita produtividade – jacobinos do mercado – que também animou, em outro círculo do conservadorismo, o delírio arcaico do velho anticomunismo brasileiro. Anticomunistas do nada, velhos autoritários antipopulares e novos tea-partistas em busca de um Estado estrito para a multiplicação de seus negócios, iam de mãos dadas. E incluíam também na foto, feliz, pela primeira vez como ator democrático, não por acaso, a problemática Polícia Militar paulista.
Também, no período de ascensão e queda petista, atacar com a máxima retórica, isenta de responsabilidade, em jornais, blogs ou revistas, o comunismo imaginado do governo, tornou-se um dos modos mais fáceis e oportunos de ganhar dinheiro no mercado dos textos e das ideias no Brasil. Era suficiente reproduzir a rede de ideias comuns e fixadas, com sua linguagem agressiva, indignada artificial, que sustentassem todo dia o mesmo curto circuito do pensamento. Simplificação espetacular e ponto certo no imaginário autoritário, jornalistas, articulistas, programas de TV e de rádio e revistas inteiras passaram, durante anos, a ler as atividades do governo do ponto de vista extremo, limitado, do anticomunismo imaginário. Além de anacrônico, havia algo de verdadeiramente preguiçoso nesse processo mental político. Antigos artistas, verdadeiros comunistas dos anos 1960 – os nomes são conhecidos de todos – se prestavam a vender opiniões imediatas, atacando faceiramente o aberto estalinismo dos governos de Lula e Dilma. Surgiram os muito duvidosos heróis intelectuais do gênero.
Embora a imprensa fosse absolutamente livre, a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça trabalhassem como jamais no Brasil, e desde o segundo ano do governo Lula a cúpula petista estivesse sobre processo criminal aberto e acabasse de fato inteira na cadeia, durante anos homens muito inteligentes nos garantiam todos os dias nos jornais a natureza ditatorial fixada – alucinose – do governo petista.
O delírio interessado, farsesco, não conhecia limite, uma vez que se desobrigava radicalmente de checar realidades. O fato de, contrariando a opinião garantida destes estranhos pensadores, sempre dada por certeza, Lula não ter se aventurado por nem um segundo na busca de um terceiro mandato, como era previsto – bem ao contrário do comportamento de FHC quando na presidência – também não os sensibilizou para os compromissos democráticos do presidente petista. E gradualmente, abria-se mais e mais o espaço para esse tipo de regressão, wishfulthinking, da leitura da ordem da política, impingindo o delírio apolítico, trabalho mágico obsessivo, como a medida real das coisas brasileiras.
No limite, chegamos a conviver cotidianamente, em grandes jornais, com articulistas que atacavam qualquer ideia ou projeto progressista, de interesse coletivo, solidário ou, até mesmo, apenas meramente humanista. Os novos modernos anticomunistas liberais do mercado concentracionário brasileiro tangenciavam o fascismo, um tipo muito próprio de fascismo de consumo, como dizia Pasolini. Daí a emergência lógica de um discurso final, atual, baseado no mesmo jogo grosseiro de redução da política, da ideia apoteótica de extermínio definitivo do PT...
O fato do governo Dilma ser obrigado a convocar, algo contra a vontade, uma Comissão Nacional da Verdade, após o Brasil, no apagar das luzes do governo Lula, ao final de 2010, ser enfim condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, também mobilizou a ira de velhos torturadores aposentados, amigos e parentes de torturadores e saudosos brasileiros de ditadura de todos os tipos, que, em tal panorama, puderam falar contra a tardia Comissão da Verdade da democracia brasileira, e o governo, sem sofrerem nenhum constrangimento de opinião pública, ou legal.
Como se sabe, tais homens bons foram cruelmente perseguidos pela sanha revanchista dos comunistas derrotados, que haviam tomado o poder de assalto em 2003 e, assim, estes homens bons estavam legitimados, pelos próprios interesses, a retornarem ao ideário de 1970, época em que torturavam, matavam e desapareciam com brasileiros... Era preciso manter a paranoia alimentada.
Os anticomunistas, agentes reais de ditadura, foram convocados pela mínima política reparatória forçada à esquerda, pois foram incomodados em suas aposentadorias especiais e premiadas. Pela estratégia geral da luta política contra o governo, eles foram cinicamente tolerados.
Assim se produzia o campo extremo, algo delirante, em que a luta democrática antipetista encontrava a velha tradição autoritária brasileira. E, por isso, agora que o país, em seu neotranse, se levanta contra os comunistas inexistentes, em uma ritualização do ódio e da ideologia, elegantes socialites peessedebistas e novos empresários teapartistas convivem bem, nas ruas, fechando os olhos para o que interessa, com bárbaros defensores de ditadura, homens que discursam armados em cima de trios elétricos, clamando por intervenção militar urgente no Brasil e sonhando com o voto em Jair Bolsonaro. Não por acaso, em regime de farsa verdadeira, vislumbrou-se nas passeatas de março o semblante das velhas marchas conservadoras de 1964. 
Assim, todo o campo dos anticomunistas do nada, incluindo elegantes estadistas e cientistas sociais, prestou desserviço à qualificação do debate público brasileiro para a vida contemporânea, que ainda é seduzido e obrigado a pensar, por estes homens, regressivamente, com parâmetros vencidos de mundo, construídos em 1959. Este campo também é movido, em uma certa facção da elite que o anima, por uma verdadeira política identitária declasse, cujo lastro organizador de mundo é o ódio antipopular brasileiro.
Tal grosseria imatura e interessada seria simplesmente inaceitável por alguma vida política minimamente informada; se não se apoiasse em espetaculares erros reais do governo, que talvez, imaginariamente, entenda que a crítica às suas práticas graves seja apenas a ideia fixa delirante do anticomunismo do nada, e não um gradual e verdadeiro afastamento de suas bases políticas.
O anticomunismo atrasado brasileiro é regressão da política. Regressão aos argumentos de força e redução da diferença, e implica gozos baixos, do ódio que poderia se alçar ao sadismo, da simplificação da toda vida pública e social e do direito ao desprezo a respeito do destino da vida popular. É uma política do direito ao ódio fixado, frente à vítima escolhida.
Ele tende, como pode se observar facilmente no Brasil hoje, a reduzir a linguagem mediada dos problemas ao gesto de força, na panela, ou no corpo do inimigo.3

Assim tentei retratar o movimento, a retórica e a paixão da nova direita, em meio ao próprio tempo de suas crescentes passeatas nacionais de 2015. Se o quadro e o diagnóstico tiverem algum valor, sob a pressão do presente que o produziu, fica claro como toda a ordem de força popular da chamada nova direita, incluindo setores sociais diferentes, estava baseada e ganhava força desde a não discriminação, da perda de limites simbólicos claros, entre uma supostamente existente direita moderna e democrática e uma explícita e apaixonada direita arcaica e autoritária brasileiras. Esta vinculação de novos liberais radicais, variação local do tipo americano teaparty, e velhos autoritários saudosos de ditadura, de tipo tradicional brasileiro ordem e progresso, se deu sob o signo geral, unificador de diferenças e ele mesmo referência a um passado imaginário de violências que tenta ser reativado, falsificado historicamente, do que tenho chamado anticomunismo do nada.
De fato, os movimentos de 2015 e 2016 puseram na mesma rua, sob uma bandeira comum, novos empresários liberais, ricos e socialites tucanos, antipetistas genéricos, classe média moralista anticorrupção, evangélicos conservadores e homens radicais de extrema direita, inimigos declarados dos direitos humanos, apologistas da violência policial e de Estado, desejosos de uma intervenção militar entendida de modo onipotente e mágico. Esta convivência ampla em um mesmo espaço das várias direitas brasileiras, diferentes, que foram unificadas pelo movimento de massa da eleição – em que seu candidato antipetista foi vencido por 54,5 milhões de votos – e pelo mote estratégico – perverso, imputado ao campo adversário e recusado e protegido cuidadosamente no próprio, em um jogo evidente de dupla moral – do moralismo político anticorrupção, produziu esta forma de união em algum ponto do desejo político, e isto não se deu por nenhum acaso. Para vencer em uma crise de paralização do governo e institucional o campo social majoritário que acabara de ganhar de fato a eleição no país era necessário a união de todas as forças restantes no outro prato da balança nacional, forças que haviam sido derrotadas, mas por uma diferença pequena, de apenas 3% dos votos. A recusa aberta do resultado da eleição, uma surpresa política impensada até então, já sinalizava fortemente para a construção de uma postura radical de desejo e particularidade, em sua raiz já extra legal, como fonte legítima de ação política. Era necessário rapar o taxo da vida social representativa no limite de todas as forças encarnadas próprias da direita, para manter a força de uma recusa histórica extra legal. E a organização de novos grupos de direita, a intensa mobilização e construção de redes de repercussão e de influência na internet e a ação midiática geral espetacular, neutramente a favor das posições manifestadas nas ruas, logrou manter o campo unificado e mobilizado naquela ação política de fundo.
Qualquer ponto produtivo da realidade pública partilhada, discursivo, falacioso, mentiroso ou mesmo real, interessava também e foi mobilizado para a produção do campo oposicionista que ultrapassava os limites da legitimidade de uma eleição, em fúria, e por desejo, frente à oportunidade histórica de derrubar o governo petista em seu quarto mandato consecutivo. Ainda mais com a verdade de uma crise de corrupção real e imensa revelada, cujo valor foi inteiramente imputado ao governo, embora pertencente ao sistema geral da política, e os efeitos de uma crise econômica real e mundial, que finalmente alcançava o país, uma crise que podia ser aprofundada ao infinito com as próprias práticas radicais de paralização do governo em que a oposição se lançara, na busca ativa da construção do impeachment.
Na rua, era mesmo necessária a energia total do movimento popular da direita, que desse ares de amplo consenso para a violência política e institucional que de fato se buscava produzir. Dos desejosos de impeachment, aos de intervenção militar ou de retorno da monarquia, todos era bem-vindos. Deste modo, a socialite cosmopolita de havaianas brasileira tida por moderna deveria ir de mãos dadas, e de olhos bem fechados, com o ex-torturador autoritário que se sentira lesado pela política reparatória mínima dos governos de esquerda – de populismo de mercado interno de Lula e de desenvolvimentismo de Dilma. Invertia-se o valor amoroso, o conteúdo da promessa social, da imagem clássica de união e solidariedade do poema moderno de Drummond. E realizava-se a aproximação da direita mais dura por velhos peessedebistas, preconizada alguns anos antes por Fernando Henrique Cardoso.
Isto se deu desse modo por necessidade da produção de poder. Assim foi porque assim se produzia a energia política máxima de um movimento que devia aparecer como de massa, como sendo a opinião pública e que também necessitava, em um nível importante de produção de política, da força de uma paixão, de um pathos próprio, um delírio ativo, unificador e produtivo, que tivesse força de mover o desejo amorfo do todo. Era a produção daquilo que Fernando Henrique Cardoso, como um verdadeiro marqueteiro político, chamou de teatralização que leva à emoção, ou seja, os rituais simbólicos de grupo e de massa que expressam, sustentam e produzem a emoção, o pathos ou a energia política viva, que gera a disposição para a ação – no caso, passear domingo à tarde com fascistas brasileiros na Avenida Paulista, como se todos fossem pessoas honestas e boas, diante do inimigo maior e mais monstruoso do que o próprio fascismo nacional tradicional, que se reapresentava desde um passado necropolítico mal recalcado para um presente reencantado pelo próprio transe.
Este movimento social, com sua representação política em figuras nefastas e criminosas da República, como o peemedebista evangélico de direita, fascista de consumo, deputado Eduardo Cunha, que para muitos levou a uma quebra institucional, para outros fabricou um impeachment artificial e para outros ainda escancarou a falácia dos jogos de força e lei em uma democracia capitalista contemporânea, simplesmente firmou e legitimou a voz do fascista nacional no espaço público, ao utilizar-se plenamente dela, dando solução de compromisso ativa entre os novos liberais do mercado total e os velhos autoritários antissociais brasileiros, em busca de violência real na vida política e social. Os fascistas foram de fato convocados e utilizados, pelo campo político interessado, como grandes produtores de mentiras históricas e de energia passional disponível para a passagem ao ato que são. De resto, foi a velha aliança ditatorial entre autoritários arcaicos da formação nacional antipopular e liberais interessados na máxima exploração da vida produtiva brasileira, a mesma que de fato sustentou ideologicamente o regime civil militar de 1964-1984, que foi reeditada e rediviva nesta nova festa pública da direita apoteótica pós-moderna brasileira, que até então, por dentro do jogo vigente, apenas perdera quatro eleições consecutivas.
Em um importante trabalho apresentado em 1995 na Universidade Columbia a respeito dos elementos fixos da mentalidade e do comportamento político fascista, do que chamou de Ur-fascismo, com o seu forte caráter politicamente transcendente de forma de produzir sentido que negue radicalmente o processo e o valor da história, Umberto Eco apontou também o vínculo eletivo temporalmente especial entre classes médias, direita e fascismo que estou tentando evocar aqui como tendo acontecido no processo recente brasileiro, da derrubada do último governo petista. Ele descreveu precisamente este ponto:
O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório.4

Seguindo esta razão social das coisas da emergência do fascismo, os jogos de pressão e de poder entre a vida imaginativa, as realidades sociais históricas e as relações diretas entre as classes, que de fato se expressaram fortemente no Brasil da derrubada do pacto social de alto e de baixo lulo-petista, podemos chegar a dimensões psíquicas importantes da estruturação de toda posição fascista de ação política. Em seu ensaio, Eco elenca os pontos de constituição da posição fascista na vida psíquica e sua produção política – culto da tradição, recusa da modernidade, irracionalismo e culto da ação pela ação, ódio à crítica, recusa da diferença, busca de unidade identitária, sentido de humilhação e indignação social pela história, antipacifismo, elitismo, heroísmo, populismo qualitativo e produção de nova língua – e, dentre eles, aquela referência à dinâmica histórica das crises, e seu efeito subjetivante, que dispara a articulação de poder produzida entre as classes que dá poder ao fascista. Essa produção histórica determinada envolve violências imaginárias em sua raiz, risco e humilhação, que já se estruturam como gesto de poder, desejo de reescalonar as diferenças e marcar pela força real os lugares desejados de poder. É gesto fundamental de tomada do poder nas próprias mãos, poderíamos dizer, mesmo que imaginário e pronto a entregá-lo ao senhor hierárquico.
Do mesmo modo, a emergência da condição psíquica do fascista e de seu grupo em meio à ordem conservadora de classe que agora o aceita no Brasil, gera e produz poder para o próprio projeto geral de direita. Noutras palavras, as classes médias de direita, e o senhorio economicamente mais forte que deve chegar ao poder através do movimento, usam os fascistas, dispostos a tudo pela ordem de um psiquismo delirante em seus motivos transcendentais, plenamente voltados ao direito à ação, ao prazer imediato do desrecalque da violência na política, enquanto, no mesmo movimento, os fascistas usam as classes médias para conquistar um invólucro politicamente aceitável, uma estrutura de defesa que proteja a sua real ilegitimidade, posição verdadeiramente ilegal em um Estado de direito, para poderem ocupar e agir no espaço público, espaço que, sem esta solução de compromisso entre vida social média e terror baixo, tenderia a rechaçar a presença fascista.
Como na formação de um sonho freudiano, o elemento neutro da imagem do sonho, indiferente, serve à estruturação defensiva do sonho para que nele possam se disfarçar e aparecer as matérias relevantes e carregadas de intensidade pessoal que dá de fato energia para o sonho – o neutro visível, e o intenso invisível, formam igualmente o sonho – no desrecalque social de uma direita de classe média tendente ao fascismo, o grande cinturão de massas neutras e de direita, honestas e normais se articula, protege, oculta e dá existência simultaneamente ao núcleo fascista ativo, à extrema direita, que com sua convocação delirante política gera o pathos, a energia política necessária, para que o próprio homem comum desmobilizado e medíocre enfim saia da frente da televisão e se mova.
A energia produzida pela ação simbólica e pública dos pequenos fascistas pós-modernos é extrema e pode ser deslocada, por ter origem em um sistema de razões absolutamente irresponsável, fundamentalmente uma produção de força política comprometida com a mentira em sua raiz, um cinturão significante que pode ser abandonado por outro a qualquer momento, por ser totalmente falso. Falso na forma, e real na energia, este é o segredo e a contribuição formal do fascista ao todo do movimento político da direita. Estudando as estratégias discursivas da extrema direita brasileira na internet, e seu modo de ser afetivo e cognitivo para a política – para o desenvolvimento de um documentário que realizo com Rubens Rewald sobre o fenômeno – foi possível observar a criação de uma ficcionalização radical da história, um sistema fabular fantástico e autônomo, que escolhe mínimos pontos de contato com fatos reais, os isola e hiper-investe, para fazer emergir o conto político fantástico interessado como a verdade do processo histórico. Esta construção de narrativas ficcionais, e de processos intensos de vivência imaginária dessa história fabulada, tem a característica importante de pressionar o sujeito, de fato assujeitado a essa produção, a um sentido de urgência, da iminência da destruição do mundo e da reação necessária da guerra redentora, que por um ato de violência total e de sacrifício da parte má da vida social deve finalmente reconquistar a estabilidade, a ordem e a paz, que seriam os motivos desejados no horizonte de toda essa excitação política verdadeiramente deformada.
Ficção, imaginação aterrorizada pela presença do objeto mau, iminência da catástrofe são os fundamentos psicopolíticos que se desdobram em ato contínuo, necessário, urgente, legítimo, irreprimível porque portador dos valores perdidos de toda a civilização já destruída pelo inimigo, do gesto de força, da guerra e do sacrifício social. Assim trabalhou politicamente, e convocou psiquismo e razões fabuladas, para essa forma primitiva de sonhar pensar a vida social, e de exigir da política uma resposta imediata, a extrema-direita brasileira contemporânea, que encontrou no imediatismo e na representatividade direta da internet, de plena aceitação de linguagem superficial ao extremo, um amplo campo de liberdade e de matéria tecnológica a favor de sua própria performance alucinada política.
Este é o movimento geral, da estrutura do continente psíquico e da lógica produtiva de sentido, que se produziu e se reproduziu no espaço público da extrema direita na internet ao longo de anos – que certamente já estava mobilizada, mas era ainda menor, para os ataques organizados e as manifestações que ocorreram contra os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, no ano de 2011 e 2012.  No ano de 2013 se deu o break down entre uma estrutura de pensamento político e busca de ação ligada às ruas, de movimentos sociais independentes, e o governo, um movimento originalmente disparado pela esquerda autônoma e propositiva de ações socializantes mais fortes à favor da classe trabalhadora, notadamente a demanda por transporte social gratuito nas grandes cidades brasileiras. Esta ruptura simbólica ampla, que se tornou uma semana de eventos críticos com massas na rua frente ao déficit de qualidade social dos governos brasileiros, iniciou a quebra do encantamemto da hegemonia política simbólica lulo-petista e abriu o espaço público para dois movimentos estruturantes do campo da nova direita: a tomada das ruas como espaço de atuação política à direita, pela primeira vez no período democrático, e a aceleração do trabalho de fabulação, em muitos níveis, mais ou menos irresponsáveis ou reais, sobre o sentido da experiência do governo de esquerda, culminando com a luta simbólica diante da crise econômica e, em um segundo momento, a crise de corrupção, para a derrubada da sequência de governos petistas no Brasil.
Qual era a fabulação limite da extrema direita, construída coletivamente em espaço de velocidade e irresponsabilidade gozosa total, ao longo dos anos de 2010 a 2015, em grupos e chats na internet, e que alimentava a disposição extremada para a ação, produzindo energia real para o movimento mais amplo da nova direita no Brasil? Nesses casos sociais de produção de sintoma e regressão ativa como força política real, o movimento detalhado do próprio material narrativo onírico, fixado, é tão importante quanto as suas razões gerais de fundo. Segundo a extrema-direita espalhada em centenas de comunicações e grupos de internet – em um discurso comum que era falado, ou falava, pessoas como Olavo de Carvalho, velhos militares de pijamas, jovens empresários brasileiros em Miami até o ex-rockeiro libertário Lobão... – o processo político histórico lulo-petista era essencialmente o seguinte: desde a existência de um encontro de partidos e políticos de esquerda latino americana acontecido em meados da década de 1990, chamado Foro de São Paulo, se estabeleceu um plano amplo para a tomada do poder pela esquerda em toda a América Latina, visando a criação de uma grande pátria unificada socialista, cujo nome primeiro era Unasul; Lula e o PT eram agentes avançados desse processo e estavam em contato com forças revolucionárias e movimentos de guerrilha, como as Farc da Colombia, de modo a investir e ajudar no processo revolucionário mais amplo, e importá-lo para o Brasil; o vínculo com o intervencionismo chavista na Venezuela era real, orgânico e meta final do lulo-petismo no Brasil; as mínimas políticas de reconhecimento e identitárias contemporâneas do governo visavam a criação de uma hegemonia política e cultural da esquerdas no país, que estava prestes a se completar, com vistas a facilitar a revolução comunista que estava no horizonte próximo; as mínimas políticas de recebimento de imigrantes pelo Brasil, refugiados haitianos, palestinos, africanos e os médicos cubanos convidados pelo programa mais médicos do governo federal eram na verdade a real importação de um exército guerrilheiro internacional, que receberia armas enviadas pelas Farc e pela China pelas fronteiras desprotegidas do país para fazer a guerra revolucionária no Brasil; os acordos comerciais com a China e uma plataforma genérica de intenções para a construção de uma estrada de ferro ligando o Brasil ao Pacífico eram na verdade um acordo de submissão e entrega do Brasil à China, que, após a revolução comunista lulo-petista, entregaria o país a milhões de chineses que chegariam através da estrada de ferro prevista, que ocupariam as nossas casas; a eleição de Dilma Rousseff foi uma fraude, e os resultados eletrônicos do pleito vieram por cabo subterrâneo da Venezuela e de Cuba; armas estavam entrando no país e sendo estocadas em fazendas do interior, para alimentar o exército do MST e dos guerrilheiros estrangeiros trazidos ao país pelo governo; a presidente Dilma estava prestes a deflagrar a ofensiva revolucionária do governo; o roubo e a corrupção petista era de fato a produção de dinheiro necessário para a guerra revolucionária em curso; o exército brasileiro era a única alternativa real e eticamente preservada para barrar a revolução comunista iminente, e já em curso, que corroeu as instituições, a cultura e a política brasileira visando a desestabilização para a constituição de um país socialista; neste sentido, corrupção e socialismo petista era uma coisa só; a corrida contra a iminência do ataque comunista era urgente e o exército brasileiro, única salvaguarda moral e institucional disponível, interviria e não permitiria a destruição da nação pela revolução esquerdista; a intervenção militar era iminente, e todos deveriam se preparar para ajudá-la politicamente e sustenta-la nas ruas e nos espaços públicos necessários; a guerra de salvação nacional aconteceria a qualquer instante, e de fato ela já estava acontecendo...
É possível perceber claramente com o desenvolvimento da ficção política paranoica apocalíptica da extrema direita – a ilusão unificadora de um grupo, como dizia Winnicott – tomada por real e produtora de ação política real, os movimentos psíquicos mais íntimos da nova ordem pequeno fascista da política entre nós.
Com base em um único ponto da história – a existência de uma reunião retórica de partidos e movimentos de esquerda nos anos 1990, que não tinha nenhuma correspondência com o sentido da ação política do governo lulo-petista, essencialmente um governo de desenvolvimento e expansão do mercado de consumo interno brasileiro e de pacto desenvolvimentista com o grande Capital nacional – tomado por abstrato e desligado de todo o resto, com a fetichização negativa forte da ideia antiga de comunismo, produz-se toda uma narrativa fantástica, que utiliza os elementos escolhidos da história e só eles, como a vinda dos médicos cubanos para o Brasil por exemplo, para a geração de uma pressão subjetiva presente, uma pulsão para a guerra e uma disposição odiosa para a ação. Deste modo, há ruptura radical com os circuitos de entendimento ordenados e acordados da história, recusa da sua existência, como o fato do governo petista ser pró-mercado por exemplo. Este descarrilamento dos termos historicamente orientados leva a um escorregamento do pensamento rumo ao passado, uma atração pelo passado, de fato um passado imaginado desejado para uma estratégia política visando o presente, o anticomunismo do século XX e da guerra fria dos anos 1960, passado arcaico e delirante tido como a verdade do presente e poroso a uma pressão desejante urgente, com a configuração de um discurso paranoico final a respeito da ruína iminente do que se tem por civilização e a inevitável guerra total, reparadora, que tal degradação civilizatória necessariamente provocará – ou provoca, por esse modo de funcionar psíquico já estar evidentemente instalado em tal guerra.
Assim são três os movimentos psicopolíticos em jogo, configurando de fato uma única produção de força e atuação delirante, alucinose: recusa dos elementos históricos complexos do presente, regressão imaginária radical a um modo antigo de ordenar a história, que já é a escolha paranoica e de ódio e pressão urgente por ação de violência, sacrifício e restauração da civilização. Esse sistema de delírio da extrema-direita, que em sua raiz e de modo total já justifica toda ação da pós-verdade da direita em geral, tinha a função de pressionar e forçar, transferir sua energia política, por uma ação imediata e sem respeito algum pelo campo adversário, a todo o amplo movimento da nova direita brasileira, que de um modo ou de outro participou desse tipo de paixão, cujo próprio delírio de caráter sádico socialmente sustentado já era realização sintomática, regressiva, do prazer imaginário da liquidação do mal e do inimigo. Em um degrade de posições mais ou menos estruturadas, que consideravam mais ou menos pontos históricos, todos se utilizaram da energia política e do delírio intenso, para a produção de política e pós-verdade, da qual a extrema direita é uma espécie de fonte pura do princípio da coisa. Daí os gritos, estertores de ódio, violência comezinha e grosseira nas ruas, panelas batendo, pela deslegitimação urgente de um campo político que botava toda a civilização em risco... Tal regressão satisfeita à práticas políticas de pequeno sadismo, como ocorre em todo movimento fascista, era também baixa produção de prazer, legitimada pela idealização sublime de se estar salvando o país e o mundo do mal absoluto. Este é o sentido preciso da ideia de regressão, e da política como produtora de regressão, utilizada aqui.
Além das tradicionais formas transcendentes de uma configuração psicopolítica delirante, fetichista, paranoica, rumo ao passado e à evocação de alguma falsa tradição, já bem indicadas por Umberto Eco na lógica do Ur-fascismo, a direita e a extrema-direta brasileiras têm sua produção subjetiva e política, biopolítica, fundada na longa tradição nacional do direito à exclusão radical dos direitos e da riqueza de amplas massas de brasileiros, que não precisariam receber nenhum reconhecimento da nação e dos sujeitos da história. De fato, historicamente nossas direitas sempre trabalharam com a exclusão social tolerada, produzida e desejada – a diferença da direita para a extrema-direita é a firmação ou não de tal gozo: a extrema direita o afirma, a direita o nega, mas pratica – com os correlatos racismo, direito à ação violenta e de extermínio, aceitação inquestionável do poder hierárquico ou econômico com adesão imaginária a ele, e ação simbólica radicalmente desistoricizada e auto-referida  .
Conforme nossa longa tradição original escravocrata, uma parte significativa do mundo do trabalho no Brasil não tem legitimidade e nem necessita ser inscrita e reconhecida plenamente no plano dos direitos e da vida material social. Nossa direita, e isto é um fato ideológico único em qualquer nação industrial desenvolvida, pode desprezar e excluir ativamente massas de trabalhadores brasileiros, pobres e negros em sua maioria, do processo da produção e acumulação da riqueza nacional. Esse elemento simbólico forte, o desprezo antipopular e o ódio pelo povo brasileiro e pelos pobres, é uma força particular única da direita brasileira, que acrescenta um ponto a mais, que diz respeito à história particular de nossa formação moderna como sociedade escravocrata, nas posições de abstração da história e de regressão elitista, anticrítica e anti-intelectual, pronta para a passagem ao ato, de toda formação fascista. Aquilo que os fascismos europeus organizam como recusa e ódio ao estrangeiro, ou antissemitismo, para aumento da integração identitária nacional articulada ao direito à violência, o fascismo brasileiro formula como ódio ao povo brasileiro, para o incremento identitário purificado daquilo que seria o verdadeiro brasileiro.  E este elemento histórico forte, o desprezo radical pela vida popular e pobre nacional, também é o responsável pela nossa sólida ideologia de ataque contra os direitos humanos universais, e hoje, em um grau a mais de luta ideológica e barbárie, pelo ataque a toda a vida crítica e intelectual brasileira.
O PT, e o governo Lula, que ousaram dirigir o processo histórico brasileiro para uma expansão de mercado e riqueza com um grau mínimo de partilha com os muito pobres, foram deslocados pela extrema-direita para este lugar único no mundo político contemporâneo: o ódio de uma elite nacional por seu próprio povo. Com a força dessa paixão arcaica se conseguiu deformar todo o processo democrático brasileiro, e se pôs no poder um radical governo de tipo neoliberal, um real representante do sistema da corrupção de Estado brasileiro, que em poucos meses atingiu os direitos da classe trabalhadora no Brasil de modo que, em anos de processo eleitoral e governos sucessivos, a direita jamais conseguira realizar. É o próprio sentido de urgência, delirante e antidemocrático, transferido da extrema-direita para o governo antipopular vencedor, e do governo antipopular para todo o campo da nova direita brasileira.

    
    

 









fevereiro #

10



ilustração: Rafael MORALEZ




1 Psicanalista, Professor de Filosofia da Psicanálise na UNIFESP, autor de Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (Hedra, 2011) e Dilma Rousseff e o ódio político (Hedra, 2015).

2“O papel da oposição”, Revista Interesse Nacional, no. 13, abril/junho 2011.

3 Dilma Rousseff e o ódio político, São Paulo: Hedra, 2015, pág. 35-44.

4 http://blogacritica.blogspot.com.br/2016/11/umberto-eco-ur-fascismo-o-fascismo.html