revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Arthur Hussne BERNARDO

"Levar aos livros o que se aprendeu na pele": comentário sobre um texto de Fernando Haddad na revista piauí

 


Em meio a um ataque cerrado da mídia e do judiciário e de uma crise sem precedentes de seu partido e da economia do país, Haddad se saiu bem na administração de São Paulo. Combate à corrupção, responsabilidade fiscal, negociação da dívida do município, boas políticas de mobilidade urbana, humanização no tratamento dos usuários de crack. Não foi reeleito, é verdade, mas fez uma gestão que, apesar de ter recebido críticas justas - por exemplo em relação ao tratamento dispensado em dado momento à população de rua -, deixou boa impressão para muitos. É por despontar como nome forte dentro do partido, e mesmo como possível candidato às eleições presidenciais, que interessa debater a avaliação que Haddad faz do PT e da política nacional.

Dentro do campo petista, estamos diante do quadro político e intelectual que foi mais longe na apreciação crítica do partido: julgamento negativo da política econômica do governo Dilma; avaliação positiva dos avanços institucionais contra a corrupção; percepção da insuficiência dos programas redistributivos para resolver os problemas sociais; reprovação do discurso adotado para a campanha eleitoral de 2014; ponderação sobre a falta de controle e de transparência nas empresas estatais. É essa postura crítica em relação ao próprio partido que permite a Haddad traçar uma interpretação mais nuançada e complexa da conjuntura recente. Essa leitura aparece sistematizada na extensa narrativa política elaborada em forma de artigo para o número 129 da revista Piauí.

Amplamente discutido, o verdadeiro tour de force do ex-prefeito trouxe para o centro da esfera pública brasileira um debate de qualidade, suscitando um número tão impressionante de reações - tanto negativas quanto elogiosas - que, a certa altura, parecia impossível emitir um parecer ponderado, tamanha a quantidade de textos que circulavam em torno do artigo. Talvez agora, passado um primeiro momento de intensa profusão de opiniões, seja mais plausível voltar a um ou outro tema abordado naquele texto. Apesar de muitas concordâncias, escrevo para expor contrapontos a algumas das ideias e dos desenvolvimentos presentes naquele artigo.

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"Vivi na pele o que aprendi nos livros": o tom evocado pelo título é o do teórico que vai à Cidade, ou, em termos modernos, do acadêmico que vai ao Estado. Para essa jornada, ele leva consigo sua bagagem intelectual - o que leu. É então na experiência do cotidiano que ele percebe como o vivido confirma visceralmente aquilo que havia estudado. O subtítulo - "um encontro com o patrimonialismo brasileiro" - é o ponto de convergência entre a teoria e a prática, a segunda confirmando a primeira.

Na teoria, em alguns artigos do final dos anos 90 e começo da década seguinte, Haddad havia diagnosticado com precisão que o conceito de patrimonialismo não se tornara inoperante para compreender a realidade nacional. Não o considerando como um resíduo pré-moderno da cultura ibérica, mas, sim, uma realidade material palpável, Haddad mostra como as elites políticas e econômicas se apropriam do fundo público em detrimento das necessidades da população. Aponta-se, assim, para uma outra contradição - que se soma àquela entre capital e trabalho - das sociedades modernas:  entre o Estado, comandado por políticos profissionais, e a sociedade civil, composta pelos demais cidadãos, não há necessariamente uma convergência de interesses.

Na prática, houve algum momento no Brasil dos últimos anos em que se tentou afrontar esse patrimonialismo moderno e a blindagem do sistema político? Se sim, ele passa necessariamente por junho de 2013. Haddad escreve que se encontrou com o patrimonialismo, mas por que o PT - o ex-prefeito incluso - faltou ao encontro do combate ao patrimonialismo? Não é preciso idealizar junho para perceber que a interpretação dos petistas - até mesmo dos melhores - parece limitada. Haddad não chega a dizer que 2013 foi o "ovo da serpente", mas apresenta a opinião corriqueira de que "junho de 2013 foi o estopim do impeachment". Nessa linha, ele tem para si que o impeachment não teria existido caso não tivessem ocorrido as manifestações de junho. Enxergá-las, porém, como uma antecipação da queda da presidente é não apenas fazer uma projeção anacrônica e uma interpretação teleológica, mas traçar uma continuidade exagerada entre os eventos – esquecendo-se que, apesar de tudo, Dilma foi reeleita em 2014. 

É inegável que a direita soube se aproveitar da energia liberada em junho para inovar nas formas de manifestação e canalizar a revolta para construir a base social que daria sustentação ao impeachment, o que mostra como é forçoso admitir ao menos alguma continuidade entre 2013 e a deposição da presidente. Dito isso, o problema é acreditar que (i) essa continuidade tenha sido necessária, havendo uma causalidade inevitável ligando os protestos à derrubada de Dilma e que (ii) as condições que levaram ao impeachment tenham nascido em 2013.        


(i) É provável que em junho tenha se aberto uma oportunidade para formar uma base social capaz de levar adiante o programa de avanços sociais, evitando que essas forças fossem canalizadas pela agenda retrógrada da direita. Historicamente, o PT se formou e se apresentou como um partido capaz de romper com o elitismo e o autoritarismo da política brasileira, mas à medida que se aproximava do poder - e em especial depois de conquistar o executivo federal - ele passou a ser dirigido por uma burocracia preocupada com os ditames da governabilidade, esvaziando progressivamente sua capacidade de transformação social e política e ajudando a blindar, em nome de alguns avanços, um sistema político podre. Tendo em vista essa degeneração do partido, as revoltas também se projetaram contra o fato de que aparentemente o PT já não se diferenciava mais do restante do sistema político. Junho - movimentação um tanto confusa, estranha, indiferenciada - procurou afrontar o sistema político como um todo, o establishment político que, a essa altura, incluía também o PT. Ainda assim, isso poderia ter sido usado como uma forma do partido se reaproximar de algumas demandas populares, de ouvir a voz das ruas ali onde ela se mostrava favorável a maiores avanços e de tentar se afastar de um sistema que já era e se tornou ainda mais impopular.

Na verdade, o que aconteceu foi que alguns ideólogos e jornalistas próximos do partido não pensaram duas vezes em classificar o movimento, dentro de esquemas clássicos, como sendo de direita, fascista ou como uma insurreição para um golpe de Estado. Antipartidarismo violento, atos quase-fascistas e manipulação midiática: é verdade que tudo isso ocorreu; o cuidado, entretanto, deve ser o de não operar uma falsa metonímia: não se pode tomar junho por uma manifestação fascista, de direita, inteiramente antipartidária - se tudo isso esteve presente, não nos parece que tenha sido majoritário ou que essa presença possa definir a essência das manifestações e tampouco validar um bloqueio do diálogo com a classe média. Da incompreensão surgiu a tentativa de desmerecer e atacar ferozmente algo que não estava no controle imediato do partido. Tivemos uma situação aparentemente paradoxal na qual um protesto de massas que reivindicava o combate à corrupção e a melhoria dos serviços públicos foi visto com maus olhos pela esquerda hegemônica.

Hoje, parece mais simples pensar que as manifestações de 2013 foram responsáveis por fazer surgir todas as mazelas que resultaram no impeachment. Ora, isso seria não apenas elaborar uma interpretação unilateral do que foram os protestos como também fazer crer que as condições e determinações essenciais da queda de Dilma tenham sido desencadeadas por eles, quando, a rigor, eles já vinham de antes, sendo as manifestações mais um sintoma do que uma origem.

            (ii) Nem princípio de revolução, nem preparação para um golpe, as manifestações de junho de 2013 irromperam alimentadas pela violência policial extrema, pela baixa qualidade dos serviços públicos, pelo caos urbano - estimulado com a desoneração oferecida à indústria automobilística -, por empregos precários, por mazelas geradas pelos megaeventos esportivos, pela percepção de uma possível instabilidade econômica, pelas alianças espúrias em nome da governabilidade, pelos inúmeros casos de corrupção. Não se pode imputar todos esses problemas exclusivamente aos governos petistas, mas as tentativas de combate-los, quando existiram, foram débeis. Dessa forma, é desarrazoado pensar que os erros do partido não contribuíram para alimentar as manifestações, e, claro, também o próprio impeachment. Ou seja, as condições que fomentaram as manifestações eram reais. Acreditar que não havia motivos para o que aconteceu é não fazer um balanço crítico dos anos petistas no governo federal. Na verdade, sobravam motivos - anda que difusos - para que uma manifestação de alguns milhares de jovens se transformasse, do dia para a noite, em algo muito maior. Não deixam de ser surpreendentes a velocidade e a força com a qual se expandiram as passeatas, mas tampouco se pode dizer que fossem imotivadas ou mesmo totalmente inesperadas.

A parca mas importante redistribuição de renda realizada nos últimos tempos não foi o suficiente para apaziguar o país. Por mais que tenha sido um ciclo necessário de aprofundamento das condições democráticas, essa partilha - com a crença de que o aumento do nível de consumo seria o suficiente - estava acoplada a um pacto conservador que não permitiu um plano mais acelerado de melhoramento dos serviços públicos, a criação de uma rede de segurança e bem-estar social mais efetiva e também de um combate mais profundo à desigualdade, por meio de reformas como a agrária e a fiscal.

Seria incabível colocar tudo isso na conta do PT, mas a percepção é de que o partido que esteve à frente do governo federal por mais de dez anos poderia ter ido além de se propor a conduzir o pemedebismo para uma direção socialmente mais progressista enquanto mantinha as estruturas intactas. Isso foi admitir que os avanços eram reféns de uma conjuntura em que todos pudessem ganhar, não só os mais pobres, o que implicava não tentar um enfretamento maior nem nos momentos em que a popularidade do partido e do presidente eram estratosféricas. Isso agora se revela de forma cabal com diversos estudos que apontam para o fato de que a desigualdade de renda não diminui tanto quanto se havia imaginado e que, ainda que programas de redistribuição sejam fundamentais, eles sozinhos não conseguirão combater a injustiça social que está profundamente arraigada na sociedade brasileira.

Assim, vê-se que a estratégia de Haddad de se afastar do legado quase indefensável do governo Dilma é eficiente até a segunda página. Não se pode, como parece acontecer, esquecer que muitos problemas foram anteriores mesmo ao primeiro mandato da presidente. Sendo assim, o impeachment não tem seu início ou estopim em 2013, nem se encerra nos problemas ocorridos durante o governo Dilma, por graves que eles tenham sido. A corrupção, as alianças espúrias e bizarras, a ausência de reformas estruturais, isso já estava presente na experiência anterior ao governo Dilma. Pode-se dizer que outros partidos, quando estiveram no poder, não conseguiram e nem tentaram promover tantos avanços quanto o PT e que, dadas as condições, o partido foi o mais longe possível. Entretanto, seria preciso responder: não se esperava isso de nenhum dos outros governos, mas, sim, do PT, que foi construído historicamente com essa missão; e, ainda que as condições tenham feito o projeto ficar mais difícil, teria sido possível fazer mais do que o que foi feito, desde que houvesse tentativas de modificar a própria estrutura através de reformas incisivas.

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No entanto, para Haddad, trata-se de uma série de manifestações puxadas por um "neoanarquismo charmoso". Pouco disposto à negociação com as instituições, o MPL teria uma agenda rígida e maximalista. Para o ex-prefeito, esse tipo de estratégia faria algum sentido nos países centrais, visto que lá a dificuldade para que os movimentos sociais alcancem alguma inserção institucional é verdadeira. No Brasil, em que os movimentos tradicionais tinham trânsito nos governos petistas, esse tipo de enfrentamento é nonsense.

Se no núcleo do sistema essa mediação parecia mais difícil, é preciso lembrar que o PT representou, à sua maneira, um bloqueio da pressão que os movimentos sociais poderiam exercer. Capitaneando o pemedebismo, o partido liderou um sistema político que, em geral, brecava as reivindicações vindas de baixo. No entanto, sendo um partido de esquerda, teve a peculiaridade, ou contradição, de levar para dentro do governo alguns movimentos sociais históricos, travando com eles um diálogo neutralizador - em que suas aspirações ou eram postergadas, ou parcamente atendidas, ou mescladas com uma lógica que beneficiasse o setor privado. Ter uma relação com o institucional não é necessariamente um ponto positivo se essa troca se faz apenas por meio da vontade das burocracias e, em geral, reverte-se em poucas conquistas para os movimentos e suas bases.

Se se pensar assim, vê-se que não se trata de neoanarquismo charmoso, mas de movimentos que conseguiram dialogar com demandas não absorvidas pelo bloco petista. Inovando nas formas de mobilização e manifestação, o MPL conseguiu instigar parte da população a lutar pela estabilização do preço da tarifa de transporte urbano - tema que fez convergir tanto as classes baixas quanto parte da classe média. É legítimo questionar se qualquer manifestação deve alterar o rumo de um programa de governo. A resposta, em condições normais, provavelmente seria negativa, visto que a maior parte da população chancelou esse programa durante as eleições. Entretanto, nem se estava diante de condições normais, nem se tratou de qualquer manifestação, mas de uma que tinha aprovação da maioria da população e que colocou, em vários dias, milhares e milhares de pessoas nas ruas... Com efeito, não houve intransigência do MPL, mas uma negociação em que, dadas as circunstâncias, as variáveis eram inteiramente favoráveis ao movimento.

Cabe lembrar que muitos de seus eleitores foram às ruas e não viram nenhuma contradição entre o voto e a mobilização, entre as instituições e os movimentos de rua. A posição de Haddad deveria ter sido de pulso firme: criticar toda ação policial e aproveitar a situação para, imediatamente, revogar o aumento de preço e se descolar da figura do político tradicional e tecnocrático que é Geraldo Alckmin. Porém, qual foi a postura de Haddad durante as manifestações? De fato, o ex-prefeito fez o contrário disso. Ainda que não concordasse com a violência policial, tampouco ele a condenou publicamente no momento adequado. Não se trata, bem entendido, de freia-la, pois a polícia não é do controle do prefeito da cidade, mas de repudiá-la veementemente em público. Além disso, demorou para revogar o aumento e, quando o fez, realizou uma constrangedora coletiva de imprensa em conjunto com Alckmin, colando sua imagem à do governador. Com poucas medidas políticas mais imediatas, o prefeito poderia ter neutralizado as manifestações, que provavelmente não teriam tomado a proporção que tiveram, e também se saído bem desse conflito entre as ruas e as instituições. Haddad é um hábil político e, até onde se sabe, honesto, mas que não soube manejar a situação, não soube interpretá-la de forma maquiaveliana, como parecia ser necessário. Não se trata de abrir o caminho para o populismo, mas de saber pensar estrategicamente, e não apenas com uma racionalidade de gestor e administrador.

Em suma: junho de 2013 não se tratou de uma manifestação da esquerda charmosa e neoanarquista; de uma liberação do ódio da classe média; de um princípio de golpe de Estado; de uma revolução; mas, antes, de uma série de revoltas com diversas motivações, protestos que se alastraram por toda a sociedade e que foram alimentados também, mas não só, por erros cometidos pelo PT. Retomando o palpite inicial e propondo talvez uma leitura bem acanhada: não seria 2013 também – não apenas, mas também - uma tentativa da sociedade civil de romper o ciclo vicioso do patrimonialismo brasileiro? Se sim, a experiência de junho deveria ser incorporada em outro registro nas reflexões do ex-prefeito.

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Um dos resultados de junho de 2013 foi reorganizar o horizonte político em torno de três temas: (i) combate à corrupção em todas as esferas do poder; (ii) crítica da blindagem do sistema político e da autonomização dos representantes em face da sociedade civil e (iii) aprofundamento do combate à desigualdade por meio de direitos sociais e serviços públicos de qualidade.        

            i) Além do definhamento do espaço público em razão de posturas corporativistas e eivadas de interesses privados vindas do Judiciário e da Mídia, um dos componentes da mentalidade antirrepublicana presente no Brasil é a corrupção que se espraia por toda sociedade. Retomar a tese do patrimonialismo se mostra, em um primeiro momento, como uma estratégia teórica adequada para se compreender esse antirrepublicanismo renitente em nosso país. Ao encarar essa corrupção como um corolário do patrimonialismo, abre-se espaço para, superando o moralismo tacanho, efetuar uma crítica mais adequada do fenômeno. Mostra-se como, na verdade, a corrupção não se resume às ações desastradas de alguns agentes políticos, mas se reforça através de um equivocado desenho institucional do Estado brasileiro, que facilita tal prática. Ou seja, é urgente pensar na corrupção como um problema mais amplo do que meramente as atitudes de políticos e empresários, quando, na verdade, trata-se de algo maior: uma relação inteiramente degradada entre o público e o privado. Até aqui, não poderíamos estar mais de acordo com Haddad, tanto em relação aos problemas da Justiça e da imprensa quanto com o relançamento da tese do patrimonialismo brasileiro.

Por outro lado, essa mesma tese da corrupção como corolário do patrimonialismo é também parcialmente acrítica ao retirar a responsabilidade do partido e dos indivíduos que praticaram a corrupção. Sai-se do moralismo para se colocar no outro extremo: todo o problema recai sobre as instituições. Dessa forma, não são mais discutidos critérios éticos de atuação na política, já que os erros individuais são compreensíveis e até mesmo perdoáveis por estarem inseridos em estruturas viciadas. Ora, é curioso pensar que muitos dos quadros petistas de hoje não passariam pelo crivo do rígido código moral que o partido ostentava com orgulho em seu início.

O PT não subestimou o patrimonialismo, como escreve Haddad, e, portanto, não é exatamente uma vítima, mas antes o aceitou como se fosse uma condição sine qua non para se chegar ao poder; para alguns dentro do partido, uma condição para entrar no Estado seria aceitar as regras subterrâneas e os costumes escusos tais como eles estavam colocadas, em vez de tentar mudá-los. A isso seria possível objetar que todos os partidos também se sujaram; o argumento, entretanto, não se sustenta. Se todos são corruptos, isso autoriza o PT a entrar nesse jogo? Então o PT seria igual a todos os outros? Mas não é exatamente isso que o partido tenta não ser?

Por outro lado, também se pensou que era preciso inserção na máquina para remodelar seu funcionamento. Ocorre que o PT foi mais tragado pelas engrenagens do que conseguiu alterá-las. Seria injusto, no entanto, dizer que nada foi feito. Em comparação com o que veio antes, os anos petistas no governo federal representaram um avanço muito significativo no combate ao patrimonialismo. A autonomia da Polícia Federal, a criação da Controladoria Geral da União e também o respeito pela liberdade interna do Ministério Público Federal foram originalidades dos governos petistas. Se não fosse por essas inovações, dificilmente hoje a verdade sobre as escusas relações entre o público e o privado estariam sendo expostas com tanta franqueza.

Ainda assim, e aqui entra a questão da autocrítica em relação à corrupção, mesmo com todos esses avanços institucionais, o partido se mostrou incapaz de renovar sua cultura ética interna. Em outras palavras, o problema da corrupção não se resolveu dentro dos quadros petistas porque a ideia de uma cultura republicana, de transparência e lisura administrativa, é vista por muitos como mera ideologia a impedir os avanços sociais. Nesse sentido, caso a corrupção estivesse à serviço da causa do partido, poderia ser válida. A esse respeito, basta ver a defesa obstinada que muitos fazem dos dirigentes da legenda que se envolveram com práticas ilícitas. Dirão alguns que, por outro lado, a justiça é partidária, desequilibrada etc. Essa tese, discutível, ainda parece, contudo, ser parcialmente aceitável (afinal, onde estão os políticos do PSDB? Soltos), mas que não se esqueça que muitos do PMDB já se foram, por exemplo. De qualquer forma, ainda assumindo que a justiça seja assimétrica, isso não justifica que se faça uma defesa de condenados como se eles fossem perseguidos políticos. Ao invés de se lutar para que a justiça seja aplicada a todos, luta-se para que aqueles que foram devidamente julgados sejam inocentados...

Tendo a prática de Haddad em relação a esse tipo de problema sido exemplar, seu discurso teria de acompanhar essa prática e admitir o problema interno à legenda, não poupando aqueles que erraram e procurando uma reformulação da conduta em relação a práticas de corrupção, sejam quais forem suas motivações. Não se trata de levantar a bandeira acrítica da Ética na Política, o que seria voltar ao grau anterior à crítica das instituições, mas de perceber a necessidade de levar adiante os dois polos da crítica: contra as instituições mal estruturadas e contra os indivíduos do setor público e privado que infringiram as regras.

Nesse sentido, a tática de deixar que a pauta do combate à corrupção seja monopolizada pela direita tem se mostrado quase suicida. Não se deve apenas mostrar como, apesar de todo o discurso moralizante, há muitos e graves casos de corrupção na direita, mas, além disso, também levar adiante os avanços institucionais contra a corrupção e, o que falta, não ser leniente com casos de pessoas de dentro do partido. Isso seria esvaziar a arma mais poderosa da direita, que seduz e mobiliza, desde antes de 2013, mais pelo moralismo oco do que por um conteúdo programático consistente. Ainda que esse conteúdo comece a existir, já que, com uma seletividade cínica, os grupos de direita preferem não marcar posição frente à corrupção assustadora do governo Temer, não é aí que reside o segredo das mobilizações promovidas pelo MBL e pelo Vem pra Rua, para citar apenas os mais influentes.   

A falta de combate efetivo ao problema, como um movimento interno que venha do próprio partido, pode reforçar a ideia de que todos os políticos e partidos são iguais: para o imaginário político do eleitorado brasileiro, a corrupção equaliza, iguala negativamente toda a representação política, tornando uns e outros indiferenciáveis.

            ii) Mas não apenas a corrupção gera a ideia perniciosa de que todos os projetos políticos se igualam. Além dela, em razão da política de alianças e de uma ausência de diferenciação real entre os projetos políticos, a representação fica manchada dado que o eleitorado tem a sensação de que seu voto não tem importância.

Assim, é preciso se ater a um ponto que pouco aparece no texto de Haddad, mas que é fundamental: a política de alianças do PT, tanto em nível federal quanto estadual e municipal, sacramentou a ideia de que o partido se tornou apenas mais um dentro de um sistema político corrompido. Para ficar em um exemplo famoso e que envolve o ex-prefeito: a chocante imagem de Lula e Haddad apertando a mão de Maluf para angariar recursos e tempo de TV do PP é devastadora. Um partido que nasce de aspirações de esquerda - com um discurso de Ética na Política, de combate à corrupção e em contraposição aos políticos tradicionais - aceita se aliar ao que há de pior, de mais autoritário, corrupto e patrimonialista. Esse tipo de argumentação, pode-se dizer, é típico daqueles que não entendem a política tal como ela é, que é preciso fazer alianças caso se queira ser eleito, que a governabilidade é inviável sem isso etc. Entretanto, a médio e longo prazo essas alianças não podem ser senão deletérias tanto para a imagem do partido como também para o seu projeto, que vai, gradualmente, cedendo para os interesses e exigências das retrógradas forças aliadas. 

Essas alianças se deram em nome da conquista de algum avanço social? Sim, mas de um pequeno avanço que custou muito caro: por tempo de TV, recursos e governabilidade o PT foi, aos poucos, erodindo suas credenciais. E não só. Esse avanço, ao fim e ao cabo, revela-se meramente circunstancial, ou ao menos muito frágil, dado que se faz ao gosto dos partidos fisiológicos, das legendas que determinam a velocidade, o impacto e mesmo a reversibilidade que podem ter esses progressos. Um programa mais efetivo não pode surgir de um projeto de alianças sem critério. Que se veja aonde se chegou depois de tantas alianças. Bem entendido, não se trata de trazer à cena um purismo, uma aversão a toda e qualquer aliança, mas de saber ponderar critérios razoáveis para que elas sejam estabelecidas.

Diferenciar outra vez o PT dos outros partidos significa não topar qualquer aliança por governabilidade, traçar linhas de distinção que não podem ser atravessadas. Até que ponto a aliança com Maluf no âmbito municipal, por exemplo, foi realmente necessária? Nesse sentido, governabilidade e correlação de forças não são argumentos válidos universalmente. É preciso retomar uma boa radicalidade, não só no discurso, mas nas práticas, radicalidade que seja intransigente com a corrupção, repudie alianças descabidas e também seja suficientemente crítica em relação à oposição. 

No caso de Haddad, não só se continuou essa política indiscriminada de alianças, mas também houve uma indisposição para se descolar da imagem de líderes da oposição. Ora, que se queira manter um diálogo com diversas lideranças em tempos de polarização é compreensível, mas em nome desse diálogo se furtar de avaliar criticamente Alckmin, FHC e suas gestões é impensável para um político e intelectual de esquerda. Postura excessivamente cautelosa, que não é republicanismo, mas conciliação desnecessária, complacência inesperada.

Ao contrário do que frequentemente se imagina, não é apenas a ausência de diálogo respeitoso que fomenta os extremismos, mas também a incapacidade de diferenciação entre os partidos de afirmar um projeto claro, de não se furtar ao enfrentamento dos adversários nos momentos oportunos. Ou seja, tanto a ausência de diálogo quanto a ausência de enfretamento geram a ascensão dos extremos - que se justificam ideologicamente por meio da acusação de indistinção entre as práticas dos partidos políticos hegemônicos. Isso ao redor do mundo: foi a crise de 2008 conjugada com a incapacidade da esquerda de oferecer respostas razoáveis à crise de legitimação da classe política que alimentou a escalada da extrema-direita. O neoliberalismo regressivo é fruto não só do fracasso do neoliberalismo, mas das insuficiências da esquerda. Portanto, se Haddad mostra que a caminhada para pautas eleitorais conservadoras foi iniciada por Serra na eleição de 2010, esse está longe de ser o único motivo para a ascensão da extrema-direita, e, mais uma vez, o ex-prefeito escorrega ao não ver a responsabilidade de seu próprio partido nesse processo.

            Esse enfrentamento também se mostra necessário para aprofundar as reformas importantes. Tanto as alianças quanto a corrupção puderem fazer parte de um discurso ultrapragmático de alguns petistas. No entanto, tudo isso se mostrou muito frágil: foi o excesso de pragmatismo, junto com erros de política econômica, que inviabilizaram o aprofundamento dos avanços sociais. Com a entrada do governo Temer, não apenas esses avanços ficaram bloqueados, mas começaram mesmo a serem desmontados em nome da estabilização da economia, o que mostra como toda a construção lulista foi, apesar de tudo, frágil. A tentativa de enfrentamento efetivamente se deu, mas não com a construção de um arco sustentável de alianças com partidos de centro-esquerda, mas quando o PT já era vítima de suas próprias alianças com a centro-direita.

Pode-se dizer, é claro, que houve as pautas-bomba, que o partido foi traído pelo PMDB, que a burguesia nacional foi mesquinha etc. Mas alguém realmente acreditou que isso poderia ser diferente? Que uma aliança com o centrão corrupto seria viável? Que eles não tentariam rifar a centro-esquerda na primeira oportunidade? Aí o realismo político exacerbado se revela, na verdade, como um idealismo total, como o cúmulo da ingenuidade.

Em suma, o PT deu vida nova à velhas oligarquias políticas ao aceitar alianças para alcançar o poder federal. Assim, aprofundou uma blindagem diferente do sistema político, pois era o partido que, simultaneamente, articulava o pemedebismo e negociava, com legitimidade vinda de baixo, com os movimentos sociais. Essa blindagem, aliada a uma falta de disposição para um enfretamento mais claro, aberto e efetivo a outros partidos, abriu caminho para soluções radicais e extremistas.

            iii) É evidente que o combate às desigualdades é amplamente prejudicado em razão da corrupção – que desmoraliza a política, sobretudo de esquerda, e drena recursos públicos – e das alianças que freiam as possibilidades mais radicais.

Como o governo atual está desmontando em velocidade máxima os pactos sociais firmados até agora - impedido somente pela própria corrupção e incompetência - fica à esquerda a hegemonia no campo da luta pela manutenção e aprofundamento dos direitos sociais, pautada na reafirmação dos arranjos firmados na Constituição de 1988. Mas, para que essa hegemonia se transforme em um prática efetiva de redução das desigualdades, seria preciso rever: primeiro, até que ponto a própria estratégia política assumida, de se alcançar o executivo sem uma base parlamentar estável e ideologicamente homogênea, dentro do desenho institucional do sistema político brasileiro, não se mostrou um erro que impediu a promoção de reformas estruturais que caminhassem no sentido de um combate mais profundo e eficaz às injustiças sociais; segundo, até que ponto a própria política econômica levada a cabo durante o governo Dilma não minou as possibilidades de aprofundamento dos direitos sociais. Em outras palavras, o argumento de que as reformas propostas pelo governo atual, que elevou a ilegitimidade à virtude política, deve-se às complicações econômicas surgidas no governo anterior é claramente mistificado se se levar em conta que o partido de Temer forçou o máximo que pode para que a crise chegasse ao limite do insustentável; mas, por outro lado, o argumento não é inteiramente falso se se pensar que as decisões equivocadas e os resultados catastróficos da política econômica, anteriores à crise política-jurídica, foram essenciais ao servir de justificativa à regressão aguda que vemos agora.

Sem desconsiderar a participação da oposição troglodita em tudo isso, é apenas com essa revisão crítica que a esquerda poderia evitar que sua saída do poder – seja em razão da rotatividade normal da democracia ou de procedimentos condenáveis e golpistas – não tenha como consequência uma reversão vertiginosa de tudo que foi alcançado

Ainda que os movimentos e partidos de centro-direita tenham conseguido, ajudados por parte da mídia e devidamente financiados pela burguesia industrial, incendiar o país contra o governo de Dilma, é notório, e um claro obstáculo às pretensões ideológicas desses atores, o fato de que a população brasileira ainda espera muito do Estado. Evidentemente, espera também que esse Estado seja menos corrupto, mais eficiente, mais direcionado aos que mais necessitam de sua ajuda. Mas isso não significa um Estado mínimo, um Estado enxuto, um Estado neoliberal, como pretendem os políticos e ideólogos da nova direita. É aí que as propostas da esquerda ainda têm força.

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Assim, vê-se que o que se pode extrair da experiência das manifestações de 2013, e da forma como elas reorganizaram o horizonte político, vai muito além do que pretende Haddad. Nada daquilo foi a panaceia que muitos – à direita e à esquerda – acreditam. Não se tratou de um Acontecimento revolucionário, de um Evento ou coisa do tipo. Ainda assim, não se pode passar tão depressa pelas consequências políticas instauradas pelo ocorrido. De uma avaliação mais detida, fica claro que os três problemas levantados nas manifestações são indissociáveis: as alianças degeneradas sustentam e reforçam o ciclo da corrupção, que torna a política dita de esquerda quase indistinguível da política da direita, mitigando e, no limite, inviabilizando o aprofundamento do combate às desigualdades.

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Agora que a direita liberal e a conservadora se encontram lado a lado, protagonizando em conjunto uma regressão acentuada das conquistas das últimas décadas, pode o campo progressista admitir seus próprios erros e se reorganizar para conter esse retrocesso vertiginoso? A esperança era de que o golpe trouxesse uma lufada de ar puro para o partido. Na verdade, dada a forma como o governo petista foi derrubado, no lugar de autocrítica, insuflou-se uma reafirmação afoita de velhos e novos dogmas - postura extremamente reativa. Afinal, haverá espaço para renovação dentro do PT?

            Se sim, essa possibilidade passa, com certeza, por Haddad. Visto com desconfiança, mas apadrinhado pelo líder histórico, está também nas mãos de Haddad promover essa renovação necessária, afastando-se dos discursos ortodoxos, mantendo o que houve de positivo e sabendo repudiar o que se provou incorreto na trajetória do PT. E, no entanto, para isso, seria preciso não apenas viver na pele o que se leu nos livros, mas refletir sobre as práticas, realinhar o discurso e a consciência às experiências vividas para se evitar que se repitam algumas situações indesejadas. Em suma, levar aos livros, e às próximas experiências e situações, o que se aprendeu na pele.

    
    

 









fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ