revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO

Os limites da política: Merleau-Ponty e Claude Lefort
Em torno dos direitos dos homens e da paz europeia: notas e esboços

 


 

 

Coruja
Orides Fontela

Vôo onde ninguém mais – vivo em luz

mínima

ouço o mínimo arfar – farejo o

sangue

e capturo
a presa
em pleno escuro.

 

 

Pensando a óbvia relação entre Merleau-Ponty e Claude Lefort, seria possível, eis a questão, pensar uma passagem, uma fronteira a fazer referência às mudanças do pensamento político na Europa e no mundo, nos dois últimos séculos e meio, mediante à articulação de um problema mais geral e um obstáculo aparentemente objetivo. Desse modo: inicialmente, o que poderíamos nomear da antecipação merleaupontiana em relação a um fim de um ciclo intelectual, prático e teórico, que seria, como segue sem suspense,  o esgotamento da filosofia da história como chave (quase) exclusiva de compreensão (e autocompreensão) da experiência europeia, e todas as implicações especulativas que isso pressupõe. Somando-se a isso, nosso obstáculo objetivo, o bloqueio, por assim dizer, “real” (eis o segundo elemento), da política revolucionário pós-1945. Não por acaso: no início e fim desse largo ciclo, os direitos do homem – da revolução francesa à crítica aos totalitarismo do leste.
A impressão que orienta essas anotações é a de que esse anacrônico livro merleaupontyano As aventuras da dialética1 – escrito em uma língua perdida e sobre um tema amaldiçoado pela posteridade imediata (a malfadada dialética e sua vontade de totalização) seja uma antecipação não apenas da passagem de armas estruturalista que faz a filosofia francesa mas igualmente sintoma (refletido atrás do espelho, por assim dizer, isto é, sintoma da própria ideologia francesa, girando em falso à sua maneira) de uma nova figura que se dá sob o fundo da mudança concreta na marcha material do mundo, causa e efeito da notável realização do pós-guerra mundial, algo que se poderia chamar de “a construção da nova paz europeia”. E valeria perguntar, talvez não aqui, acerca da importância da paz europeia para a normalidade do exercício do poder mundial,  aquela minuciosamente construída, não por acaso, depois da última guerra europeia dos 30 anos, algo que pode ser bem entendido como uma guerra entre estados superposta a uma guerra civil generalizada, entre classes.
Assim, há como que uma intuição profunda na mudança de nexo narrativo do que se chamou “história”, um dos mais caros mitos do ocidente,  Lévi-Strauss contra Sartre. Melhor, uma intuição profunda sobre os destinos da filosofia da história, gênero que paradoxalmente – et pour cause – esgotou-se historicamente, e a constatação, da parte de Merleau-Ponty, da ausência ou da falha atual desse nexo, o da filosofia da história. Não por acaso, a constatação da ausência desse nexo tornar-se-á, por assim dizer, o notável nexo do livro merleupontyano.
Na conclusão do prefácio das aventuras, o obituário de uma época: “À liquidação da dialética revolucionária, experimentamos, para encerrar, dar sua conclusão”.2 Vale lembrar que o epílogo dessa mesma aventura gira em torno, resumamos muito grosseiramente, da impossibilidade de localizar a revolução em uma atualidade ideal da própria revolução, o que leva ao problema mais grave de se perguntar o quanto de revolução “real” houve nas revoluções passadas. A revolução como ideal místico ou ponto de honra espiritual, essa que aplaca os ressentimentos e pacifica as nevroses, é, por seu turno, sintoma atual de nosso tempo (e de seu esgotamento) e não da era das revoluções. Ora, a supor as revoluções passadas, seu momento mais transparente e ideal na história empírica, dar-se-ia, por hipótese, mediante a sincronia adequada – tanto do ponto de vista empírico quanto do ponto de vista especultativo – entre a revolução, como ideal de si mesma, a história e a luta de classe, tudo em sincronia em uma experiência de fato. Esse ideal, decantado a posteriori, também é objeto posto em causa pelo livro merelaupontyano. Será o livro de Daniel Guérin que fará às vezes de sparing previsível do argumento merleaupontyano, ele, Daniel Guérin, que reconhecerá na Revolução Francesa duas revoluções, a da burguesia e a dos braços nus, operando em “tempos” distintos mas dividindo a mesma cronologia. O alcance das objeções merleaupontyanas, que partem do livro de Guérin, vão muito mais longe.3
Ora, esse aparente bloqueio, sintoma de nosso tempo, que transforma o desejo de revolução em fantasma (ou fantasia) da revolução, vem claramente do que poderíamos chamar de “mau infinito do entendimento” a se imiscuir na marcha da razão histórica. As distâncias que toma Merleau-Ponty da filosofia da história não são sem precauções especulativas.
Retomemos o prefácio das Aventuras. A liquidação da dialética revolucionária de que fala, dá-se segundo um percurso muito preciso. Não é apenas a emergência da subjetividade que macula a marcha histórica de sua pureza anônima e algébrica, capturando da última o privilégio de um sentido nascente. A subjetividade sempre esteve presente, senão não haveria uma fenomenologia em Hegel. Trata-se, portanto, de um novo registro da subjetividade. Não a da fenomenologia hegeliana, e sim a da angústia kierkegaardiana, a melhor figuração dramática do mau infinito do entendimento. A vã subjetividade de cada um, esse “euzinho” qualquer, passa a operar em regime crítico e “esclarecer” o que antes só o espírito reencontraria depois do voo de Minerva. Kierkegaard contra Hegel, as migalhas filosóficas contra a grande lógica. Esse “euzinho” qualquer, que não cabe na álgebra da história, já não seria, afinal, mero epifenômeno.
Ora, a emergência da subjetividade na história e na política, segundo a chave privilegiado do prefácio, “a experiência interpretada” (“À prova dos acontecimentos, nós tomamos conhecimento disso que para nós é inaceitável e é essa experiência interpretada que se torna tese e filosofia. É pois permitido de a recontar francamente, com suas repetições, suas elipses, seus disparates e sob o benefício de inventário”4 ) supõe que a história opere segundo o regime muito próximo, senão idêntico ao regime da própria subjetividade, (com suas repetições e seus disparates), de modo que a exortação merleaupontiana para que se a reconte “francamente”, seu percurso cheio de meandros, tem um insuspeito caráter metodológico: é preciso reconhecer que a história engana a si mesma, descarrilha. Ora, tudo isso tem, por seu turno, um pressuposto ainda mais agudo, do qual a emergência desse novo regime da subjetividade no cálculo histórico pode ser entendida igualmente como sintoma: a dissociação entre meios e fins no curso da história, tal como se dá em Merleau-Ponty, é mais um expediente a desbaratar, e de modo indelével, o ardil da razão, cujo sentido profundo é agenciar meios e fins independentemente do alcance da experiência subjetiva. Há, portanto, um retorno à política anterior à razão. O esforço conceitual e de estilo do prefácio das Aventuras é apresentar, como tese – mas como tese bastante convincente reconheçamos –, o modo como “entendimento” e “razão”, conforme a clivagem clássica da filosofia da história, não mais operam de modo a serem o corte estrito da experiência história, que há uma permanente aposição do entendimento à razão, da razão ao entendimento, e cujo significado teórico não pode ser senão que a razão se esgotou antes de se realizar, ela não mais totaliza, com ou sem ardil. A não totalização da razão histórica é o avesso do direito: a subjetividade em novo regime histórico. É esse esgotamento que releva ao primeiro plano a política em novo registro, a política como articulação contingente (falta-lhe o nexo dialético, falta-lhe o ardil que ela mesma desconheceria, mas cujo desconhecimento não importava) entre meios e fins, o que repõe o problema político. Já em 1955, Merleau-Ponty advertia de que isso não se tratava do fim da história, e mobilizava um argumento marxista clássico, a relação entre pré-história e história5 , para escapar do embaraço. O fato é que não se tratava do fim da história, mas do fim de uma história, o fim de uma experiência intelectual que, com maior ou menor intensidade, norteou o pensamento político, europeu e mundial.

***

     
 

A política não é o face a face da consciência e dos acontecimentos um a um e não é a simples aplicação de uma filosofia da história, ela não visa diretamente ao todo. Ela visa sempre a conjuntos parciais, um ciclo de tempo, um grupo de problemas. Ela não é moral pura. Ela não é uma capítulo de uma história universal já escrita. Ela é uma ação que se inventa.6

 
     

 

 

Na “ação que se inventa”, a ideia chave da relação permanentemente contingente entre meios e fins, segue seu corolário mais óbvio: a política tem uma dimensão subjetiva incontornável, descolada, para tanto, de qualquer determinismo “histórico” ou “historicista” estrito, a subjetividade, como dirá adiante Merleau-Ponty, não é nem pode ser refém da álgebra da história, o que significa que nem a história o é. 
Por outro lado, mas com a mesma finalidade, vale notar que do ponto de vista da fatura do livro merleaupontiano, a aventura, o romance de aventura, gênero nobre, nobilíssimo, também se esgotou, sem o saber. Verdade que o bom romance deve partir do desconhecimento e da investigação da própria forma (os melhores o faziam). Todos, entretanto, eram suficientemente sabidos para supor que o nexo que próprio romance dramatizava, o percurso da heroína ou do herói, não viria da mera “abstração” da realidade, mas de uma abstração muito real. O mundo, acreditava-se, podia ser recolhido em um espelho. Ocorre que, da grande narrativa de ficção do século XIX, sobrou quase apenas os jogos de metalinguagem, e, por extensão, a restauração da literatura como divertimento de salão, ou quase. Ora, não é sem razão que o “engajamento” desses raciocínios recupera, em parte, o diagnóstico sartreano de “O que é isso, a literatura?”, livro, aliás, elogiado por Merleau-Ponty nas Aventuras,  acerca do retorno da literatura de “especialistas” (a restauração da literatura pós-1848), índice suficientemente evidente tanto do fim da aventura, quando não do fim do romance.7 Em parte, o balanço figurado desse longo entrecho quem nos dá, se é permitida a excentricidade, é Proust no arremate de uma série, das que perfazem todo o seu Tempo perdido. O quanto ainda haveria de tempo a ser perdido, e seu correlato não objetivo, a aventura, desvio por excelência do tempo da eficiência, seja talvez a melhor e a mais grave ilusão de seu narrador. Ainda mais quando não se encontram em uma única mão, à disposição, na atualidade, essa notável substância romanesca, o perdido e o reencontrado, os passos à deriva de Julien Sorel ou Lucien de Rubempré, do amor da infância, da inocência que põe em perspectiva a formação, da terra natal reencontrada na metrópole. Esse nãoobjeto, ilustrado por esses exemplos sentimentais, o tempo da narrativa, já escorre por entre os dedos. O fim da aventura, tal como o desaparecimento de Albertine, é tema-chave do fim do romance. Apenas as sobras da aventura, em regime crítico (e sentimental) podem ainda recuperar aquele tônus romanesco e literário que faria, segundo o próprio Proust, de Balzac insuperável:

     
 

Todos esses instantes tão doces que nunca mais tornariam a mim, deles eu não posso mesmo dizer que o que eu experimentava como sua perda fosse o desespero. Para estar desesperado nessa vida, que não poderá mais ser senão infeliz, é necessário que ainda se a tenha.  Estava desesperado em Balbec quando a vi se levantar um dia e percebi que não havia mais ninguém que pudesse ser feliz por mim, como eu, assim como eu.  Eu permaneci egoísta desde então, mas o eu ao qual me ligara agora, o eu que constituía essas vivas reservas que põe em jogo o instinto de conservação, esse eu não estava mais na vida. Quando pensava em minhas forças, em minha potencia vital, no que eu tinha de melhor, eu pensava em um certo tesouro que eu teria possuído (que eu teria sido o único a possuir, uma vez que os outros não poderiam exatamente conhecer o sentimento, oculto em mim, que ela me havia inspirado) e que ninguém mais poderia me tirar já que eu não o mais possuía.8

 
     

 

 

Falamos afinal daquilo que apenas surge mediante a própria ausência, do que não temos senão a acerba consciência tardia, abusando dessa palavra famigerada, e cuja mesma consciência, ao emergir, não traz consigo o objeto suposto, porque não há mais objeto que supor. É apenas a perda do objeto que a torna possível, em parte, reconheçamos, subvertendo o próprio sentido da consciência. Daí o amargo desse reencontro. E esclareçamos: nem em aparência aqui se trata do malfadado voo de Minerva, feito depois das realizações do espírito. O que minerva acaso visse, se ainda voasse, ela não compreenderia. Em larga medida também são essas as aventuras da dialética.
Retomando, pois. A mudança de nexo narrativo, tal como podemos chamá-la, aparece no livro de Merleau-Ponty em forma do seguinte teorema especulativo: é a queda, a ser explicada, da  razão no solo do entendimento que produz o refluxo da identidade, mera identidade vale reforçar, no tônus da narrativa dialética. Essa será a marca do esgotamento de um largo ciclo, anunciado com alguma pompa e circunstância por nós.
O solo comum da fronteira de que falávamos, hipótese por nós levantada, e explicamos, toda fronteira é marca de passagem, fim e início de uma passagem real ou imaginária ao território do alheio, gira em torno de um certo esgotamento da filosofia da história, ou de uma certa filosofia da história, no sentido forte e especulativo que a experiência europeia (em alguma medida alçada à condição de experiência mundial) constituiu a partir do século XIX (fins do XVIII).
E o que seria isso, antes de darmos mais um passo? Seria a assunção de que a história – experiência anônima e coletiva – e sua narrativa fossem postas em movimento por um universal encarnado em uma classe, daí classe universal, que se nega a si mesma, e que esse movimento de classe e movimento do negativo, que torna possível o deslocamento da classe no interior da sociedade, simultâneos, fossem capazes  de capturar todo o núcleo de sentido dessa mesma experiência, fossem sua lógica do sentido, exclusivamente. O sentido da história e de seu correlato menos mediado relativamente, a política, só operariam por meio daquele núcleo sintático-semântico. Seria a álgebra da história que daria a chave do sentido político da experiência, que por sua vez significaria que o segredo daquilo que a política projeta como possível (e não se trata aqui da simplória política do possível, mas do possível que a política põe) é-nos dado pela marcha da história, segundo a narrativa da filosofia da história. Os fins teriam o permanente condão redentor dos meios, e a crença no ardil da razão nos protegeria da ação cega, cuja única orientação seria moral. A experiência, em sentido forte, estaria articulada por meio desse nó especulativo a unir a classe e a própria negatividade em pessoa, de modo a produzir o famoso movimento da negação da negação, estrepitante fórmula da geometria hegeliana. A isso chamávamos “razão” (por oposição ao entendimento) e seu corolário nos informava que as feridas do espírito curavam-se sem deixar cicatrizes.
Para compreender o sentido dessa passagem, fronteira entre dois pensadores da política, o que também pretendemos descrever, seria preciso entendê-la como desdobramento de dois desenvolvimentos desiguais e combinados (e desculpem-me pelo passadismo): o esgotamento da filosofia da história e a emergência de um novo pensamento sobre a política.
O primeiro diz respeito ao diagnóstico de Merleau-Ponty em suas aventuras, diagnóstico feito ainda na língua que fala a filosofia da história. O segundo diz respeito ao famigerado artigo de Lefort sobre o modo como os direitos do homem se constituem uma política, e que representaria, cum grano sales, a pré-história da posição lefortiana em relação aos direitos do homem especificamente, ao marxismo em geral, e, por óbvio, à política em seu sentido mais próprio. Crítica, da parte de Lefort, vale dizer, que parte de outro texto famoso, o artigo de Marx sobre a questão judaica.9 .
O que se pretende apresentar, a título de projeto e projeção de pesquisa, é menos a filiação óbvia de Claude Lefort ao pensamento político de Merlau-Ponty, e mais o modo como Merleau-Ponty já colocara, à sua maneira, a questão clássica dos “limites” da história e da filosofia da história por meio de um tipo de especulação excêntrica e ainda sim imanente: mediante os limites da dialética, o que Lefort exploraria em termos de reabilitação da política como luta, violência e força, em parte deslocada do nexo absoluto (não mais) da filosofia da história, decorre da compreensão da larga extensão da visada merleaupontyana. Se levarmos em conta o fato de Merleau-Ponty já ter feito algo como o trabalho prévio de esvaziar as pretensões da razão, entende-se como é possível redimensionar a experiência política por meio de um entendimento mais arguto. A passagem de que falamos pode-se resumir no seguinte checkpoint (em tempos que restrição à imigração faz-se necessário sempre explicitar a autorização de passagem): o que Merleau-Ponty descreve como limite “externo” da dialética, por meio de um manuseio preciso do entendimento, ainda conjugado com a razão, passando a Lefort, passa a operar com outros instrumentos, não dialéticos.
Sigamos, explicando-nos: sobre a filiação Lefort e Merleau-Ponty evidentemente não há nada de novo, sobre o alcance e a pertinência da crítica lefortiana ao marxismo (sobretudo crítica política), igualmente nada há de novidade. A falsa novidade estaria no seguinte fato: o pressuposto mais geral e ancestral ao movimento de Lefort decorre de uma constatação teórico-prática, da parte de Merleau-Ponty, do alcance e limite da dialética, feita, cremos, em termos mais ou menos “dialetisantes” (ainda que não em termos estritamente formais, no sentido a se permitir falar de uma “lógica dialética”). Na passagem de Merleau-Ponty a Lefort, a dimensão propriamente dialética se esvazia na medida em que, uma vez liberado o sentido crítico do entendimento, por assim dizer, como o limite externo ao movimento dialético que não mais totaliza, a política passa a ser o esquecimento da razão, é a emergência da político como mera “ação que se inventa”. Nisso juntaríamos os fios da meada: da emergência da instituição do político e do político como instituição em Lefort, e do ocaso da história (e da filosofia da história) em Merleau-Ponty. O político assume a sintaxe do entendimento quando a razão abandona a prosa do mundo.

Façamos o seguinte recorte:

     
 

Face a esta história, que significa a “revolução política” moderna? Não a dissociação da instância de poder e da instância do direito, pois esta estava no princípio do Estado monárquico, mas um fenômeno de desincorporação do poder e de desincorporação do direito acompanhando a desaparição do “corpo do rei”, no qual se encarnava a comunidade e se mediatizava a justiça; e, simultaneamente, um fenômeno de desincorporação da sociedade, cuja identidade, apesar de já figurada na nação, não se separava da pessoa do monarca.
Em vez de falar da “emancipação política” como do momento da ilusão política, melhor seria, pois, perscrutar o acontecimento sem precedentes constituído pelo desintrincamento do poder e do direito, ou, se bem apreciamos o que o direito põe em jogo, o desintricamento simultâneo do princípio do poder, do princípio da lei e do princípio do saber.10  

 
     

 

A desincorporação de que fala Lefort não é mera abstração, igualmente moderna como experiência e instrumento, e cuja a linhagem remontaria até Montaigne facilmente, ainda que se possa entender a abstração de que falamos como pressuposto da desincorporação acima referida. Trata-se, antes, a última, de um dispositivo crítico de outra ordem, que inauguraria a modernidade política, por assim dizer, e que pode ser entendido como efeito de um processo de longa duração a tornar possível “incorporar” a primeira abstração à vida do poder e à experiência política. Em que pese o flerte à narrativa de Tocqueville, por parte de Lefort (talvez mais que flerte), a execução de Luiz XVI (um bom rei aliás) pode servir de figuração de enorme poder retórico, que na modernidade entra em sinonímia com o político: o espaço do político e o espaço da política não têm corpo, não só não têm corpo, eles prescindem de um corpo. O ato político de tomar o copo do poder não equivale a trocar-lhe o corpo. O que ele produz é a emergência da consciência política moderna de que o poder, o político, a política prescindem de corpo, ainda que vivam a fantasiar um corpo cuja crítica deve assegurar que não lhes pertence em sentido próprio. No processo revolucionário, o corpo que se descobre são os corpos particulares. Assim não parece tão inusitado que na ausência do corpo do rei, no caso da Revolução Francesa, o Comitê de Salvação Pública acabe por lhe ocupar o espaço, e por um momento, todo o espaço possível para o exercício do poder, mas não perdure nesse espaço pois não lhe pertence em sentido próprio. O sentido crítico da posição lefortiana em relação à revolução é que ela não é propriamente o momento da emergência do “poder popular” ou mesmo da luta de classes, que ele reconhece haver, ela o é, mas apenas de maneira inadequada, em claro sentido especulativo. Seja o poder popular, a nova figura da soberania na experiência política moderna, seja a luta de classes, elas não esgotam o pressuposto último da experiência política moderna: a desincorporação do poder. O que seria próprio da revolução é a descoberta do espaço político como espaço vazio. Não é mais a inédita mobilidade das classes que cristaliza a experiência moderna e, por extensão, a experiência política moderna, uma das formas de figurar a negação da negação. É o reconhecimento da falta de pressuposto da ação política e o pensamento e a ação que cabem a partir desse reconhecimento. A partir daí, a tomada do poder não é garantia de sua permanência (não devolve o corpo agora fetichista do poder, nem a ingenuidade perdida dos súditos). O exercício da política significa aceitar que se corre permanentemente o risco de se agir sem fundamento, sem substância. Esse é um dos corolários mais evidentes da desincorporação da política (ou o “toda política é opinião”, das Aventuras da dialética). Na versão otimista, esse processo devolve ao súdito seu corpo-próprio, e, mais do que isso, devolve ao súdito o sentido político de seu corpo-próprio, e parece-nos que daí também é possível fazer o elogio e a defesa da sociedade civil e sobretudo dos direitos do homem: o corpo, se é bem intangível e inalienável de cada um, reconheçamos, uma invenção moderna, também é igualmente bem político intangível e inalienável. É com ele que se desloca ao espaço do poder e o ocupa, sempre provisoriamente, embora, sendo corpo-próprio, ele não ofereça corpo ao espaço do poder, ele não pode oferecer corpo ao espaço político. É o meu corpo que põe o vazio do corpo do soberano. Não por acaso, o problema da violência revolucionária está intimamente ligado à compreensão dos direitos do homem como política.  Ora, esse processo – da abstração à desincorporação –, a atingir o coração da política, produz o mais notável dos efeitos: ao separar o poder, da lei e do saber, cria-se as condições necessárias para a experiência democrática, a feição por excelência que toma a experiência política moderna. Não se trata, afinal, da discussão de formalismos que definiriam uma forma de governo. Trata-se das condições substantivas para a ação democrática: que cada um tenha o corpo, um corpo. Que a política o mobilize, mas não o subsuma, não o totalize. Da skpépsis moderna de Montaigne à revolução francesa, faltaria, porém, compreender como o cinismo ilustrado do Sobrinho de Rameu, efeito do mesmo processo, poderia ser entendido não apenas como  o efeito cômico (e, em alguma medida, subjetivo) da abstração moderna, como simples desincorporação do poder do soberano nos modos e nos costumes. Ora, a internalização cínica da ausência de substância do poder e a assunção igualmente cínica de que há apenas interesses pode produzir como avesso cômico uma vontade geral que é paródia, um bem comum que é uma piada. E se eu me valho da opinião, moeda corrente da vida animal do espírito, para me dar o corpo que me convêm, afinal sou um cínico, aonde me levaria a mera desincorporação do poder? É certo que há totalitarismos e populismos por aí para justificar essa nova posição do entendimento – o gênio maligno é anterior ao fetichismo da crítica da crítica, reconheçamos.
Não se poderia, entretanto, suspeitar que a exceção à experiência democrática não é sua regra, que a desincorporação é de ordem moral para uma sociedade cada vez mais administrada, isto é, que tem e controla cada vez mais corpos?

***

Retomemos Merleau-Ponty, demarcando agora os limites da dialética. No conhecido final de As aventuras da ialética,  Merleau-Ponty fará uma mea culpa em relação ao que, em outro momento, ele chamou de attentisme marxiste. Nesse outro momento ele glosava o tema clássico da violência (Humanismo e terror11 ) e suas consequências e desdobramentos políticos. Do  que se tratava exatamente na passagem merleaupontyana de 1947 a 1955? De que modo lidar e compreender uma tradição legada, a dialética, ou certa tradição dialética, que comportava uma especial constelação de temas clássicos, a filosofia da história, seu corolário político, a saber, a classe universal e sua política, a lógica da história e sua álgebra, e, sobretudo, o tema mais “exterior”, a violência revolucionária (a submissão do corpo, seu e do outro, à lógica da história).  E, porque se trata de dialética, o problema mais exterior passa a ser o central: como lidar com a suspeita de seu esgotamento, da filosofia da história e da dialética,  no que tange ao que orbita em torno de e da história bem como da própria violência? A estratégia merleaupontyana pode parecer excêntrica, mesmo para os desenvolvimentos dialéticos, mas não é imotivada: pela violência Merleau-Ponty amarra dois nós essenciais para sua reflexão: o corpo e a subjetividade. O quanto da história pode legitimamente violar e avassalar um corpo vivo, e a subjetividade que lhe é sucedâneo, essa questão (seja o debate entre Hegel e Kierkegaard, seja a política dos intelectuais pós-68) já está completamente dada em Merleau-Ponty. A novidade dessa retomada do tema da violência revolucionária em As aventuras da dialética seria que, a partir desse último balanço, esse registro não seria mais direto, da história e da filosofia da história, – seja porque esses temas perderam seu “realismo de primeiro grau”, seja porque mediações políticas de outra natureza faziam às vezes daquilo que seria a álgebra da história, em suma:  ninguém suficientemente atento ao pós-guerra e seus arredores poderia, passado o primeiro furor, apostar todas suas fichas em uma revolução para amanhã ou depois de amanhã. A paz europeia já estava em curso e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951),12 o começo bem pensado do mercado comum e da união monetária, bem como de uma série de outras políticas multilaterais para a Europa que acabara de sair de uma guerra fraticida, estava ali para mostrar que, de fato, se encerrara a última guerra dos trinta anos.  Passado quase sessenta anos foi o que sobrou. Eis que aqui também a verdade é o resultado, o resultado é a verdade.

 Observemos, contudo,  o quanto a agudeza de As aventuras da dialética se dá hoje por detrás de uma imediata (e de difícil remoção) pátina do tempo e quanto o leitor não corre o risco de ver no livro um debate datado (senão vencido), em uma língua, enfim, morta. À sua maneira, MP antecipava a Europa pós-1968 (apesar de 1968), e via no debate “revolucionário” versus “contrarrevolucionário” um esgotamento que, de certo modo, pegaria o radicalismo universitário francês de surpresa, mas sem prejuízos para o maduro comércio de ideias (com pagamento à vista ou à prazo) do que é tributário.
Sigamos.
Aceitemos a sugestão de que o tema que organiza os demais é o tema da violência revolucionária e por extensão o da violência política, que amplifica e generaliza o hiato entre meios e fins. Observemos o seguinte juízo: é em torno do problema da violência que melhor se pode compreender o limite da dialética, de um ponto de vista merleaupontyano, é lá que Merleau-Ponty fareja o esgotamento de seu próprio attentisme.13
Expliquemos, dando o passo seguinte: 
Por meio da violência, Merleau-Ponty decantaria o problema propriamente dialético, os limites das operações de  não identidade: violência = a não violência, sobretudo se for violência revolucionária, mas até que ponto? Ora, eram justamente as operações de não identidade que articulavam o nexo dialético entre meios e fins, de modo a não tornar vão o voo de Minerva. Igualmente, o ardil da razão decorria disso: de que o processo histórico não se daria por meio da identidade salvaguardada pelo entendimento. Assim: em que momento a não identidade se interverte (ou reverte) em mera identidade (dialética da dialética, o que Merleau-Ponty chama de fetichismo metodológico), em que momento – especulativo – a violência torna-se mera violência? Sem haver formalização estrita, não nos parece absurdo afirmar que Merleau-Ponty via com não modesta clareza o problema, e As aventuras da dialética é um livro, porque dialético, capaz de rastrear os limites da dialética mais ou menos replicando o seguinte achado crítico: o movimento propriamente dialético sempre está sujeito a uma interversão da interversão, a cair, sem mais, desta feita, no entendimento puro e simples e ainda portar uma “aparência” dialética – é o nascimento da ideologia da crítica, expressão e parte do argumento que tomamos de empréstimo de Ruy Fausto.
Assim, supomos que As aventuras da dialética se organiza por meio de um mata-burro muito próprio, a bloquear a vida animal do espírito dialético, o que o faz por meio de um limite sabidamente externo ao movimento imanente do conceito: a crise do entendimento.14  Ele oporá o unilateralismo da ideologia da crítica ao unilateralismo do próprio entendimento. Tudo o que se anuncia no capítulo acerca da “crise do entendimento” pode ser lido a contrapelo: e nada mais dialético. A “crise do entendimento” é menos crise do entendimento e muito mais sintoma da crise da dialética. O aparente problema dialético do início do capítulo, “a verdade e a liberdade são de uma outra ordem que a luta e não podem subsistir sem ela”, funciona como seu contrário, porque não se trata de totalizar a luta (ou a mera violência) no seu contrário – a verdade e a liberdade –, operação tipicamente dialética já que opera por subversão da ordem da identidade, mas de reconhecer que, a ligação entre uma e outra, porque contingente, esvazia qualquer teleologia histórica – dialética ou não. O que Merleau-Ponty melhor toma de Weber não é o liberalismo da boa vontade (a razão pura prática) e da história universal de um ponto de vista cosmopolita, o que nem há em Weber. É o reconhecimento que a exterioridade que funda a verdade e a liberdade, indicada sob o índice de luta, é violência e não cessa de o ser; para isso, não há antídoto definitivo, há tão somente a possibilidade de opor à violência, violência. 
Weber contra Marx, nesse contexto específico, significa que em vez da ultrapassagem dialética (voltaríamos ao problema da história versus pré-história), a operação por excelência da álgebra histórica, está posto um dispositivo que reconhece a exterioridade dos limites do conceito, que mesmo a verdade e a liberdade (do espírito ou não) só vigem ao reconhecer seu próprio limite, que seu alcance será sempre limitado pela contingência que o põe, e que essa contingência nunca se totaliza, o que equivale a dizer que a verdade pode sucumbir à barbárie. Essa propedêutica metodológica não é, contudo, imune ao seu próprio avesso (e volta-se à dialética): quando se pretende ver de “fora” a história, sob um fundo de opacidade e contingência que não é nem podem ser “reduzidas”, é preciso reconhecer o quão parcialmente se vê, e aceitar o equívoco. Como, porém, lidar com essa porção da história e da vida não reduzida, que não diz respeito ao passado das formas, mas sim ao seu presente? Qual a sua natureza de presente? Novamente, a violência. Mas não a violência que se cura sem deixar cicatrizes, uma violência sabidamente da ordem da identidade: violência como mera violência – da promessa de progresso social à mera barbárie. Aqui, reenquadrando os problemas da filosofia da história, pouco a pouco institui-se com a crise do entendimento, tema-chave do livro merleaupontyano, uma nova temporalidade da história e da política, uma temporalidade parcial, repetitiva, não cumulativa e sob o permanente risco de ser ou tornar-se mera violência. O resto da história, o que sobra da operação da história, não tem cura, não há negatividade que trague tudo o que há ao mero movimento de si para si. Há um positivo inerte na história, um positivo atual, em toda história, um mau infinito, que se sabe por não se poder o conhecer, que se evita por contaminar de uma contingência selvagem toda ação. Em parte, é também esse o lugar da subjetividade e da política.

     
 

Ora, a proximidade do presente, que nos faz dele responsável, não nos dá, porém, o acesso à coisa ela mesma: desta vez, é a falta de distância que não nos deixa ver senão um lado. O saber e a prática afrontam a mesma infinitude do real histórico, mas respondem de duas maneiras opostas: o saber, multiplicando as visões, mediante conclusões provisórias, abertas, motivadas, isto é, condicionais, a prática por meio de decisões absolutas, parciais, injustificáveis.
Mas como lidar com esse dualismo? É o dualismo do passado e do presente, que não é evidentemente absoluto. Um vez que vi, teria que amanhã construir uma imagem, e não posso, no momento em que o vi, fingir que o ignoro. O passado que eu contemplo foi vivido e desde que eu quero entrar em sua gênese, eu não posso ignorar que ele foi um presente.15

 
     

 

Trocando em outros miúdos, o conceito se dissociou do tempo, o tempo do conceito não é mais o tempo da história. Essa pode bem ser a chave de leitura merleaupontyana para a história do seu tempo, sob as lentes da crise do entendimento.16 Isso que poderíamos chamar de a abstração em Weber, o modo pelo qual o tipo ideal é mera forma purificado do real, e, como tal, não teria objetividade em sentido próprio, teria objetividade teórica, não objetividade prática, produz importantes consequências. Ora, a dissociação entre tempo e conceito, falando ainda em língua dialética, significa que o tempo do tipo ideal (tempo gêmeo da ação ou ações individuais do qual decorre) é um tempo vazio e vazado pela contingência, mas por uma contingência específica. Não a contingência de corte merleaupontyano objeto permanente de elogios – da dúvida de Cézanne ao visível e o invisível, passando, ainda, pelas agruras das experiências das patologias. Aqui, trata-se, antes, de uma contingência que não se deixa preencher por qualquer nexo a posteriori, que não se “dialetiza” (abusando do neologismo), uma contingência que permanece permanentemente separada, afrontando um sentido que certa configuração histórica tornou possível, de modo que o progresso relativo da história possa ser desmentido a qualquer momento. Avançando na análise (que em boa parte tomamos de empréstimo as análises de Ruy Fausto em “Dialética, estruturalismo, pré(pós)-estruturalismo17 ), a face subjetiva dos valores (o sentido antes que se objetive em um ethos, por exemplo) está completamente dissociada da história, apenas serve de relativo instrumento de investigação. Aqui, a face menor da contingência é a irracionalidade que pode motivar a atividade do agente, à parte de qualquer imanência histórica. A permanência, por assim dizer, da eficácia da atividade (ou o sucesso da atividade do agente da ação) decorre de como se estabelece, a partir da ação do agente e sem recurso a qualquer noção de “objeto social” ou “estrutura inconsciente”, uma constelação de sentido que ligaria precariamente a face subjetiva do agente (a ética protestante) ao seu efeito para-objetivo o espírito do capitalismo. Se existe o tal espírito do capitalismo (sua substância não interessa para a ciência, apenas seu efeito), isso se dá porque ela, a ética protestante, pode (porque a relação pode ser factual, mas não necessária) contingentemente engendrar um processo de acumulação econômica suficientemente eficaz para se tornar sua própria “lei”, que redunde em sua própria reprodução e transmissão histórica (a passagem clássica de um ethos religioso a um tipo de racionalidade econômica).
Diferentemente do que possa parecer, a disciplina moral (religiosa) e subjetiva instaurada por um certo calvinismo não adquire em Weber qualquer conteúdo fetichista (parecer o que não é, indicando, assim, o seu registro mais óbvio). É mera disposição subjetiva, quase objetiva, e que mantém com a ação que engendra mera relação parcial e contingente. Não há nexo de forma ou conteúdo a ser explicitado entre a disposição subjetiva e o efeito prático, senão como ponto de vista separado, a verdade em tempos de crise, para uso analítico da ciência. Enfim, aonde queríamos chegar, chegamos: não há juízo de reflexão em Weber.18   O entendimento weberiano é completamente asséptico. Daí em seu liberalismo não haver nada de otimismo. Seu liberalismo decorre de uma arraigada adesão a um tipo radical de contingência, não cumulativa.

     
 

Weber não é revolucionário. Ocorre bem que ele escreva que o marxismo é “o caso mais importante de construção de tipos ideais” e que todos os que fizeram uso de seus conceitos sabem como eles são frutíferos, sob a condição de tomar como sentido o que Marx descreve como forças.  Mas, para ele, essa transposição não é compatível nem com a teoria nem com a prática marxista. Como materialismo histórico, o marxismo é uma explicação causal, pela economia, e na prática revolucionária, Weber nunca vê aparecer a escolha fundamental do proletariado.19

 
     

 

Essa redução de “força” ao “sentido” é muito menos inócua do que pareceria à vã epistemologia. Organizando a experiência por meio de um tipo abstrato não objetivo, a releitura weberiana das “forças produtivas versus o modo de produção” significa, e apenas significa na medida de sua abstração.  O sentido teórico e especulativo próprio do marxismo não haveria, senão como instrumento analítico (nunca sintético, em função do hiato abstrato e intransponível entre a atividade do agente e o sentido posto, que só pode ser sentido posto mediante a purificação abstrata do real e nunca como sua dedução).  Reduzir a crítica da economia política a mero instrumento analítico implica naturalmente supor que não haja juízo de reflexão.  A crítica não pode ser “prática”, a supor que seu momento propriamente especulativo decorreria de como a prática social pressupõe o juízo de si mesma, o juízo de reflexão. A prática deve operar mediante outros imperativos.
Tentemos ser um pouco mais claros:

     
 

Com efeito, se pensarmos que essa relação com o tempo é igualmente a relação com o “mundo”, poderemos dizer: se os discursos do entendimento (a filosofia transcendental em particular) põem entre parênteses o mundo (o tempo) para proceder ao ato de fundar, a dialética põe entre parênteses ato de fundar para se apropriar teórica e praticamente do mundo.20

 
     

 

Em Weber, o discurso político do entendimento, a abstração que põe o tipo ideal não pode por o mundo, isto é, a ciência não pode ser “prática”. Igualmente, o mundo posto, não pode por a abstração, senão como recurso analítico subjetivo. A política só pode ser opinião. Essa higiene metodológica é a chave de toda e qualquer política do entendimento.  Desse arranjo teórico não se pode “deduzir” uma política. A política que há e sempre há, de qualquer maneira, com ou sem dedução, por impossibilidade de encontrar o princípio no mundo – a fundação só pode ser, segundo o entendimento, ponto de vista e sempre parcial – é ação à parte do tempo, em um tempo que não transcorre, porque nesse agora a política é sempre falta de distância, e o conhecimento, distância infinita.
Assim, a crise do entendimento, esse entendimento radical, é que dá nexo as aventuras da dialética na medida em que é sob seu fundo crítico que se põe em movimento a figura da dialética. A história da dialética deve ser a história de seu avesso. Daí o cuidado de Merleau-Ponty, instruído pelo entendimento, em acompanhar, sem  à meia distância (evitando a imanência do conceito e a abstração estéril do entendimento) certos desenvolvimentos dialéticos para melhor lhes fotografar o limite. Para lhes fotografar o esgotamento. Dessa maneira é que o livro culmina no ultrabolchevismo21 – a rigor a figura menos dialética das aventuras da dialética, menos dialético que próprio entendimento weberiano, entretanto, o mais presente ponto de vista espiritual da política revolucionária.
Ora, o reenquadramento dos problemas da filosofia da história já apareciam em 1949: estava lá, nos termos a que convergiria ao capítulo sobre Weber de As aventura da dialética, nas “Notas sobre Machiavel” do mesmo Merleau-Ponty.22

     
 

Mas o que ele tem de original [Machiavel], havendo colocado o princípio da luta, ele passa para além disso, sem nunca o esquecer. Na luta mesma ele encontra outra coisa que o antagonismo. “Enquanto os homens se esforçam para não temer, eles se põem a fazer temer o outro, e a agressividade que eles recriam  deles mesmos, eles a atiram no outro, como se, de toda necessidade, fosse necessário ofender ou ser ofendido”. No mesmo momento em que eu temo  eu faço temer, a mesma agressão que afasto de mim, eu a remeto ao outro, o mesmo terror que me ameaça é o que eu despejo no outro, eu vivo meu temor naquele em que me inspira. Mas por um efeito reverso, a dor de que sou a causa me dilacera ao mesmo tempo que minha vítima, e a crueldade, afinal, não é uma solução. É sempre um recomeço. Há um circuito do eu e do outro, uma Comunhão de Santos negra, o mal que eu faço, eu me faço, e é justo contra mim mesmo que eu luto lutando contra o outro.23   

 
     

 

A glosa merleaupontyana não esgota a questão, por certo, mas recoloca a nota sobre Maquiavel em outra chave. O poder, uma vez instituído, não é, nem poderia ser, o exercício simples da violência sobre o outro – o povo, a multidão, a ralé – um tipo de tirania absoluta, sem resto, violência “pura”, ação “pura”. De fato, um dos pressupostos mais ricos do Príncipe de Machiavel é o reconhecimento de que a luta põe o poder, logo, não há origem que não seja maculada pela violência, pela contingência, e pela fortuna. É o outro da política que inventa a própria política. Mais que isso: o reconhecimento crítico da origem desfaz o mito da origem,  a imperfeição da “origem”, por assim dizer, da política é o que determina seu caráter e sua natureza. O esforço da política e do político, o agente desse novo espaço instituído, será sempre passar a outra coisa que seu começo, esquecer a violência e o arbítrio, e repor o poder nos termos do poder, em termos que ela mesma inventa a posteriori: a legitimidade, a doce coerção. Da leitura fácil, “maquiavélica”, dos usos e abusos que o poder faz do outro, já passamos a outra coisa. A alteridade é a chave do poder, e o que cabe ensinar ao príncipe é que há tanto mais poder disponível – e logo, menos violência – quanto mais reconhecimento houver. Nos termos de Merleau-Ponty, o outro não é mais o objeto de que o poder desfruta e dispõe, mediante a mão firme do príncipe. O outro é parte de um conjunto simbólico, em que a figuração do poder, o modo como ele aparece, é reconhecido e ajuizado, dá o ritmo da trama. Nem eu, nem o outro, o príncipe não dispõe, ele repõe todos nós, ele mesmo inclusive, em uma trama do poder. O sentido mais próprio da política, tanto mais eficaz quanto mais o outro se convence que sua posição relativa também passa por sua escolha.  É a liberdade que a política instaura.
Nesse espaço, em que não se esquece da violência pura que o gestou,  mas evita-se a, o poder, já sob a gramática política que o define, constitui-se em um jogo de sombras. Seu pecado original não o rebaixa, pelo contrário, eleva-o. Mas eleva-o em aparência, e não poderia ser de outro modo. É nessa aparência em que ele vive e se nutre de modo a evitar o que não é mera aparência, a violência pura, a moral pura.

     
 

Se parece haver um curso inflexível das coisas, isso é apenas no passado. Se a fortuna parece ora favorável, ora desfavorável, é que o homem tanto  compreende, tanto não compreende o seu tempo, e as mesmas qualidades fazem, conforme o caso, seu sucesso e sua perda, mas não por acaso. Como em nossas relações com o outro, Machiavel define em nossas relações com a fortuna uma virtude tão afastada da solidão quanto da docilidade.  Ele indica como nosso único recurso essa presença ao outro e ao nosso tempo, que nos faz encontrar o outro no momento em que renunciamos a o oprimir. Encontrar o sucesso no momento em que renunciamos à aventura, escapar do destino no momento em que compreendemos o nosso tempo.24

 
     


***

 

O que Lefort redesenhará como o marco fundante da experiência política moderna – a instituição do poder como instância separada, à parte – estado e sociedade civil, súdito e soberano – Merleau-Ponty antecipa nessas notas (observemos ademais: essa separação lefortiana é uma opção pelo entendimento, e o retorno de Machiavel reforça a tese chave lefortiana: a experiência política moderna é uma experiência do entendimento, a política da razão foi sonho de um século de verão revolucionário): o poder, em sua acepção moderna, é da ordem do simbólico (não só porque é ausência de corpo, igualmente porque não quer ser violência pura) e do separado, e vige como fato na exata medida da sua eficácia. Sua temporalidade é, se se quiser, circular e precária, por isso sujeita mais que qualquer outra à fortuna, e não há ordem do tempo que não seja a de um tempo oblíquo e em alguma medida inerte. O poder sofre de uma “despotência” inaugural, originária – a mera violência, em certo sentido, é fraqueza, não força –,  daí sua inorganicidade, sua não corporeidade, já que é a luta e a violência que o põe, como são igualmente a marca de sua separação. A partir daí ele opera para esquecer sua origem e ser o outro de sua origem, ser um modo específico de sedução e, no limite, de coerção dócil. Há um recobrimento do entendimento pelo próprio entendimento, da violência, mera violência, pela legitimidade relativa da violência do poder. Se ele mostra as garras, se for mera violência e abuso, corre-se o risco de perder o que lhe é mais caro, sua eficácia simbólica, o fato de ser poder à distância e poder ser poder a distância – eis a figura mais enfática de nosso teatro de sombras. Há, portanto, violência do entendimento que não é mera violência sem o ser da razão. A crueza do entendimento, nesse caso, parece mais “realista” do que a violência da razão.

Essa temporalidade do poder e sua dinâmica, a assunção de seu sentido moderno e portanto atual, é isso que, em filigrana, As aventura da dialética mobilizam: é o entendimento a demarcar os limites da dialética. Ainda que Merleau-Ponty deixe um pé no barco da dialética – fazendo água ou não. Seria a última memória ou registro de uma tradição que se imobiliza? Assim como o Príncipe, de Machiavel, As aventuras da dialética não é um livro prático , de mero conselhos aos príncipe – ainda que assuma vez e outra essa máscara.  É outra coisa. É um livro sobre o ocaso de um mundo.

     
 

Essas dificuldades deveriam chamar uma nova reflexão sobre a história e a política. Talvez, a considerar com mais atenção o jogo das relações de força, ver-se-ia que é inseparável de um estado da sociedade, que os conflitos de interesses não dão senão uma imagem grosseira e incompleta. Esse estado, para o definir, seria necessário conhecer as precisões dos homens, os direitos e os poderes que eles adquiriram em uma época dada, em virtude frequentemente de suas antigas lutas e que são tornados naturais, a intolerância que manifestam em relação a toda mudança suscetível de as colocar em causa, a pressão, enfim, que exercem por suas reivindicações sobre os grupos dirigentes da economia.25

 
     

 

***

Daí podemos passar ao nosso segundo desenvolvimento. Respondendo novamente a questão: por que os direitos do homem são uma política, agora já em versão lefortiana? A resposta é longa, mas bem dada. Podemos resumir: no novo registro temporal que funda o político (nossa hipótese), bem circunscrito os limites da dialética como ideologia da crítica, há instâncias, regiões, por assim dizer, não mais permitidas às operações da não identidade – e a violência passa a ser uma delas. Paradoxalmente, o direito ao corpo, a salvaguarda de si, sob qualquer hipótese, emerge da aposição do entendimento à razão. A dinâmica moderna do poder – sua separação abstrata, tem e com razão, aos olhos de Lefort, um sentido profilático e político: a abstração do homem é todo homem que o tempo põe como possível e simultaneamente é o homem que não é soberano. A desincorporação do “homem” do corpo político é a instância crítica do entendimento que evita a totalização que permanentemente tenta o soberano. A extrapolação dessa tendência é que fornece a teoria do totalitarismo, algo como a forma degenerada da desincorporação do poder, a inversão que pretende transformar o outro em parte de si próprio. A política também se inscreve nesse jogo de abstração e contra-abstração. A “contra-abstração” dita de “esquerda” pode igualmente não ser da ordem da emancipação, pelo contrário, pode ser da ordem da submissão mais radical, da tirania. No arranjo crítico de Lefort, a justificativa da tirania será sempre ideológica, supor que haja uma boa tirania de esquerda e uma má tirania de direita e esquecer o próprio substrato da tirania: o sequestro do corpo do outro como parte do corpo do soberano, da qual ele, o soberano, pode dispor a seu bel prazer. Daí, a crítica ao totalitarismo poder ser entendida como crítica anterior à clivagem entre esquerda e direita. É esse dispositivo abstrato (abstrato e da ordem do entendimento) que permite a Lefort reatualizar – em sentido teórico, bem entendido – o problema dos direitos do homem, menos o ser do homem, mais a potência de si que deve ser preservada na intangibilidade do corpo.

     
 

Como ocorre algumas vezes, o político duro ama os homens e a liberdade de modo mais verdadeiro que o humanista declarado. É Machiavel que elogia Brutus, é Dante que o condena. Para ser soberano em suas relações com o outro, o poder libera os obstáculos entre o homem e o homem, e põe algo como uma transparência em nossas relações – como se os homens não pudessem ser próximos senão por meio de uma sorte de distância.26

 
     

 

Essa ideia diretora da noção de crítica presente no artigo clássico de Lefort beneficia-se de um movimento de tipo dialético, que poderíamos chamar de reversão, seguindo novamente Ruy Fausto. Ora, a reversão em questão aqui é a que permite, no limite, sublimar o corpo do homem, o ideal da sociedade totalitária, no corpo do soberano sob a justificativa (ideológica) de que a tirania com o homem de hoje fará nascer o novo homem de amanhã. O que a reversão produz é desincorporar os fins dos meios e transformar os meios em seu próprio fim, sem o dizer. Essa é a sociedade totalitária e seu sucedâneo ideológico. À medida que esse material ótimo para a crítica se torna rarefeito, isto é, em que a crítica da reversão entre meios e fins acaba por suprimir os fins – outra operação do entendimento –, à medida que o dispositivo da abstração se “des dialetiza”, Lefort perde potência crítica. Nesse quadro, a política dos direitos dos homem pode ser tornar meio para os mais diversos e excêntricos fins.
De todo modo, não é sem razão que, feita a crítica merleupontyana à filosofia da história, tal como nos dá testemunho As aventuras da dialética, será permitido a Lefort reelaborar toda a história política moderna, recuando à emergência do tema sobre os direitos do homem durante a revolução francesa e o pacificando no “fim da filosofia da história”, com a nova paz europeia (que talvez esteja com os dias contados, no momento em que escrevemos). Seria como se se pudesse recontar a história do século XIX europeu já sem o recurso à filosofia da história, tangendo outros caminhos. Novamente Tocqueville contra Marx. O que não foge exatamente dos ares daqueles tempos – o último quarto do século XX – em que liberdade de espírito será  também repertoriar os “desastres” da revolução francesa.

     
 

Estas duas versões, a do Estado Burguês e a do Estado Socialista não permitem discernir a natureza do poder político, a dinâmica própria da burocracia do Estado. Em primeiro lugar, desconhece-se o sentido de uma mutação que está na origem da democracia moderna: a instauração de um poder limitado de direito, de tal sorte  que, fora do espaço político (no sentido estrito, convencional do termo) se circunscrevem espaços econômico, jurídicos, cultural, científico, estético obedecendo cada um suas próprias normas.27

Dever-se-ia sobretudo reconhecer o caráter simbólico do poder, em vez de reduzi-lo à função de um órgão, de um instrumento a serviço das forças sociais que lhe preexistiriam. Na falta dessa perspectiva não se vê que a delimitação de uma esfera do político é acompanhada de um modo novo de legitimação, não somente do poder mas das relações sociais como tais. A legitimidade do poder funda-se sobre o povo, mas à imagem da soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender apropriar-se dela. A democracia alia esses dois princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do povo; outro, que esse poder não é de ninguém. Ora, ela vive dessa contradição. Por pouco que esta se arrisque a ser resolvida ou o seja, eis a democracia prestes a se desfazer ou já destruída. Se o lugar do poder aparece, não mais como simbolicamente mas como realmente vazio, então os que o exercem não são mais percebidos como indivíduos quaisquer, como compondo uma facção a serviço dos interesses privados e, simultaneamente, a legitimidade sucumbe em toda a extensão social; a privatização dos agrupamentos, dos indivíduos, de cada setor de atividade aumenta: cada um quer fazer prevalecer seu interesse individual ou corporativo. No limite, não há mais sociedade civil”.28

 
     

 

Revisemos. Lefort não se furta a reescrever a história da experiência moderna e seu sentido político. Assumamos assim em sentido vago aquilo que se dá a partir invenção do mercado mundial, com todos os seus antecedentes e seus consequentes, mais os  pressupostos que são exigidos para tal e tanto, por meio de algo como uma etnologia do poder: é o poder como espaço simbólico do exercício de uma violência simbólica, e que mesmo sendo simbólico não prescinde da borduna, e, ainda que mitigado de si para o outro, do outro para o si, organiza a luta de aproximação e enfrentamento, de autonomia e sujeição, que acirra e pacifica o contato dos homens entre si e dos homens com o que lhes submete.  Será dessa etnologia que se deverá fazer uma etnografia. A revolução francesa será menos o lugar da tomada da soberania pelo “povo” e mais o lugar em que se descobre o lugar vazio da própria soberania, que pode ser ocupado ou não, e cujo desconhecimento dessa verdade a priori pode alimentar a má nostalgia do corpo do poder, de um poder incarnado. Estamos novamente às voltas com o problema do membro fantasma, que em política poderá igualmente ser chamado de “populismo”, se for tratável, em várias versões: a tentativa de preencher o lugar vazio do poder com protoplasmas, espíritos e mensagens de outro mundo, que não o nosso. Entre um e outro, naturalmente o médium, humilde detentor dessa especial comunicação.
O populismo, pois, seria o caso tratável do totalitarismo, ao que parece, por meio da terapêutica ora invocada. Vejamos, porém.  Assumindo as categorias críticas que Lefort mobiliza, é um algo óbvio que elas mantenham integridade analítica e crítica nos caso limite a que serve de descrição, os totalitarismos. A seu favor deve-se lembrar que a esquerda europeia de então, tempos idos, hegemonicamente comunista (falamos dos anos 1950, 1960 e meados dos anos 1970, o auge eleitoral dos partidos políticos pela Europa), viveu a travessia, antecipada por Merleau-Ponty, entre a adesão, aberta ou envergonhada, a crítica superficial e, finalmente, a indiferença crítica em relação aos totalitarismos do leste, de seus infelizes vizinhos europeus, e aos totalitarismos “de esquerda” nos cálculos terceiro-mundistas daquele mundo. Indiferença crítica, vale dizer: vão-se os anéis, ficam os dedos intactos das versões mais duras do “centralismo democrático”. A questão que cabe hoje é, reconheçamos, mais complexa. Seria assim tão fácil replicar o uso crítico das categorias lefortianas para toda experiência política, no momento em que a universalidade europeia está em causa (ou, talvez, sempre tenha estado)? A política moderna poderia realmente ser descrita em termos de uma investigação antropológico-transcendental do poder, a partir das revoluções americana e francesa, correlacionadas com a expansão mundial do capitalismo? Há aqui um clara opção etnológica, antidialética no limite,  contra o ardor popular e seu conteúdo, e em favor da técnica (a experiência apolítica da abstração e da desincorporação, e estamos novamente às voltas com os colarinhos brancos de Bruxelas), e por extensão, uma clara opção contra uma “cultura política popular” e suas contingências – que por óbvio, por ser contingente e, não raras vezes, não especulativa, não só podem ser corpóreas, como passam pelo corpo. Por isso, a opção mal disfarçada de Lefort, de passar de uma etnologia a uma etnografia (a inversão da ordem não é casual): seria essa estrutura elementar do poder que deve orientar nossa investigação em campo aberto, quando não caberia o objeto que define o campo e sua própria teoria? Caberia um conselho de Levis-Strauss: a melhor etnografia é a que reconhece que, em campo, se procura a ciência social do outro.  A inversão que propusemos não é ingênua: a reversão que Lefort aplica ao seu outro, no debate político de que fez parte, cabe ao próprio. Nesse caso, o que salvaguardaria o lugar vazio do poder de se tornar imperativo moral? Ainda existe essa “sociedade civil” a que ele faz referência como o avesso etnográfico de sua etnologia do poder?
Quem ocuparia o “lugar vazio” do poder em uma sociedade em que, em parte (mas há suspeitas de que não seja apenas em parte), o poder já tomou para si a produção da subjetividade e o agenciamento dos corpos?
Na falsa opção entre a burocracia de Bruxelas e os “populismos” da América Latina, qual o lugar que resta à experiência europeia, no momento em que ela se volta ao particularismo étnico?
Finalmente: diante dos restos da razão histórica a fazer a fama e a fortuna do entendimento, o que sobra, por seu turno, de crítica em Lefort? O que significa dizer, o quanto a experiência moderna da abstração e da desincorporação é capaz de mobilizar o sentido “real” (e “realista”) da política? E quando, segundo esse regime crítico, o sentido realista da política não seria o mero sentido conformista da política, na espera de mais uma revolta (irrelevante para o pagamento à vista) das subjetividades? Nesse recorte estrito, sobra a maior obra do entendimento,  a paz europeia, e o seu pressuposto mais e geral e abstrato, et pour cause, menos incorpóreo politicamente: a ideia de uma democracia ocupada com o corpo-próprio de funcionários, meio ótimo de comunicação das corporações em geral, distribuindo poder segundo a técnica e contra o ardor, conformista, e enclausurada no próprio bem-estar relativo.

***

Imagens finais

Em 1963 é lançado Le mépris, (O desprezo) de Jean-Luc Godard. Em parte, retrato da Europa que se inventa no pós-guerra, em parte reinvenção do próprio cinema. E não há reinvenção europeia que não comece pelo mito, pelos poemas homéricos. E o mito é sempre narração da narração. Daí a melhor estratégia: um filme dentro de um filme, a Europa por dentro do mito da Europa. Lá  está Fritz Lang, na posição de deus, que do olimpo observa os homens, e como tal, Fritz Lang, deus do cinema, só pode ser o próprio Fritz Lang, o mesmo que recusou filmar para os nazistas, agora dirigindo uma versão cinematográfica da Odisseia, isto é, conduz, em versão cinematográfica, Ulisses, sob a proteção de Minerva, de volta a casa que é sua, Ítaca. Godard recoloca Fritz Lang na posição simultânea de rapsodo grego e deus do olimpo. E vai além: também é um estrangeiro, em um filme falado em várias línguas – “Pois os deuses, assemelhando-se a estranhos de terras estrangeiras, sob todas as formas, visitam as cidades para verem a insolência e a justiça dos homens”.29 Está igualmente o produtor americano, Jack Palance (aliás Jeremy Prokosch), que fala apenas sua própria língua, em sentido próprio e figurado, e que permanentemente pretende mudar a rota de Ulisses, no filme e no mito. Também há o escritor profissional, presto a levar as mentiras ao mercado, Michel Piccoli (aliás, Paul Javal), a Penélope moderna, Brigitte Bardot (aliás, Camille Javal), e a casa da era industrial com sua paleta de cores primárias. O núcleo semântico do filme, por assim dizer, aquilo que melhor organiza seu material, está dado na palavra chave: a casa. O retorno à casa, a permanência na casa, o dono da casa. A Europa, casa de quem? Do mito, que não há mais. Em como os afetos transitam entre os espaços privados, e ao trazerem o mundo para dentro de casa, atestam uma máxima universal, desde a Odisseia, inscrita no espírito do Ocidente: estamos sempre voltando para casa. Quando o mundo vem para dentro da casa, Ulisses precisa viajar, a guerra de Tróia chega à Ítaca, Agamenon cobra de Ulisses sua promessa de aliança em caso de guerra. Em O desprezo, as contas a pagar, a hipoteca da casa, contamina os itinerários privados e públicos: uma vez dentro do mundo administrado, não se volta a lugar nenhum.
No trecho do filme, duas versões do retorno à casa se cristalizam: a de Fritz Lang e a de Jack Palance, o produtor americano, apoiado não sem ambiguidade por Picolli, o escritor profissional que, na ânsia de comprar e manter sua própria casa, talvez já tenha vendido a alma. Experiência mais moderna, impossível. Quem não leva a alma para vender no mercado não é homem suficientemente indigno para a era industrial da vida e seus sucedâneos. Jack Palance, homem do cinema de ação e homem de ação, sobretudo, supõe que a demora em retornar a Ítaca, da parte de Ulisses, é deliberada. Ele, Ulisses, seria o homem moderno quase por excelência, que não suporta com facilidade a vida privada, suas invenções e consequências, seu cotidiano prosaico (sem poesia), o último espaço residual da vida, vale dizer, já sem mito. É o marido usual atrasando a volta à casa, bebendo com os amigos e sonhando sonhos que já não podem ser sonhados, sonhos menores que os sonhos.
Fritz Lang discorda com serena firmeza dessa versão moderna de Ulisses, e, como deus que observa os homens, mantém sua discordância com discreta ênfase. Ulisses enfrenta as potências do estrangeiro, do alheio e do próprio mito para retornar a Ítaca. É um navegador e tem contra si Poseidon, o deus do mar. Traz o epíteto de “o sofredor”, não à toa. Mantém, contudo, uma tenacidade e astúcia de homem comum e, por isso mesmo, persistente e vigorosa, mesmo não sendo exatamente o homem comum. É um dos últimos heróis. Os últimos heróis foram os que lutaram a guerra de Tróia. Depois deles, o mundo encerrou mais um ciclo heroico.
A última sequência do filme é extraordinária, com o perdão do adjetivo. Fritz Lang filma o momento em que Ulisses avista Ítaca. Estão no set filmado Fritz Lang, Picolli, Godard figurando como assistente de Lang, e um Ulisses kitsch, com sua espada de madeira. Lang dirige a cena, e um trevelling acompanha aquele Ulisses (da ilha de Capri, baía de Nápoles) olhar o Mediterrâneo, como quem avista a casa. Até que a câmera de Raoul Coutard redimensiona a imagem dessa imagem e, tal como o olho humano, vai devorando a visibilidade da primeira câmera (cenográfica em algum sentido), aproximando-se da imagem daquele olhar, o de Ulisses, e superpondo àquele, outro olhar, o de Godard, como se o primeiro não pudesse ver e ser visto senão quando o segundo  os vê, os dois, juntos. O que vemos não é mais Ítaca, é o Mediterrâneo, o mar do mito, chamando o olhar à deriva. A Europa não se encontra (Bardot e Palance já morreram), mas reconhece o solo comum onde repousa – a guerra (também conjugal), a viagem, o retorno e a poesia. 

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O tema de O desprezo são pessoas que se olham e julgam, logo, são olhadas e julgadas pelo cinema, o qual é representado por Fritz Lang representando seu próprio papel, em suma, a consciência do filme, sua honestidade – eu rodei os planos de A odisseia que rodaram em O desprezo, mas uma vez que represento o papel de seu assistente, Lang dirá que esses são planos rodados pela sua segunda equipe.
Pensando bem sobre o filme, além da história psicológica de uma mulher desprezada por seu marido, O desprezo aparece-me como um história de náufragos do mundo ocidental, sobreviventes do naufrágio da modernidade, que chegam um dia, como a imagem do herói de Verne e de Stevenson, a uma ilha deserta e misteriosa, cujo mistério é inexoravelmente a ausência de mistério, isto é, de verdade. Enquanto que a odisseia de Ulisses era um fenômeno físico, eu rodei uma odisseia moral: o olhar da câmera sobre os personagens a procura de Homero substituindo aquele dos deuses sobre Ulisses e seus companheiros.30

 
     

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Quo vadis Europa? Em Filme socialismo, (Godard, 2011), a Europa ensaiaria poder refazer a sua viagem fundadora, mas a pretensa viagem, e já não é a de Ulisses, é completamente outra.  Inicialmente, há uma miríada de técnicas prosaicas de captação de imagem, técnicas ou quase técnicas ao alcance de todos. A vulgaridade da técnica não é gratuita, e incide no sentido da imagem captada: o fim do mistério anunciado em O desprezo se realiza completamente, na imagem pregnante de água lanosa, espessa, escura, que corre pelo casco de um cruzeiro qualquer. Esse mar tem uma densidade importante, mas é uma densidade contrária ao mistério, depois do mistério. Nem sereia, nem ninfas, nem as potências do mar: se, antes, Ulisses, em O desprezo ainda procurava, em cinemascope,  avistar Ítaca no último plano do filme, uma Ítaca que já não havia, agora não há mais Ulisses nem sua procura, a imagem se esvazia de qualquer promessa, mesmo vã: tudo se resume ao mar sem mito em que um cruzeiro kitsch domestica a poupança dos europeus, filmado em vídeo e celular, em navio apinhado de aposentados, a ocupar o tempo livre com a mais cabal falta de mistério e de verdade. Como redescobrir a Europa, agora que ela nada mais é? A resposta oblíqua: pela periferia, que a definia: onde está Bizâncio, é longe daqui?, diz alguém perambulando pelo espaço completamente administrado do Cruzeiro Europa. O que foi feito de Bizâncio é o que foi feito de Tróia, da Palestina, da Rússia, de Espanha e Portugal, do Oriente Médio, da Síria e do Líbano? Da periferia ao centro, a pergunta pela Europa muda de corte. A Europa da geometria e seu espírito (Paul Valéry, quase ministro de Pétain?) é a Europa da origem e da invenção da origem, ainda que nada de original seja europeu. Ocorre que a Origem da Geometria (de Euclides a Husserl) deixa de ser geratriz – a lógica da figura – para ser fronteira – o que não tem nossa origem. A Europa não redobra sua história, não recobra a si mesma, olhando quem olha o mito (o pensamento selvagem). É o reconhecimento que o mito se esgotou e com ele a Europa, a única viagem possível é a viagem do dinheiro, pelo Banco Central Europeu e por outros canais ancestrais, a única aventura é a do ouro, e ele não educa nem encanta, no sentido antigo ou no novo, ele ilude quando pouco, violenta, quando muito. Não há astúcia, nem há retorno à casa. A casa foi substituída pelo cruzeiro, mil línguas não familiares e a sensação de conforto é o conforto material da produção em massa de bens de consumo. A Europa esvaziou-se de si mesma. Só há a paz da vida vegetal da abstração. A Europa é um cruzeiro kitsch, incapaz de ver que suas fronteiras continuariam Europa (a Palestina) do outro lado do Mediterrâneo, da geometria à álgebra, se Europa ainda houvesse.

Bibliografia

MERLEAU-PONTY, M.,  OEuvres, Gallimard, Paris, 2010.

MERLEAU-PONTY, M., Les aventures de la dialectique, Paris, Gallimard, 1955.

MERLEAU-PONTY, M., Humanisme et terreur, essai sur le problème communiste, Idées/Gallimard, Paris, 1947.

MERLEAU-PONTY, M., Signes, Paris, Gallimard, Edição de Bolso, 2001.

PROUST, M. À la recherche du temps perdu, Albertine disparu, Paris, NRF, Gallimard, 1989.

MARX, K., Sobre a questão judaica, São Paulo, Boitempo Editoral, 2010.

LEFORT, C., A invenção democrática, trad. Isabel Loureiro, São Paulo, Brasiliense, 1985.

LEFORT, C., Sur une colonne absente, Paris, Gallimard, 1978.

JUDT, Tony. Pós-guerra. Uma história da Europa desde 1945. Editora Objetiva, trad. José Roberto O’Shea, Rio de Janeiro, 2008.

COHN, G., Crítica e resignação, São Paulo, Martins Fontes, 2003.

GODARD, J.-L., Les années Karina, Paris, Champs/Flamarion, 1985.

HOMERO, Odisséia, trad. Frederico Lourenço, Penguin&Companhia, São Paulo, 2011.

FAUSTO, R., Sentidos da dialética. Marx: lógica e política, Petrópolis, Vozes, 2015.

FAUSTO, R., “Dialética, estruturalismo, pré(pós)-estruturalismo”. In: Dialética marxista, dialética hegaliana: a produção capitalista como produção simples,  Editora Brasiliense, São Paulo, 1997.

FAUSTO, R., Sur le concept de Capital. Idée d’une logique dialectique. Paris, L’Harmattan, 2004.

 

 
    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ

1 MERLEAU-PONTY, M., Les aventures de la dialectique, Paris, Gallimard, 1955.

2 Idem, ibidem, p. 15.

3 Idem, ibidem, p. 308.

4 Idem, ibidem, p 9.

5 “Mas o que é esse fim da história, que alguns fazem tudo depender? Supõe-se uma certa fronteira a partir da qual a humanidade cesse enfim de ser um tumult insensato e retorne à imobilidade da natureza. Essa ideia de uma purificação absoluta da história, de um regime sem inércia, sem acaso, sem riscos é o reflex invertido de nossa angústia e de nossa solidão.  (…) Marx não falava de um fim da história, mas de um fim da pré-história.”, idem, ibidem, p. 12.

6 Idem, ibidem, p. 11.

7 “Não se notou suficientemente que no momento mesmo em que ele [Sartre] parecia retomar a ideia marxista de uma critério social da literature, Sartre o fazia em seus termos, os mais próprios, e que dão a historicidade nele um sentido absolutamente novo.  Em “O que é a literature?”, o social nunca é causa, nem mesmo motivo, nunca está atrás da obra, ele não pesa nela, ele não dá a ela nem explicação nem desculpas. Ele está diante do escritor como o meio ou como uma dimensão de sua visada.” Idem, ibidem, p. 228. 

8PROUST, M. À la recherche du temps perdu, Albertine disparu, Paris, NRF, Gallimard, 1989, p. 79.

9 MARX, K., Sobre a questão judaica, São Paulo, Boitempo Editoral, 2010.

10 LEFORT, C., A invenção democrática, trad. Isabel Loureiro, 1983, Brasiliense, p. 53.

11 MERLEAU-PONTY, M., Humanisme et terreur, essai sur le problème communiste, Idées/Gallimard, Paris, 1947.
“Nós ensaiávamos, no dia seguinte a guerra, formular uma atitude  de attentisme marxista (contemporização marxista, nota de AOTC). Parecia-nos visível  que a sociedade soviética estava bastante longe dos critérios revolucionários definidos por Lênin e que a ideia mesma de um critério de compromisso válido teria sido abandonada, que, em consequência, a dialética ameaçava  se tornar a identidade simples dos contrários, isto é, ceticismo. Um comunismo completamente voluntarista aparecia, inteiramente fundado na consciência dos chefes, renovação do Estado hegeliano e não perecimento do Estado. Mas, qualquer que seja a “grande política” soviética, nos observávamos que a luta dos partidos comunistas é também, em outros países, a luta do proletariado, e não nos parece impossível que ela fosse, por isso, reconduzida às vias da política marxista. A URSS não é, dizemos, o poder do proletariado. Mas a dialética marxista continua a operar pelo mundo. Ela se compartimentou quando a revolução  se limitou a um país subdesenvolvido. Mas se a sente presente nos movimentos operários da Itália e da França.” MERLEAU-PONTY, M., Les aventures de la dialectique, Paris, Gallimard, 1955, p. 334.

12 “A crescente rede de alianças, agências e acordos internacionais propiciava pouca garantia de harmonia internacional. Tirando proveito da perspectiva histórica, podemos hoje perceber que o Conselho da Europa, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a União Europeia de Pagamentos e, principalmente, a Organização do Tratado do Atlântico Norte foram o embrião de um sistema nova e estável de relações interestatais. Documentos como a Convenção pela Proteção dos Direitos Humanos, instituído pelo Conselho da Europa em 1950, haveriam de adquirir um significado duradouro nas décadas seguintes. Porém, na época em questão, esses documentos, tanto quanto as agências que os publicavam , assemelhavam-se às alianças e ligas bem-intencionadas (e condenadas ao fracasso) da década de 1920. Os contemporâneos mais céticos tinham motivos para prestar pouca atenção em tais documentos.
Todavia, com a morte de Stalin e o fim da Guerra da Coréia, a Europa Ocidental se viu, subitamente, numa era de extraordinária estabilidade política.”
JUDT, Tony. Pós-guerra. Uma história da Europa desde 1945. Editora Objetiva, trad. José Roberto O’Shea, Rio de Janeiro, p. 252.

13 “Quel que soit , la stagnation révolutionnaire dans le monde et la tactique des Fronts populares ont trop profondément modifié les prolétariats, le recrutement et la formation théorique des partis communistes, pour que l’on puisse attendre à brève échéance un renouveau de lutte des classes à visage découvert, ou même proposer aux militants des mots d’ordre révolutionnaires qu’ils sentiraient pas. Au lieu de deux facteurs clairement circonscrits, l’histoire de notre temps comporte donc des mixtes, une Union soviétique obligée de composer avec des États bougeois, des partis communistes ralliés à la politique des Fronts populares ou, comme en Italie, arrêtés dans leur développement prolétarien par les incidences de la “grande politique” soviétique, des partis bourgeois incapables de définir une politique économique cohérente, mais, dans les pays affaiblis, conscientes de leur impuissance et vagamente acquis à un “revolutionnarisme” qui peut les conduire à des ententes momentanées avec la gauche”, MERLEAU-PONTY, M., “Pour la vérité”, OEuvres, Gallimard, Paris, 2010, p. 147.

14 MERLEAU-PONTY, M., Les aventures de la dialectique, “La crise de l’entendement”, p. 17, Gallimard, Paris, 1955.

15 Idem, ibidem, p. 19.

16 “De um modo oposto aos dois modelos teóricos que examinamos anteriormente, Max Weber faz da ação o objeto social por excelência (embora para ele nem toda ação  seja social): “(…) [o] objeto específico [da sociologia compreensiva] não consiste em qualquer ‘diposição interior’ ou comportamento externo, mas na atividade (Handeln)” (Weber, 59, p. 429; idem 56, p. 305; grifado pelo autor). “(…) tanto a sociologia  como a história fazem acima de tudo interpretações  de caráter ‘pragmático’ a partir de encadeamentos compreensíveis da atividade” (id., ibid.). A ação pode ser coletiva, mas toda ação coletiva é de direito redutível a uma pluralidade de ações individuais. Para Weber, é um “fato elementar” “que a realidade só convém ao concreto, ao individual (Individuel) (id., ibid., p. 225). ““Para nós, não pode haver atividade (Handeln) no sentido de uma orientação significativamente compreensível do comportamento próprio, senão sob a forma de um comportameto de uma ou várias pessoas singulars (einzelnen)” [Weber] O que existe para além da realidade constituída pelas ações singulares? [O autor está resumindo a posição de Weber]. Há por um lado as regras sociais, cujo estatudo ontológico é problemático, e que de qualquer forma não são o objeto da sociologia, mas da ciência juridica. Por outro lado, a partir das ações como realidades que em última instância remetem sempre ao singular, pode-se e deve-se construir os tipos ideais. Mas os tipos ideais não são estruturas objetivas, e isto porque nem são estruturas nem têm objetividade. Os tipos ideais não “desdobram” a realidade como as regras de uma língua, à maneira do estruturalismo, ou como uma segunda linguagem, à maneira da dialética. Eles são formas puras ou purificadas do real.”, FAUSTO, R., Dialética marxista, dialética hegaliana: a produção capitalista como produção simples,Dialética, estruturalismo, pré(pós)-estruturalismo”, pp. 146-147. Editora Brasiliense, São Paulo, 1997.   

17Que se veja também o seguinte:

18“Assim, não há atributos intrínsecos aos fenômenos que permitam o seu conhecimento pleno através das supostas evidências ensejadas por alguma forma de captação intuitiva. Definitivamente, e isso nunca será demais enfatizado, a compreensão não diz respeito às personalidades dos agentes, muito menos a quaisquer “vivencias”, mas às suas ações. A Weber não interessa a vivência dos sujeitos, mas sua experiência. Vale dizer, também não lhe interessam suas ações de per si, mas sim o estabelecimento de nexos causais entre várias ações do mesmo agente (típico) ou entre as ações de vários sujeitos diversos, nem mesmo contexto. Daí a importância, nesse ponto, do conhecimento “nomológico” do pesquisador, pois o que importa é transcender a ação singular como puro evento. Daí também a importância dos procedimentos envolvidos no tipo, pois do contrário não há como transcender a pura realidade empírica vivida, que é um fluxo inesgotável de eventos singulares (um “contínuo heterogêneo” para usar a linguagem de Rickert, que aqui cabe). Tomado de per si o universo dos eventos singulares é puramente contingente; mas, mas como os homens criam valores e são capazes, em função desses, de atribuir significado à sua conduta, está aberto o caminho não só para a racionalidade da ação como também para seu conhecimento  pelas vias racionais próprias ao método científico”. COHN, G., Crítica e resignação, p. 123. São Paulo, Martins Fontes, 2003.

19 Op. cit., p. 137 e ss.

20 Vejamos. “L’idée générale qui, bien entendu, venait de Hegel, était que, à la différence de ce qu’on trouve dans la logique formelle, le jugement devait être pensé, en general, comme un mouvement de réflexion (pouvant ausse se présenter, comme nous le verons, comme non réflexion) du sujet dans le prédicat. Dans la première forme ainsi dégagée, que nous désignions comme “jugemnt de réflexion”, forme canonique en quelque sorte, le sujet est présupposé et se réfléchit dans un prédicat qui, seul, est posé.”, FAUSTO, R., Sur le concept de Capital. Idée d’une logique dialectique. Paris, L’Harmattan, p. 8.

21Seguimos: “Dizíamos que do ponto de vista dialético, como também, mas em sentido diferente, para o estruturalismo, o social pode ser pensado como análogo da linguagem. Dizer que o social para a dialética é análogo a uma linguagem entendida como fluxo de significações é supor que o social é pensável em termos de juízos.”  FAUSTO, R., Dialética marxista, dialética hegaliana: a produção capitalista como produção simples,Dialética, estruturalismo, pré(pós)-estruturalismo”, p. 153. Editora Brasiliense, São Paulo, 1997.

22 Idem, ibidem, p. 40.

23 FAUSTO, R., Sentidos da dialética. Marx: lógica e política, p. 56, Petrópolis, Vozes, 2015.

24 MERLEAU-PONTY, M., Les aventures  de la dialectique, “Sartre et le ultra-bolchevisme”, p. 143. Paris, Gallimard, 1955.

25 MERLEAU-PONTY, M., Signes, Paris, Gallimard, Edição de Bolso, 2001, p. 343.

26 Idem, ibidem, 344.

27 Idem, ibidem, p. 355.

28 LEFORT, C., Sur une colonne absente, Paris, Gallimard, 1978, p. 52.

29 Idem, ibidem, p. 354.

30 LEFORT, C., A invenção democrática, trad. Isabel Loureiro, 1983, Brasiliense, p. 76.

31 Idem, ibidem, p. 76.

32 HOMERO, Odisséia, trad. Frederico Lourenço, Penguin&Companhia, São Paulo, 2011, Canto XVIII, 480, p. 420.

33 GODARD, J.-L., Les années Karina, Paris, Champs/Flamarion, p. 87.