revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Antonio CÂNDIDO

Repúdio à doutrina do capitalismo de Estado1

 


A Comissão Estadual do Partido Socialista Brasileiro, Seção de São Paulo, reunida em Santos no dia 27 de junho de 1948, considerando o problema da posição que os socialistas devem assumir em face da orientação seguida pelo Partido Comunista do Brasil, posto na ilegalidade graças a uma situação que contribuiu para criar com os seus desmandos teóricos e práticos, mas que representa principalmente um ataque reacionário à liberdade de associação, considera fundamentais os pontos seguintes:

1° - O Partido Socialista Brasileiro é contrário tanto ao comunismo russo quanto à sua expressão local, o Partido Comunista do Brasil.

2° - Entre o comunismo como doutrina, e o socialismo democrático, existe uma convergência de objetivos, visto que ambos lutam pela socialização da propriedade, com as consequências decorrentes daí, no campo da produção, da distribuição e da organização social – inclusive a supressão progressiva do arcabouço do Estado como forma suprema de controle.

3o - A referida convergência não existe, todavia, em relação ao capitalismo de Estado que, na URSS, esclerosou numa ditadura permanente o processo de socialização. Segundo as concepções mais elevadas do humanismo ocidental, de que o socialismo é o herdeiro legítimo, os meios empregados para obter um fim não podem substancialmente ser destacados deste, sob pena de desvirtuá-lo, ou, por outras palavras, o fim não é mais do que a cristalização dos meios e sua projeção definitiva. Ora, na URSS — não importa indagar se por contingência histórica ou por desvio político — a concentração estatal criou uma contradição desumana, e portanto antssocialista, entre a razão de Estado e as forças produtivas. Aquela, encarnada numa poderosa e vasta elite burocrática, estas, como nos estados burgueses, mantidas na condição proletária, quando não exploradas em campos de concentração sob a forma de trabalho forçado. Assim sendo, os socialistas declaram que não havendo identificação do capitalismo russo de estado com o comunismo, não há convergência de alvo, mesmo remota, entre ele e o socialismo.

4° - O desenrolar dos acontecimentos colocou em nossos dias o problema da conduta política como escolha entre a adesão ao capitalismo russo de Estado e o capitalismo burguês norte-americano — ambos na fase suprema das suas manifestações imperialistas. Para muitos, a escolha pareceu inevitável, e na Europa vários partidos socialistas optaram por um lado ou outro. O Partido Socialista Brasileiro acha que tal escolha, na fase atual, e para os brasileiros, é não apenas desnecessária como prejudicial. Repelindo o imperialismo soviético, repele igualmente o imperialismo norte-americano que nos ameaça diretamente com a voracidade insaciável dos seus trustes.

5° - Repudiando a doutrina do capitalismo de Estado, do nacionalismo soviético e do imperialismo armado (que se concretizam no Estado totalitário russo), os socialistas repudiam, em consequência, os seus representantes, isto é, os diferentes Partidos Comunistas entre os quais está o brasileiro. Todos eles, mais ou menos declaradamente conforme o país, visam implantar o Estado totalitário, que se revelou incompatível com o socialismo verdadeiro, de vez que esmaga a democracia proletária.

6° - Os socialistas não esperam que o Partido Comunista possa desenvolver uma linha coerente de luta pelo povo, visto que é obrigado a amoldar-se às diretrizes vindas da URSS — o que os poderá levar a propor reformas progressivas em fase de revolução popular ou golpes armados em fase de tática conciliatória. Deste modo, os socialistas repelem o Partido Comunista tanto como expressão pretensa do comunismo, quanto como partido brasileiro — isto é, sob o ponto de vista geral e sob o ponto de vista particular .

7° - Na sua crítica ao Partido Comunista, o Partido Socialista distingue a massa proletária da elite dirigente. Esta, cegamente obediente às fórmulas russas; aquela, em grande parte caracterizada por uma admirável consciência de classe e denotadora de vocação, de uma intrepidez política socialista capaz de servir de base às conquistas mais fundamentais do socialismo. E é esta circunstância que nos torna mais confiantes no futuro das lutas sociais no Brasil .

8° - Repelindo a teoria e o movimento representados pelo Partido Comunista, o Partido Socialista poderá, no entanto, colaborar com os antigos comunistas e com qualquer outro partido que não seja fascista, em questões de detalhe. Na questão da anistia aos presos políticos, os agrupamentos socialistas e antifascistas colaboraram com os comunistas; atualmente, na questão do petróleo, poderemos com eles colaborar na Câmara Federal , os nossos deputados se aliaram a eles mais de uma vez em questões de ordem prática, como ainda hoje se aliam, para os mesmos fins, a deputados de partidos burgueses.

9º - Esta atitude é consequência do próprio panorama político brasileiro. Embora mantenhamos a maior independência em relação aos demais partidos, denunciando-os sem exceção, temos que lutar pelas reivindicações indispensáveis à manutenção do precário regime democrático em que vivemos e, portanto, temos frequentemente de compor forças. Podendo nos encontrar com os comunistas no campo parlamentar e, mesmo, na atividade legal, fá-lo-emos sem a menor concessão teórica e mantendo no plano geral as nossas reservas.

10º - No seu ataque ao Partido Comunista do Brasil, o Partido Socialista Brasileiro não o considera em separado dos outros partidos, porque se opõe igualmente a todos, mesmo quando se articula com eles em questões práticas. Com o Partido de Representação Popular não admite colaboração de espécie alguma; quanto ao Partido Social Democrático, sabe que é o principal baluarte reacionário no seio da burguesia; em relação aos demais, sabe que a União Democrática Nacional é instrumento da burguesia liberal a serviço de interesses comerciais, latifundiários, industriais e bancários; sabe que o Partido Trabalhista Brasileiro e o Partido Trabalhista Nacional são camarilhas de exploração demagógica do proletariado; que o Partido Social Progressista é um híbrido dos demais e que nenhum deles merece a confiança popular .

11º O Partido Socialista Brasileiro se propõe a lutar nos quadros da democracia burguesa, procurando liquidar, nela, as ameaças totalitárias e as escamoteações conservadoras. Sabe que a liberdade burguesa é em grande parte fictícia, mas que é um mínimo passível de ampliação por meio da luta diária, da doutrinação e da atividade legal; um mínimo que importa preservar em nossos dias de depravação do sentimento da liberdade, para que, fiel ao nosso programa de Socialismo e Liberdade, possamos atingir a democracia socialista, com o fim da exploração do homem pelo homem.

 

    
    

 









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ilustração: Rafael MORALEZ




1 “A bandeira do monopólio estatal do petróleo foi levantada no Congresso Nacional pelo deputado socialista Hermes Lima em março de 1948 por ocasião dos debates sobre o anteprojeto do Estatuto do Petróleo. Antes da campanha da Comissão de Estudos e Defesa do Petróleo, o deputado comunista Carlos Marighella havia apresentado em junho de 1947 um projeto, logo engavetado, de privatização da indústria do petróleo com abertura ao capital estrangeiro”. (Nota de Vinicius Dantas reproduzida da edição Antonio Candido, Textos de intervenção. São Paulo, Editora 34, 2002 (2 vol)