revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

José A. Lindgren-Alves

 

Principismos que corroem a luta pelos direitos humanos

 


No início de 2015, caminhando nas Ramblas de Barcelona, vi na camiseta de uma jovem frase que resume a atuação da chamada “esquerda liberal”contemporânea: I don’tthink, I feel (eu não penso, eu sinto). Assim mesmo, em inglês, na capital da nacionalista Catalunha, como convém num mundo globalmente americanizado, a frase – nesse casocomambiguidadeprovocante –,reflete a derrota do racionalismo no cenário cultural contemporâneo. O que conta não é a Razão, antes criticada com gênio demolidor construtivo pela Escola de Frankfurt, mas suatotal substituição pela intuição afetiva como força propulsora à ação. Essa era a postulação que já fazia havia décadas, comsofisticadas construções intelectuais, o “pensamento pós-moderno”,em defesa das mulheres contra o patriarcado,e das minorias contra as maiorias dominantes. O raciocínio lógico, indutivo, juntamente com o humanismoilustrado, não espiritual, seriainstrumento epistemológico de dominação do homem branco ocidental, por definição machista, “homófobo”, racista, colonialista e opressor. Aafeição, instintiva, sensorial, dita“feminina” –não creio que pelas feministas –, seria fonte mais eficaz de conhecimento e empatia para assegurar os direitos da família humana.
Sem precisar recorrer ao que isso pode significar como incentivo aos fundamentalismos, não deixo de recordar que em 2015, quando li a frase no corpo esbelto da passante,foi o ano “midiaticamente inaugurado” pelo atentado contra o Charlie Hebdo em Paris, para não falar de ações congêneres do terror dito djihadistadentro do mundoislâmico. Relembro também, na mesma sintonia, a ingenuidade dos “analistas” que, desde 2011, interpretavam as revoltas populares com brados de “Allah-u-akhbar!” (Deus é grande! Ou Alá é maior?) a cada disparo, como “Primavera Árabe” no caminho da democracia –por comparação, talvez, com a Primavera de Praga, de 1968, que tentava construir o “socialismo com face humana”, abortado pelas tropas soviéticas. Recordo ainda, em outro registro, as cenas dejovens em protestos na Espanha, em fins de 2014,contra o sacrifício docão de uma enfermeirarecém-regressada de zona africana do ebola,diagnosticada como vírus eisolada após diasde convivência com o animal. Pouco interessava se “Excalibur”, o pobre cachorro, “batizado”com o nome da espada mágica do Rei Artur, pudesse constituir veículo de propagação da epidemia. Esta já matara mais de 20.000 pessoasna África Ocidental e parecia, então,estar ingressando na Europa. Para os manifestantes, em embates aguerridos com a polícia, o direito dos animais devia estar acima dos direitos à saúde e à vida dos humanos.
O simplismo ideológico, amplamente difundido pelos meios de comunicação, é um dos ingredientes que mais afetam, hoje em dia, a defesa dos direitos humanos. Tanto pelo irrealismo que propicia ao trabalho de militantes, como porque, acomodadopor todos os que temem ser malinterpretados, é acobertado pelo paternalismo dos outros. Não ganham nada as vítimas de agressões, enquanto perde a categoria dos direitos humanos, excessivamente utilizadoscomo rótulo. Os efeitos podem ser desconcertantes. Apenas para ilustrar com exemplosque acompanhei de perto, posteriores a 2015, portanto após a comemoração dos cinquenta anos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial celebrada naquele ano,descrevo aqui trêsmomentos recentes do CERD, seu comitê de supervisão, de que sou membro desde 2002.
Na sessão de agosto de2016, a relatora especial temática para minorias, do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, ela própria militante roma da Hungria, foi convidada a falar para o Comitê sobre seu trabalho. Descreveu suas viagens de inspeção a diversos países, expressando opiniões sobre o que havia visto como discriminação contra grupos minoritários, em particular comunidades ciganas de denominações variadas. Havendo antes mencionado muitos atos discriminatórios concretos – uso de força desnecessária para a remoção de acampamentos, não recebimento dascrianças em escolas locais, dificuldades de acesso a serviços de saúde pública etc. –, referiu-seà situação dosromano Brasil. Segundo ela, sua“invisibilidade” seria grave sinal de discriminação, assim como a não identificação das pessoas comessa etnia de origem em virtude deintegração na sociedade local. Ninguém do Comitê teceu comentário. Quando a relatora finalmente descreveu uma escola visitada na Nigéria, onde as crianças se reconheciam somente como nigerianas, tendo elainsistido em que assumissemas respectivas origens ibo, hausa,iorubá etc., um dos peritos, advogado libanês, reagiu de maneira franca. Perguntoua ela em quê as crianças saíam ganhando com isso. Pois a própria relatora acabara de contar, com ar de satisfação, que, após seu esforço pedagógico de “conscientização”,as crianças de etnias originais diferentes já começavam a brigar entre elas (sic, tofight). A pergunta do perito,que, ademais da experiência de conflitos etnorreligiosos em Beirute, estivera examinando a questãode perto, no Iraqueesfacelado e na Síria, com guerra de facções exterminadoras e ameaças da região e de fora, não foi respondida.
Caso assemelhado de principismo contrário aos direitos humanos ocorreu na sessão de inverno de 2017, a respeito da Bulgária pós-comunismo. Havendo sido o informe do governo objeto de apresentação aos colegas pelo membro paquistanês, na qualidade de relator, este circulou anteprojeto de recomendações ao Estado-parte, com parágrafo que lamentava a alegada falta de representação política de minorias, em particular dos turcos e dos roma. E cobrava medidas, não especificadas, que a assegurassem, inclusive na Assembleia Nacional.Tendo eu vivido em Sófiade 2002 a 2006 como embaixador e observado a política local de perto, até por razões de ofício, a ideia me pareceu descabida. Expliquei as razões aos colegas.
Em contraste com as imposições assimiladoras do regime anterior, no Estado búlgaro democratizado,a minoria turca, única formalmente reconhecida, correspondente a 10 % da população total, não somente tinha partido próprio, como participava do governo em aliança que sustentava o primeiro ministro. Se a coalizão agora não estava mais no poder, era porqueseus candidatos haviam perdido a maioria, em eleições regulares. A propósito dos roma, observei que, em geral, eram realmente muito pobres, como se firmava, mas, pelo que eu pudera verin loco,eles não eram os únicos. Individual ou coletivamente, mais miserável e difícil era a situação dos idosos sem etnia especial nem comunidade diferente, subitamente desprovidos do mínimo de segurança social que o sistema anterior lhes propiciava. Nada disso era de surpreender, na medida em que a Bulgária havia sido e ainda era um dos países mais pobres da Europa. Assinalei, por outro lado, que meu cardiologista em Sófia, de origem roma assumida, era conhecido e respeitado dono de clínica moderna. Se quisesse candidatar-se a cargo eletivo, poderia fazê-lo e exercê-lo como qualquer cidadão. Assim como agiam outros búlgaros, de origem variada: judaica, como o então Chanceler SolomonPassy;macedônia como o Embaixador Draganov, segunda autoridade no Ministério dos Negócios Estrangeiros;ou alemã como o então primeiro ministro, Simeon de Saxe-CoburgGotha, que fora reiem criança, na velha monarquia,deposto e exilado em 1945, e que havia regressado no novo regime liberal para ser candidatoao Parlamento.
Nada do que eu disse lá, nem aqui, pretende insinuar que inexistam discriminações na Bulgária. Ao contrário, elas sempre existiram e vêm agora adquirindo características agravadas, contra osromae contra muçulmanos em geral, inclusive turcos, diante das ondas de imigração da presente década. A isso se referiam exaustivamente outras recomendações para as quais eu não tive objeções. Sobre os roma, em particular, o CERD concentra, aliás, regularmente, grande parte das observações e propostas, por conta própria e para reforçar estratégias de inclusão social elaboradas por outros órgãos. Meus reparos eram focalizados na proposta de representação política grupal, vista como “adequada”, implicando reserva de assentos e vagas para representantes de identidades específicas, em detrimento do conjunto “não étnico” da cidadania. Não deixa de ser curioso observar, a propósito, que os clãs romanis na Bulgária, como na maioria dos demais países, não criam associações abrangentes, nem designam indivíduos com representação política coletiva. Segundo estudiosos da matéria, não o fazem porque isso corresponderia a uma descaracterização da cultura própria, a meio caminho da assimilação rejeitada. O que não impede, entretanto, que maximalistas destoantes, em atitude paradoxal contrária, insistam em cobranças modernizantes, não a eles, roma, gitanos ou “viajantes”, mas aos Estados onde os nômades se encontrem.
Politicamente mais preocupante, no caso da Bulgária, é notar que a outra “identidade étnica” na mente dos defensores de minorias é a dos macedônios. Reconhecida pelo Estado búlgaro como “grupo étnico” integrante dapopulação total, como os russos, armênios, ucranianos, alemães e gregos,os mil e poucos indivíduosmacedônios realmente não são reconhecidos como “minoria étnica”, conforme desejariam o “BulgarianHelsinki Watch” e, segundo esse observatório extraoficial, o Conselho da Europa.1 Historicamente insurretos, organizados em partido nacionalista regional unificante, o VRMO2 , conhecido internacionalmente porsuas táticas terroristas, os macedônios atuais, descendentes dos rebeldes, residentes nas montanhas Pirin e redondezas balcânicas, são cidadãos ordeiros. Falam entre si uma língua pouco diferente, que a Bulgária encara como búlgara, sem dificuldade de comunicação com os demais. Pelo que tive ocasião de comprovar, na década passada, acolhem bem os turistas e estudantes da Universidade Americana da Bulgária, que leciona em inglês, para bolsistas de diversos países, inclusive da América Latina, na cidade provincial de Blagoevgrad. Seus habitantes trabalham e ocupam qualquer função, pública ou política, como búlgaros, que também são. Com exceção de algumas lideranças domésticas, quem estimula a identidade distinta e, por extensão, o separatismo romântico,nacionalista étnicoanacrônico, são entidades situadas no exterior.
Seja porque o relator do CERD se inspirava em seu próprio país,a República Islâmica do Paquistão, separado da Índia em função da religião e com toda a sociedade criteriosamente dividida em comunidades, seja porque os direitos coletivos dequaisquer minoriassão hoje tratados como tabuessencialista pós-moderno, a insistência na ideia de representação grupal se manteve. Expurgada de referências nominaisespecíficas e um pouco atenuada na forma, a recomendação foi aprovada “por consenso”, nos seguintes termos:
“16.(...) preocupa o Comitê a limitada representação de grupos minoritários no parlamento e no serviço público.
17. (...) o Comitê recomenda que o Estado-parte tome medidas concretas para garantir que grupos étnicos minoritários sejam adequadamente representados no parlamento e no funcionalismo civil”.3

Será que essa recomendação do CERD, em 2017, virá a ser lida por membros de partidos xenofóbicos, como os ultranacionalistas do “Ataka”? Espero sinceramente que não. Com fronteiras já pouco permeáveis, cercas de arame farpado, medidas de contenção agressivas e milícias paramilitares violentas contra a imigração muçulmana, a geografia põe a Bulgáriana linha de frente da União Europeia, perante candidatos a refúgio procedentes da Ásia Central, pelo Mar Negro, e da “Ásia Menor”, por terra. O que é forçadamente proposto para elevar a representatividade política dos roma e dos turcos, além de fornecer munição externa àqueles que são contra eles, pode dar novos argumentos às barreiras anti-imigração e à crispação nacionalagressiva, que hoje se acentuam no mundo. 
Por fim, para comprovar meus temores do simplismo inconsequentena área dos direitos humanos, registro um terceiro momento, também significativo, da mesma sessão do CERD, em 2017. O fato, com inversão de papéis, ocorreu a propósito do Quênia, país de população retalhada por etnias em conflito, que o velho colonialismoencampou, o integracionismounilateral não resolve, e o multiculturalismo presente nunca pretendeu superar.
A apresentação do relatório queniano e seu exame ocorreram sem percalços, precedidos pela habitual formulação de reivindicações por militantes, todos os quais, nesse caso, eram representantes de pastores considerados autóctones. As postulações foram apresentadas por homens e mulheres vestidos de roupas típicas, coloridas. Dentre as mulheres presentes, uma delas colocou sobre mesabem visível exemplares de revistas com fotografias atraentes de pessoas em trajes tribais, com colares e outros enfeites de contas.Terminada a sessão de uma sexta-feira à tarde, peguei duas das revistas para folhear no hotel. Qual não foi minha surpresa ao reparar que as publicações não eram turísticas! Descreviam costumes exóticos, mas, longe de o fazerem para atrair visitantes, continhamapelo evidente, um pedido de socorro contra práticas terríveisainda realizadas em mulheres das tribos. Uma das publicações chamava-se, em tradução aproximada, “Beading (colocação de contas coloridas como colar) –o vício dos samburus de que ninguém fala”.4 Meninas a partir dos nove anos são segregadas como “noivas” que não se podem casar, em cabanas especiais,onde ficam à disposição de jovens “guerreiros” para uso sexual exclusivo, sempre que lhes aprouver. Caso engravidem, devemobrigatoriamente abortar, pois “guerreiros” não podem ter filhos. A prática do beading, a que se associa a mutilação genital feminina, é descrita por mulher samburuque conseguira escapar já grávida, tendo recorrido a abrigo de missionários cristãos. Impressionou-me especialmenteo registro de que, apesar de proibição legal existente, os anciãos das tribos, reunidos como autoridades máximas, teriam decidido não seguira proscrição estatal.
Conquanto consciente de que o exame do relatório do Quênia se havia encerrado, ainda faltando, porém, a adoção de recomendações, decidi levantar o assuntoem plenário. Opinei que o Comitê não poderia ignorá-lo, sob o risco de parecer complacente. E que a complacência com matéria tão chocante representaria uma forma de discriminação. A mulher que pusera as publicações à vista de todos provavelmente necessitava de auxílio. Se não mencionara oralmente a questão, talvez fosse porque os homens presentes podiam ser “guerreiros” ou “anciãos”. Recordei precedentes em que assuntos não discutidos antes haviam gerado recomendações contundentes do CERD, não havendo regra de procedimento em contrário.
A questão pareceu impressionar os colegas. Com base nessa impressão, propus – um pouco como teste –um projeto de recomendaçãocuidadoso. No formato de praxe, o texto, em dois parágrafos, falava da preocupação com a persistência de práticas tradicionais contrárias à saúde e aos direitos da mulher em grupos pastoralistas do Quênia, para, em seguida, dizer:

   
 

 

Tendo em conta que a negligência perante essas práticas equivale a discriminação étnica, o Comitê solicita ao Estado-parte que procure cautelosamente os anciãos dessas comunidades (...)  para convencê-los a abolir com urgência obeadingde meninas, prática que viola não somente a legislação queniana, mas também normas internacionais obrigatórias de direitos humanos universais. 5

 

Por mais que todos os colegas de comitê declarassem respeito por minha iniciativa, a proposta não foi aceita. A alegação, esperada, era de que não podíamos adotar recomendação sobre questão não debatida. Alguns propuseram, alternativamente, que a preocupação com o assuntofossetransmitidapela presidência do CERD à presidência do CEDAW (Comitê de tratado equivalente para a situação da mulher). Acredito até que isso possa ter ocorrido. Mas nada, em meu entender, compensa a omissão do CERD nesse caso.
Mais do que a extemporaneidade da proposta, pouco mais do que meramente simbólica, tenho a impressão de que a razão da rejeição era outra. Neste caso, tal como dizia a frase na camiseta da menina em Barcelona, ”eu não penso, eu sinto” (I don’tthink, I feel). Pelo que intuo da experiência de mais de quinze anos nesse comitê “de peritos”, a maioria dos colegas entende que criticar uma minoria é sempre politicamente incorreto.Qualquer objeção à prática não ocidental é vista comosinal de intolerância com a cultura respectiva.Reações desse tipo abundam, começando com a questão do “véu islâmico”. Em consequência disso,desse paternalismoeurocêntrico,pode-se dizer, em analogia como outro episódio mencionado, que o CERD, com os jovens manifestantes da Espanha,optou por não sacrificar o cachorro Excalibur, apesar da comprovação de que o animalportava vírus do ebola. Com base num formalismo de órgão cujas regras são em geral maleáveis, evitou-se uma recomendação necessária, um gesto de apoio expressivo à erradicação do beading como“endemia”.
O caso das crianças da Nigéria é mais comum: a ideologia atual das diferenças separa sem qualquer razão aqueles que estavam unidos. Pouco importa o que se possa ganhar com isso. Felizmente, no Brasil, a maioria dos roma se integra e vai continuar integrada. Nos Bálcãs, porém, é diferente. Estimular nacionalismos latentes é repetir alhures os erros do fim da Iugoslávia, as guerras da Croácia e da Bósnia, a independência do Kossovo, o bombardeio da Sérvia. Insistir em representações políticas comunitariamente exclusivasem Estado integrador democráticoé aumentar os riscos de repressão violenta a todos os grupos vulneráveis.

 

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ



1 V. Bulgarian Helsinki Watch, Written comments concerning Bulgaria for consideration by CERD at its 92nd Session, March 2017, pp.19-20 (v.CERDna homepage do OHCHR.org).

2 Iniciais de Movimento Revolucionário Interno da Macedônia em sua língua, escrita em alfabeto cirílico. O VMRO ainda existe, legalmente, na República da Macedônia (FYROM para a ONU), e, segundo a ONG Helsinki Watch, tambémnaBulgária, onde promove agressões para “limpar o país” de culturas diferentes (id. Ibid.).

3 Committee on the Elimination of Racial Discrimination, Concluding observations on the combined twentieth to twenty-second periodic reports of Bulgaria, doc. CERD/C/BGR/CO/20-22, 31 May 2017.

4 Tento traduzir de memória, pois, a pedido de colegas interessados, deixei com eles os exemplares que havia recolhido. Podem-se encontrar referências abundantes no Google, em “samburubeadingkenya”.

5 Guardo cópia impressa, até hoje, do texto digitalizado que propus.