revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Arthur Hussne BERNARDO

Da tradição brasileira a uma radiografia

 


No espaço de meses, foram publicados dois livros do sociólogo Jessé de Souza: "A Tolice da Inteligência Brasileira", do final de 2015, e, alguns dias antes da destituição da presidente Dilma, "Radiografia do Golpe". Propondo-se como tarefa demolir parte considerável da tradição sociológica nacional e desvendar os motivos que levaram ao impeachment de 2016, a iconoclastia do autor teve ampla repercussão e ensejou discussões acaloradas. Essas duas obras permitem não apenas debater algumas minúcias, filigranas e detalhes teóricos de importância razoável, o que já justificaria uma resenha crítica, como também alçar voos mais amplos na discussão da conjuntura nacional e de algumas de suas representações. Se nos permitimos resenhar dois livros de uma só vez, é que o segundo nos parece um prolongamento do primeiro, sendo uma análise de conjuntura elaborada a partir do referencial teórico desenvolvido na obra anterior. Dessa forma, vai-se da crítica da tradição sociológica brasileira à interpretação do Brasil contemporâneo.


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Jessé tem mira certa: a tolice da inteligência brasileira é alimentada pelo legado sociológico da linhagem liberal-weberiana. Formada por Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, Simon Schwartzman, Bolívar Lamounier, essa tradição seria responsável por discursos pseudocientíficos sobre o Brasil, fundando uma narrativa de teor culturalista e orientação política liberal-conservadora. Descontadas suas diferenças, a argumentação de fundo desses autores seria, diz Jessé, muito similar: sendo a cultura ibérica ontologicamente inferior às demais tradições europeias, imagina-se que o personalismo, a cordialidade, o jeitinho, o desprezo pelos valores republicanos, o patrimonialismo seriam exclusividades nacionais. Produtos de uma cultura cronicamente atrasada e deficitária em relação aos países modernos, esses exotismos seriam responsáveis por nossa inferioridade frente às nações desenvolvidas.


Prolongando essa linha de raciocínio, Jessé afirma que essas teorias ultraliberais, apesar de infundadas, teriam logrado se institucionalizar de tal maneira na vida nacional que se tornaram uma segunda natureza de nosso povo. Essa institucionalização, afirma o autor, é nefasta, porque, além de afirmar premissas e conclusões avessas aos procedimentos científicos, esconde interesses políticos escusos: a narrativa conservadora e pseudocientífica direciona o debate público e a agenda política nacional em favor dos grupos dominantes. Dessa forma, o alinhamento dessas ideias com as vontades da elite econômica não poderia senão resultar em uma manipulação de nossa classe média e também dos mais pobres.


Para Jessé, isso explica o que se passou recentemente na vida política nacional. Caso um governo – como foi o de Dilma - tenha uma proposta minimamente redistributiva e nacionalista, essa aliança entre elites econômicas e intelectuais acríticos entra em campo e com o apoio fundamental do oligopólio midiático - que pauta a classe média - bloqueia o projeto. É dessa forma, aliás, que o autor explica o fim da era petista no governo federal.


Fecha-se, então, o círculo: da crítica da tradição sociológica tupiniquim à interpretação do Brasil contemporâneo; da miséria atual do país à penúria da sociologia nacional. O raciocínio exposto nos livros sobre as razões de nossa dominação e do atual estado babélico da nação é bem-amarrado e didático. Mas será que essa interpretação crítica se sustenta?  


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            Alvo preferencial de Jessé de Souza, Sérgio Buarque de Holanda inaugura a interpretação weberiana do país em seu Raízes do Brasil. Desse livro, acredita o autor, teriam nascido as piores ideias sobre o que é nosso país e sobre aquilo que ele deveria ser: o homem cordial, uma aberração conceitual desprovida de qualquer fundamentação material ou de classe, marcando o brasileiro de forma indelével como corrupto e indigno; a formulação de que o personalismo e o patrimonialismo seriam males maiores de nossa sociedade, criando uma oposição entre o Estado corrupto e ineficiente e o mercado como instituição desprovida de vícios; a visão imprecisa e excessivamente positiva dos EUA, servindo como espelho para o Brasil; e, por fim, a constituição de um caminho de modernização liderada pelo antiestatismo militante de São Paulo. Segundo Jessé, a utilização desse aparato conceitual para demonstrar a singularidade negativa da cultura brasileira é não apenas uma crítica conformista, como também fruto de um procedimento pseudocientífico típico do ensaísmo deformado praticado por Sérgio Buarque.  


Feito o balanço dessa descomunal má contribuição para a sociologia brasileira, Jessé finaliza: "Buarque é o criador de uma tradição "colonizada até o osso" que, com armas da má sociologia, não leva em conta os contextos institucionais nem os históricos da ação social, mas aparentemente "explica" o mundo de modo tão simples e irrefutável como quem dizia que bastava comparar África e Europa para perceber como os brancos eram superiores."1


À primeira vista, essas críticas demolidoras causam uma impressão considerável. Jessé faz um serviço necessário ao derrubar a mitologia perniciosa de que o Brasil é um país atrasado porque seu povo tem valores deploráveis, ou porque a cordialidade impede a instauração de um regime político sensato, ou, ainda, porque, portador de um iberismo, o Brasil estaria fadado a um subdesenvolvimento perpétuo.  Porém, se essas são críticas razoáveis, elas não são novas2 , nem se preocupam em assinalar a grandeza da obra de Sérgio Buarque e, em alguns casos, aplicam-se mais aos epígonos do que ao próprio autor. Se existe a reverência acrítica, não se deve incidir no extremo oposto: a crítica descuidada. Na exegese proposta por Jessé, sobressaem-se alguns excessos interpretativos e ficam eclipsadas as perspectivas críticas esboçadas por Sérgio Buarque. Senão, vejamos.


Não se pode falar sobre Raízes do Brasil como um livro que nasce pronto. A seguir os novos estudos que vêm sendo realizados, a obra se constitui, antes, de uma série de edições com mudanças nada desprezíveis; em relação à original, de 1936, aquela tida como definitiva possui uma distância temporal notável e também alterações relevantes no conteúdo. Tomando-se a primeira edição, trata-se de livro com postura política inconclusiva, porém claramente antiliberal. Afinal, o liberalismo, o fascismo, o comunismo seriam, na verdade, regimes sócio-políticos que não se adequam à natureza do povo brasileiro, à cordialidade. A cordialidade é dúbia: tem traços negativos, mas abre caminho para uma modernização menos sisuda do que aquela de matriz anglo-saxã. Sendo assim, o país teria que criar um regime próprio, que se adequasse à sua natureza.


Por outro lado, caso se pense na segunda edição, de 1948, surge um texto pertencente à tradição democrática mas que, não obstante, continua desconfiado do liberalismo e afirma, com mais vigor, a necessidade de um caminho próprio para a modernização brasileira, algo como um americanismo que ainda não havia nascido. A ideia de que o Brasil deveria emular os EUA, sendo essa nação o modelo para Sérgio Buarque, é questionável. Mesmo que surja em suas formulações algo como um EUA idealizado, ele não se constitui como um horizonte exemplar para o Brasil. Pelo contrário, em muitos casos, a brasilidade teria o que ensinar à modernidade americana.    


Também nessa segunda edição, por mais que a cordialidade mantenha relevância, ela se mostra como sendo menos um insight sobre a psique brasileira do que uma tentativa de abstração conceitual amparada por componentes sociológicos discerníveis. Seguindo o livro à risca, ao longo do século XX, com a industrialização, a ascensão das classes médias e a universalização do direito ao voto, desdobrou-se o processo de degradação e morte do homem cordial. Na prática, essa morte teria dado lugar a que tipo antropológico específico de nossa nação? Talvez não fosse exagerado pensar em uma realidade em que subsista a cordialidade sem o homem cordial. Se se entender por homem cordial um retrato da elite nacional, e não de um caráter indelével da população brasileira, conclui-se que a burguesia urbana, superando o patriarcado rural, também conservou algumas de suas características, por isso é ao mesmo tempo desconcertante e previsível que as classes dominantes atuais lembrem, ao menos em parte, as de antigamente, apesar de estruturas econômicas e arranjos de poder distintos. Afinal, hoje, ao lermos Raízes do Brasil, percebemos que se trata de outro país e, no entanto, do mesmo.


O privilégio dado a um motivo bem específico, e também relativamente pontual apesar de arquiconhecido, do pensamento de Sérgio Buarque acaba obliterando a crítica que ele opera, ou que esboça, da ordem liberal instaurada no Brasil. Sobre isso, seria preciso apontar para uma historiografia e uma sociologia que explora os temas levantados por Raízes do Brasil em matriz crítica3 . Ideia recorrente na tradição crítica nacional, é no ensaio de Sérgio Buarque que aparece bem desenvolvida a formulação de que o liberalismo e a democracia não teriam, para nossa elite, mais do que um nível meramente epidérmico, servindo de fina camada para revestir um poder, tanto político como econômico, exercido em flagrante contraste com a ideologia que o sustenta.      


Ademais, depois de uma rejeição de algumas ilusões do liberalismo em sua versão tupiniquim na primeira edição do livro, a ambiguidade com a qual a doutrina liberal é encarada em Sérgio Buarque já seria o suficiente para não se apressar em rotular o autor como liberal-conservador ou como precursor de autores liberais. Tanto por sua trajetória pessoal quanto por suas teorias, construir um Sérgio Buarque precursor do neoliberalismo, um fundamentalista de mercado avant la lettre, é um engano - e isso também se aplica a Raymundo Faoro. Contudo, é essa a via interpretativa de Jessé de Souza.


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Se, por um lado, é ao menos ambígua a relação de Sérgio Buarque com o liberalismo, não se pode dizer o mesmo de Raymundo Faoro. Nele, subsiste a utopia de um liberalismo que promova uma sociedade civil robusta e seja baseado na defesa do indivíduo contra o Estado. Não se fala do mercado contra o Estado, não se trata de fazer valer os direitos de propriedade e o aumento da produtividade contra a proteção social, mas de limitar o poder do Estado em favor do florescimento da sociedade civil, que se vê constantemente asfixiada pelos abusos e descomedimentos estatais. O que teria se desenvolvido no Brasil seria um paradoxo: um liberalismo estatal. Aí estaria o grande nó do pensamento liberal, ou protoliberal, brasileiro: ele serve ao Estado contra a sociedade civil - em franca oposição à tradição anglo-saxã. Seria um liberalismo que, em vez de fundamentar as características básicas do Estado Democrático de Direito, vai diretamente contra a democracia em nome da manutenção de um estamento, uma quase casta política no aparelho de Estado, enquanto os direitos individuais mais elementares são cotidianamente violados.


É daí que emerge o patrimonialismo como o conceito principal das formulações teóricas de Faoro, e parece ser essa a categoria que traz maior incômodo a Jessé, pois seria ela a responsável pela criação de uma consciência distorcida e falsa dos reais problemas brasileiros: "O tema do patrimonialismo, precisamente por sua aparência de "crítica radical", dramatiza um conflito aparente e falso, entre mercado idealizado e Estado "corrupto", sob o preço de deixar à sombra todas as contradições sociais de uma sociedade - e nela incluindo tanto seu mercado quanto seu Estado -, que naturaliza desigualdades sociais abissais e um cotidiano de carência e exclusão. Essa é a efetiva função social da tese do patrimonialismo no Brasil."4


Desse conceito como foco da análise, decorre, pensa Jessé, que o Estado impede um crescimento efetivo da nação, enquanto, de outro lado, o mercado é encarado como instituição virtuosa e necessária para o desenvolvimento. Logo, outra das bases teóricas dominantes das ciências sociais no Brasil também propaga que a solução para o país é seguir a trilha do liberalismo modernizador: somente entrando nessa rota seria possível superar o subdesenvolvimento nacional.


No entanto, do ataque ao patrimonialismo não se pode, como faz Jessé, deduzir que o mercado, para Faoro e também Sérgio Buarque, seja uma instituição impoluta. Na verdade, a crítica do patrimonialismo tem como função expor as desigualdades geradas pelo Estado, seja por meio de uma administração altamente ineficiente, seja através da corrupção, seja pelo encastelamento da classe política no aparato governamental. Mas a tese do patrimonialismo não aponta para a eliminação da intervenção estatal e, sim, para uma que seja razoável. Como diz o próprio Faoro, nem toda intervenção estatal carrega consigo a suposta marca indelével do patrimonialismo: “Seria grave erro ver o patrimonialismo em qualquer forma de intervenção do Estado na economia”5 . Acontece que, no Brasil, o Estado está - muitas vezes - no lugar errado, na hora errada. E é preciso dizer isso sem que se imagine qualquer idealização do mercado. Tanto o mercado quanto o Estado são instituições sociais perigosas, abstrações que podem ter grandes tendências antidemocráticas6 .


Em Faoro, especificamente, é possível demonstrar como o problema detectado é menos o Estado em si do que "a natureza que ele assume nas condições históricas brasileiras". Assim, o autor se configura – frisamos:  tanto por sua biografia quanto por sua obra - menos como um defensor do Estado mínimo, do que da realização de um Estado racional liberal-democrático, que aparece como uma impossibilidade na situação brasileira sem que seja superada "a forma estamental-burocrática"7 . Nesse sentido, o neoliberalismo dos anos 90 não representa, para Faoro, nada além de uma retomada do antigo liberalismo conservador, mofado e aparente, não tendo contribuído para minar a estrutura patrimonialista do Estado brasileiro8 . Ao contrário, em muitos aspectos, esse neoliberalismo apenas reforçou a estrutura patrimonialista, ainda que tenha se alçado ao poder com uma retórica de combate a esse vício. E, se essa nova ideologia, como a chama Faoro, procurou se legitimar com argumentos vindos de Os Donos do Poder, pode-se dizer que essa leitura foi equivocada e serviu apenas como verniz intelectual para validar um projeto político-institucional que não decorre naturalmente da obra.  


Se há alguns excessos culturalistas presentes nas formulações de Faoro, justamente criticados por Jessé, seria improdutivo se desfazer por inteiro da teoria sobre o patrimonialismo do Estado brasileiro9 . Com efeito, aos poucos, a conceituação atacada - despida de seu viés cultural - vai sendo parcialmente reabilitada pela história, materializando-se, o que prova que ela está longe de ser inócua para pensar a situação atual. Não seria preciso, no entanto, esperar pelas investigações para confirmar o patrimonialismo: o que vem à luz hoje não é surpresa, mas apenas a confirmação da suspeita que sempre esteve lá. Seria essa a revanche dos weberianos? Quando o PMDB, a encarnação máxima do arcaísmo na política brasileira, partido sem ideologia ou escrúpulos, chega ao poder, deve-se reabilitar a tradição de crítica ao patrimonialismo, e ir mais longe, mostrando como essa estrutura sobreviveu mesmo a governos de centro-esquerda. 


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Não podendo ser diluídos em rótulos do tipo "racismo de classe" ou "racismo cultural", os defeitos presentes nas obras de Buarque e Faoro - que existem e precisam ser pensados - não podem se imiscuir com o mau uso promovido pelos epígonos. Apesar desses problemas, muito mais do que um mero "charminho crítico", as teses avançadas por esses dois autores podem ter um significado importante para a teoria crítica brasileira. O quadro pintado por Jessé faz com que essas ideias se passem por mero entulho. O leitor incauto pensaria que dois clássicos das ciências sociais brasileiras não passam de ideólogos com frágeis teorias racistas, retrógradas e pseudocientíficas. Não podemos nos desfazer tão rapidamente deles em razão de leituras unilaterais10 .


Se a função social assumida pelas teses de Sérgio Buarque e Faoro valida projetos políticos elitistas, deve-se expor a parcialidade e incoerência das leituras que a sustentam, claramente incorretas. O opção de Jessé é, no entanto, outra: partir dessa função ideológica e mostrar como ela se adequa perfeitamente ao objeto, mostrar como essa é a decorrência prático-político necessária dessas obras. Dessa forma, a teoria é descartada em conjunto com distorções ideológicas.


Entretanto, uma leitura que não pressuponha essa continuidade entre as teses dos dois autores e o uso ideológico que delas foi feito seria fecunda ao pensamento crítico. Sem menosprezar prováveis discordâncias teórica-metodológicas, uma recepção alternativa das obras poderia partir da percepção de que uma das questões fundamentais presente tanto em Raízes do Brasil quanto em Os Donos do Poder é a da formação de uma ordem política estável e do florescimento e consolidação da cidadania no interior da sociedade civil. Tanto Sérgio Buarque quanto Raymundo Faoro não tem como horizonte a legitimação do mercado como única instituição reguladora em contraposição ao Estado, mas, antes, a constituição da cidadania como forma de normalização democrática da vida social. Por outro lado, essa interpretação poderia apontar para o fato de que o neoliberalismo não se coaduna com a ideologia que emana dos textos e que, portanto, o uso que os autores ou políticos neoliberais fazem deles não pode ser senão um falseamento de suas ideias, mero floreio retórico para dar um suposto embasamento erudito para suas ações.


Em um período de retomada das ideias neoliberais radicais no ambiente ideológico brasileiro, tanto por intelectuais quanto por movimentos políticos, cabe relembrar esses autores que, mesmo alinhados com alguns pressupostos da teoria liberal clássica, foram muito críticos de nossas elites e de seus descalabros, em franca oposição ao liberalismo apologético que tem ressurgido. Se há algum potencial crítico no liberalismo, ao pagarem tributo a governos indignos, patrimonialistas e que representam a velha elite política no que ela tem de pior, os atuais liberais apagam qualquer possibilidade de não serem apenas uma linha auxiliar da velha direita, que o diga o MBL.


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O outro alvo dos livros é a tradição sociológica marxista. Calcada exclusivamente na análise das relações econômicas, segundo Jessé, ela teve e ainda tem a tendência de desprezar todo o universo simbólico que emerge da infraestrutura material e que também alimenta a reprodução de desigualdades e opressões sociais. Sem nos deter na discussão de cada um dos autores, parece-nos novamente que Jessé faz críticas ora razoáveis, mas não novas, ora exageradas, assim como para os clássicos nacionais que se ancoram no pensamento weberiano.


Criticando tanto o dito liberalismo conservador quanto o marxismo economicista, Jessé sublinha que a esquerda estaria imobilizada por não ter o referencial teórico para pensar um modelo político e econômico que fosse além do que está posto. Presa ou aos argumentos culturalistas, ou às formulações de um marxismo ortodoxo e economicista, as forças progressistas não teriam conseguido combater esse discurso fantasioso do liberalismo conservador e racista. Não se trata, então, apenas de questionar a capacidade explicativa da sociologia de fundo ensaístico, mas de destronar os antigos para colocar em seu lugar a sociologia científica. Baseando-se nesse diagnóstico acerca da tradição sociológica brasileira e das deficiências práticas que dela decorrem, Jessé formula uma teoria social alternativa para interpretar o Brasil e o mundo. Emerge, assim, um outro tipo de sociologia, inspirada em Pierre Bourdieu e Charles Taylor. Sem entrar em discussões teóricas excessivas, cabem algumas observações gerais.


O paradigma de Jessé de Souza é o da internalização da dominação, da colonização dos espíritos pelas forças dominantes11 . Entretanto, enfatizar apenas a estrutura opressiva e os aspectos limitantes em desfavor das potencialidades dos agentes faz perder de vista as capacidades e os meios pelos quais estes atuam de forma crítica e criativa em seu cotidiano, a despeito das condições mais profundas de sua dominação. Não há, nos dois livros, nada sobre as lutas sociais que vêm sendo construídas no Brasil dos últimos anos, ou mesmo das últimas décadas, porque não há espaço para pensar essas lutas a partir do instrumental teórico adotado, já que isso seria admitir que os agentes são sujeitos minimamente conscientes de suas ações e críticos, eles mesmos, da realidade posta. Disso resulta que a teoria acaba mimetizando aquilo que visa combater: ela coloca a reprodução das desigualdades e opressões ou como algo inexorável ou quase impossível de ser superado. É preciso, ao contrário, pensar as classes em ação.   


A totalização do paradigma da colonização interna relega tanto a classe média quanto os mais pobres à condição de desconhecedores de seus próprios desejos, de suas vontades, seres continuamente alienados, o que torna muito difícil uma compreensão dos motivos pelos quais os indivíduos e as classes tomam essa ou aquela ação. Se há discordância ou desvio por parte das classes sociais, o esquema coloca isso na conta da alienação promovida pela mídia – explicação genérica para uma atitude que a teoria não compreende. Não se pretende dizer, bem entendido, que a difusão midiática não tem nenhum impacto nos sujeitos, que todos têm consciência plena do que se passa, que essas críticas seja desimportantes; no entanto, adotar esses fatores de maneira generalizada como os únicos privilegiados para a compreensão da situação contemporânea é enganoso. Por mais relevantes que sejam, eles não dão conta de, sozinhos, construir a interpretação complexa e nuançada que o momento exige.


A sociologia não têm condição ou posição privilegiada para desvelar a verdade das condições de dominação, dos interesses reais - contrapostos aos interesses aparentes - dos atores em conflito. Se assim for, os sujeitos tendem a ser apagados diante de uma sociologia que revela a verdade de suas posições, de suas possibilidades, de sua ausência de possibilidades, de sua dominação12 . A complexidade do real se esfacela nas claras explicações do sociólogo-rei, aquele que tudo entende e que tudo explica. Como decorrência desse enquadramento teórico um tanto dogmático, emerge uma narrativa eivada de fragilidades: uma simplificação excessiva e um esquematismo debilitante minam as possibilidades de uma análise mais apurada.


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Esse quase imperialismo sociológico do texto é, ao contrário do que se poderia imaginar, refratário à política. Isso porque todo seu discurso parece formar uma espécie de molde que se adequa a qualquer situação, a qualquer conjuntura, dado que os atores têm suas ações previstas pela teoria. Assim, não surpreende que Jessé exponha uma narrativa muito parcial do recente processo político brasileiro. Partindo de seu esquema, afirmar que um determinado projeto político não incorreu em erros graves, sendo apeado do poder apenas por uma confabulação obscura das elites e da mídia, é muito simples – e previsível -, e é exatamente esse o passo dado pelo autor.


É nessa linha que A Radiografia do Golpe nos propõe uma explicação sobre as condições que tornaram possível o impeachment. O autor recua a história até a crise do Mensalão, chamado de "primeiro ensaio", passa por Junho de 2013 e, enfim, deságua na deposição da presidente. Em sua narrativa, a turbulência originada em 2005 com as denúncias de Roberto Jefferson já mostrava a disposição da mídia, do judiciário e de parte da classe política em derrubar o governo petista, mas o movimento carecia de base social. Esse apoio popular se tornou possível com o abalo proporcionado pelas Jornadas de Junho de 2013 nos índices de popularidade de Dilma. A partir desse momento, a mídia e o judiciário se encarregam de construir esse novo corpo político, formado em essência pela classe média. Assim, nessa confluência calculada de elementos, o PT foi tirado do poder porque, em dado momento, todas as elites do país - econômica, política, jurídica e midiática -  conjuntamente se insurgiram contra o partido, e a classe média, insuflada pelo antipetismo, serviu de massa de manobra para consumar o plano, que não mais carecia de legitimidade popular. Essa narrativa é suficiente?


Estabelecer uma continuidade desmedida entre momentos históricos distintos - Mensalão, Junho de 2013 e o Impeachment – ofusca a possibilidade de uma análise mais profunda do processo político. Partindo dessa premissa, o único resultado é o discurso de que houve uma perseguição contínua ao PT. É anacrônico, e improdutivo, ler os eventos anteriores como levando necessariamente ao golpe de 2016, o que ocasiona uma incompreensão da conjuntura específica de cada um deles e de tudo que se passou entre um e outro. Houve, nesse meio tempo, muitas mudanças de postura da mídia, da oposição, do PT, das ruas, do judiciário. Dizer que a elite do dinheiro – banqueiros, líderes do agronegócio, burguesia industrial - foi ininterruptamente contra os governos petistas ofusca o fato de que o projeto de conciliação de classes adotado pelo partido foi sempre muito favorável às elites rentistas e empresariais. Mostrar a mídia e o judiciário como sendo sabotadores quase perpétuos do projeto petista desequilibra a narrativa e as nuances de posicionamento. Que se lembre que mesmo a chancela de parte da mídia ao impeachment foi tardia. Tanto políticos tradicionais quanto a imprensa, longe de criarem ou mesmo arregimentarem a base social que sustentou a remoção de Dilma, foram antes arrastados pelos idealismo radicalizado dos manifestantes e de alguns juristas. O quadro geral e a interação entre as ruas, o judiciário e a mídia parecem ser muito mais fluidos, dinâmicos e complexos do que um golpe inventado pelas elites econômicas e inculcado pela mídia na classe média.


Sem negar a existência de um ódio ao PT, da blindagem midiática a muitos políticos não-petistas, de atitudes duvidosas - senão claramente inconstitucionais - dentro da operação Lava-Jato e também da sanha golpista de parte da oposição, o relato do livro não se impõe sem mais. Começando pelo fato de que o irascível maniqueísmo antipetista que com justiça é alvo da crítica de Jessé é, no entanto, também o que ele reproduz, ainda que às avessas. Se há problemas no cenário atual, eles se encontram antes na assim chamada tradição liberal-conservadora da sociologia brasileira, na política econômica de FHC, na elite de São Paulo, na ditadura militar, nas Jornadas de Junho, na mídia golpista, no judiciário desequilibrado, na população tola que age contra seus interesses, mas não há quase nenhuma palavra - em um livro de cerca de 150 páginas sobre a conjuntura brasileira - sobre os muitos e graves erros cometidos pelo PT na mais de uma década em que o partido esteve à frente do executivo federal. Essa linha de raciocínio realmente parece plausível?


A política, as lutas, os atores, os acontecimentos são distribuídos em uma grande narrativa moralizante, e complacente, que coloca, de um lado, o bem e, do outro, o mal; de um lado, os que sofreram o golpe e, do outro, os que golpearam; de um lado, o PT e, do outro, o resto. E a narrativa do autor vai se resolvendo nas estruturas: se houve corrupção, é porque ela é inerente ao sistema; se houve crise econômica, é porque as crises são congênitas ao capitalismo; se a política econômica se revelou desastrosa, foi culpa da traição da burguesia industrial; se houve alianças erradas, é porque elas são intrínsecas à governabilidade. Nesse caso, onde fica a responsabilidade dos agentes nessas explicações? Como operar uma crítica dentro desse modelo de análise? Afinal, será que uma narrativa tão unilateral, em que o PT aparece como uma vítima de um processo que se desenrola independentemente do partido, dá conta de explicar o que ocorreu?    


Não se pode falar do PT como se estivéssemos nos anos 1980, como se o partido nunca tivesse passado pelo poder, não tivesse se desprendido das aspirações de suas bases, não tivesse se burocratizado, como se sua atuação legislativa fosse exemplar, como se suas espúrias alianças não tivessem se revelado menos táticas do que permanentes. Não raro virando as costas para os movimentos sociais e abraçando partidos nanicos e corruptos em nome da governabilidade, o partido se viu desguarnecido e desnorteado quando mais precisou de apoio, pois encontrou uma base muito fragmentada e desconfiada do real potencial de mudança que ele ainda poderia representar. Somado a esse processo de arco temporal mais amplo, Dilma adotou uma política inversa àquela que formou sua plataforma nas eleições de 2014. Assim, quanto mais o impeachment se tornava inevitável, mais o PT, sem rumo, tentava de tudo para agradar aos partidos, em especial o PMDB, que mais tarde dariam o xeque mate.


Cabe deixar claro que não se pode senão ficar estarrecido diante do que se passou: um vice que conspira abertamente contra a presidente; uma acusação baseada em fragilidade jurídica sem respaldo jurisprudencial; uma destituição que preserva direitos políticos; um devido processo legal com decisão a priori; essa abominação inominável levada adiante por uma gangue de corruptos profissionais, capitaneada por Eduardo Cunha e Michel Temer, confirma que nosso presidencialismo de coalizão é, na verdade, um presidencialismo às avessas, em que o presidente se torna refém do legislativo, rifando ministérios e outras benesses caso queira governar. Finalmente, quando as pedaladas e a assinatura de créditos suplementares se mostraram motivos insuficientes, o discurso generalizado foi de que o impeachment se dava pelo conjunto da obra. Ora, levando-se em consideração tanto um quanto outro argumento, haveria muitos outros impeachments, mas bem se sabe que não foi isso o que ocorreu. A argumentação era, afinal, puramente retórica, e o pungente dilaceramento do país se fez em nome da salvação da própria elite: nada mais antiquado e típico dos grupos dominantes brasileiros.


Ao impeachment, que como era de se esperar, colocou em tensão máxima a capacidade de nossas instituições e trouxe um desgaste político colossal, seguiu-se um limbo sem fim. Teria sido mais honesto com o país que a oposição não tentasse minar o mandato de Dilma a qualquer custo. É provável que se desenrolasse um governo medíocre, paralisado pelo Legislativo, com resultados econômicos péssimos e com pouca aprovação popular, seguindo-se uma derrota eleitoral em 2018.


O que houve foi a escolha deliberada – pela oposição, pela mídia e pelos movimentos de larga parcela da classe média - por um caminho pedregoso e que polarizou ainda mais o ambiente político já deteriorado. Não só as instituições tiveram sua já desgastada imagem completamente erodida, como também o Judiciário ficou muito comprometido com a estratégia de assumir uma postura não só agressiva, mas, em alguns casos, abertamente inconstitucional para perseguir o governo Dilma e o ex-presidente Lula. Somente pela divulgação de áudios que envolviam a presidente - independentemente de seu conteúdo -, o juiz Sérgio Moro deveria ter sido exemplarmente punido e afastado do caso. Visto como o herói do combate à corrupção, Moro, na verdade, prejudica, e muito, a Lava-Jato, que poderia ser uma operação sem os inúmeros vícios que ele e os medíocres procuradores do Estado de São Paulo, com toda sua soberba, nela incutiram, perpetrando ilegalidades e ridículas apresentações de power-point. Tudo isso nos leva a reafirmar um truísmo, o que deveria ser uma obviedade, mas não o é: o combate a qualquer ilegalidade, se não se faz dentro dos limites da lei, é injusto  


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Contudo, a perplexidade amarga diante do processo é agudizada pela percepção de que o PT talvez tenha sido, em muitos momentos, menos golpeado do que cúmplice. Essa impressão apenas se aprofundou quando da aliança nas eleições municipais com vários dos partidos que construíram o impeachment ou no apoio a Rodrigo Maia para a presidência da Câmara, revertido em última hora pela pressão da base. Diante dessa situação, cabe a dúvida: a narrativa do golpe continua a fazer sentido quando a atuação do partido muitas vezes a contradiz? A esse questionamento, e em seguida à leitura dos livros de Jessé, surgem outros: é possível sustentar o discurso do golpe sem que se caia no vitimismo? Pode-se acusar a articulação da direita sem se tornar acrítico em relação aos governos petistas?


Responder afirmativamente a essas perguntas prescinde de uma séria autocrítica. No entanto, espalha-se em parte da esquerda uma ojeriza a essa atitude, tida como algo proibido em certos meios. Ela seria coisa de quem duvida da própria posição ou de quem, inocentemente, faz o jogo da direita. Na verdade, através de uma indistinção entre esquerda e PT, elabora-se uma não tão sutil tentativa de afastar toda e qualquer forma de reflexão crítica sobre o legado petista. Há aí dois problemas: sugere-se que as críticas enfraquecem o projeto político do partido e também se reforça uma suposta identidade entre o PT e a esquerda, ou, em alguns casos, entre o PT e o “povo”.


Desde que essas críticas sejam razoáveis, é imprudente rejeitá-las. Para o PT - e, a rigor, para a esquerda em geral -, o discurso de que as críticas devem ser escondidas sob pena de enfraquecer o projeto de governo é não apenas falso, mas também danoso. Na verdade, é justamente a ausência de crítica que pode fazer – em especial, no médio e no longo prazo - o projeto perder sua credibilidade, seu apoio popular e, finalmente, desandar. Ademais, é preciso lembrar que o campo da esquerda não abriga apenas o PT, e que criticar o partido ou os governos petistas não significa se colocar, automaticamente, fora do dito "campo democrático-popular". Longe de fazer o jogo da direita, uma postura crítica realista não deixa de considerar todos os constrangimentos conjunturais impostos ao projeto petista, mas acredita que ele poderia ter ido, mesmo dadas as condições, além do que foi e que se a estratégia para chegar ao poder fosse outra, essas condições poderiam ter sido mais favoráveis às ações do partido13 .  


Dizem alguns que essa não seria a hora correta para se realizar uma autocrítica, visto que, uma vez o PT fora do poder, a esquerda já estaria excessivamente fragilizada. Esse seria, portanto, o momento ideal para se unir contra os adversários, não para abrir fogo amigo. Entretanto, a contradição entre crítica e união é apenas aparente. Por um lado, esse expediente não enfraqueceria a esquerda, seria, na verdade, o caminho mais rápido para que ela pudesse ser vista como um opção por parte do eleitorado que com ela se decepcionou, sem que se dependa de mitos, heróis ou líderes carismáticos para que isso ocorra; por outro lado, nada disso fragiliza a união necessária para combater o populismo e o autoritarismo de direita que ganham espaço na política nacional.       


Para que esse esforço crítico e de renovação seja operado de forma aprofundada, é preciso não pressupor, como faz Jessé, uma descontinuidade total entre o mandato de Dilma e o governo Temer, o que eclipsaria os graves problemas do governo anterior ao impeachment. Com Temer, não há pudor e nem meias palavras: a impostura, a incompetência, os desmandos, a desfaçatez, a cobiça, a insolência e a desmedida não são apenas evidentes, mas proclamadas em alto e bom tom como se fossem qualidades. O poder tira sua máscara e mostra sua face violenta, tosca e desprezível.  


Por outro lado, a austeridade fiscal inadequada, a reação violenta contra manifestantes, a corrupção, o desperdício de dinheiro público, as péssimas políticas ecológica e indígena, tudo isso, que continua acontecendo, ocorreu, provavelmente em menor grau, mas ocorreu, enquanto Dilma ainda era presidente. Que se lembre também que as desonerações, o controle de preços e o uso inconsequente do BNDES fizeram parte de uma política econômica desastrada no primeiro mandato14 e que se criou uma plataforma política e econômica irrealista para se concorrer à reeleição, o que resultou em um giro de 180 graus assim que Dilma venceu. É preciso que se encare de frente essa realidade: se o país piorou exponencialmente com Temer, não se vivia em um paraíso antes do golpe.


Uma parte não desprezível da esquerda dissidente apontou, com razão e lucidez, todos essas falhas e contradições do projeto petista, sobretudo o que se passou nos mandatos de Dilma. Contudo, alguns não pareceram dar a devida importância para o que se passava diante de seus olhos. Se é verdade que o PT já havia se embrenhado no que havia de pior na política brasileira - até quase o limite de se tornar indiferenciável dela -, apontar para uma continuidade absoluta entre Dilma e Temer é equivocado. Por mais que os erros do PT tenham sido graves, o impeachment não foi apenas uma troca natural de elites políticas. Basta ver que o que se seguiu ao impeachment foi uma agenda de reformas de uma agressividade ímpar, e mesmo que se diga que essas reformas teriam acontecido com Dilma, é difícil acreditar que elas se dariam da mesma maneira. Que seja interpretado como um golpe intra-elites ou até como um impeachment politicamente fajuto mas com amparo legal razoável, isso não muda o fato de que a agenda do novo governo é infinitamente mais regressiva do que a do anterior. Mas não apenas isso: ainda que não se concorde em nada com o governo Dilma, que não se queira defendê-lo de forma alguma, é difícil acreditar que a ruptura que ocorreu não prejudicou sobremaneira o país como um todo ao detonar o pouco de credibilidade que restava a nossas instituições e polarizar de forma ainda mais acirrada o ambiente político.  


Embora o discurso dessa faixa da esquerda possa parecer mais lúcido, porque mais crítico, ele é displicente; não porque crítico, mas porque desconsidera que um processo de tal magnitude não pode ser tratado como coisa menor. Assim, ficamos diante de interpretações da conjuntura que são antagônicas mas ambas insuficientes: entre a ruptura total e o continuísmo absoluto, entre o vitimismo e a desconsideração das vicissitudes do jogo político, entre um governo de esquerda indefensável e uma esquerda sem projetos de governo. Ora, é preciso ir além dessas dicotomias: manter e afiar cada vez mais a crítica, mas sem perder de vista que não basta atentar apenas para os pontos negativos de tal ou qual experiência, é preciso também ser propositivo, pensar na institucionalização de processos potencialmente emancipatórios. De outra forma, ficaremos no falso paradoxo de privilegiar ou a ocupação do Estado ou a construção de lutas; ou jogando todas as fichas na institucionalidade ou não refletindo sobre o que as instituições podem significar.  


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Todo esse processo de avaliação e balanço prescinde de uma postura de abertura. Mas não é esse tipo de posicionamento que se vê. Em seguida às últimas eleições municipais, por exemplo, muitos proclamaram a ignorância e a pequenez do "povo", que elegeu candidatos da direita e votou, enganado pela mídia e pela classe média, contra seus "reais" interesses. O próprio cacoete de falar do "povo" como um ente separado, do qual o enunciador não faz parte, ou do "povão", a massa ignorante que deve entender seu lugar no processo histórico, já é emblemático. Se a esquerda não se elegeu, é porque o povo é desinformado ou foi feito de tolo, porque não conhece os interesses de sua classe.


Seria preciso dizer que esse discurso é equivocado? Se ele habitasse apenas as redes sociais, já seria preocupante, mas ele também está estampado em revistas15 e está pelo menos subentendido nas formulações teóricas e políticas de autores influentes. O pressuposto que se esconde por trás do discurso que o povo votou errado é de que o governo do PT foi perfeito, ou quase isso, de que o projeto de poder está bem acabado e que é a mídia, o judiciário e o empresariado que sabotam o partido. Acontece que nem o governo do PT foi perfeito, nem o projeto político petista era isento de falhas graves, que, mesmo depois da derrocada, não foram avaliadas e repensadas, e tampouco houve, durante os 13 anos do partido no poder federal, uma sabotagem perpétua do partido. Antes, então, de questionar a qualidade do voto popular, argumento aliás de fundo retrógrado e elitista, seria preciso estar aberto a ouvir as aspirações populares, ouvir o que a população mais pobre espera de um governo, sem julgá-la como mal informada ou mal agradecida.


Sem que se assuma essa hipótese de abrir um diálogo franco com as classes populares, em que se esteja verdadeiramente disposto escutar, não se pode chegar a lugar algum. Diferente do que pensam alguns petistas e simpatizantes, os eleitores não estão sendo ingratos ou enganados pela mídia, apenas se afastaram do projeto porque, em dado momento, ele deixou de fazer sentido para elas. E se deixou de fazer sentido, além do desempenho econômico medíocre dos últimos anos, de níveis ínfimos de reforma agrária, da melhora substancial nos serviços de saúde e educação, foi também, mas não apenas, por se cansar de ver o partido envolvido em casos e mais casos de corrupção, sendo que a promessa inicial era justamente de romper com esse modus operandi da política brasileira. O que Jessé tem a dizer sobre isso?


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Em dado momento, o autor se questiona: "Não será a corrupção - definida como vantagem privilegiada em um contexto de presumida igualdade - uma parte fundamental e indissociável de todo sistema econômico-político moderno?"16 . A essa pergunta seria preciso responder com um claro e indistinto "não".  Não existem países capitalistas que possuem padrões diminutos de corrupção? Que se veja qualquer índice de transparência e combate à corrupção para se dizer que o problema não é grave em nosso país. Na mesma toada, afirma-se que: "A corrupção - compreendida como vantagem ilegítima em um contexto de pretensa igualdade - é, aliás, dado constitutivo tanto do mercado quanto do Estado em qualquer lugar do mundo."17 Ora, o preconceito, a xenofobia, o racismo, o machismo, a exploração mais vil também existem em outros países - e por causa disso devemos dizer que não são temas preocupantes na sociedade brasileira? Ou amplia-se tanto um problema até que ele deixe de ter contornos claros ou diz-se que ele existe mais ou menos em toda parte e, portanto, não sendo exclusivo da sociedade brasileira, não tem grande importância. Para finalizar, uma passagem sobre o mensalão: "Episódios como o "mensalão" ou os escândalos de corrupção no Estado - todos, sem exceção, estimulados por interesses de mercado (...)"18 . Quais foram os interesses do mercado no mensalão? Toda a corrupção no Estado é fruto de interesses do mercado? Por essas citações, fica claro que Jessé não dá grande importância à temática da corrupção, acreditando que ela é irrelevante diante de outros temas, e que a questão se resume aos agentes de mercado (o que não quer dizer que ela não passe por eles, como quer fazer crer certa doxa ultraliberal que preconiza um programa extremo de privatizações a fim de solucionar o problema da corrupção).   


Afinal, por que pautar a corrupção? Ainda que o tratamento dado pela mídia à questão seja inadequado e espetaculoso, isso não deve impedir que a esquerda faça uma reflexão sobre o tema. Nem moralismo pueril, nem aversão à Realpolitik, o problema da corrupção é, ao mesmo tempo, ético e estratégico. De um ponto de vista ético, que parece ser meramente ideológico para alguns grupos de esquerda, não se pode assumir que o uso de meios espúrios seja legitimado por um fim supostamente nobre. O que ocorre, em geral, é o contrário do que se quer: são os meios anti-éticos que acabam por macular e subverter o próprio fim a que se almejava chegar, e não o fim que, uma vez realizado, legitima em retrospectiva os meios degenrados. Junto do motivo ético, abdicar de disputar a narrativa do combate à corrupção é, atualmente, um verdadeiro suicídio político em termos de estratégia. Primeiro, porque o discurso anticorrupção é uma bandeira que vem ganhando a sociedade como um todo, ainda que recentemente tenha voltado à tona com a classe média. O problema é que essa mesma classe média tem um poder grande de mobilização, e não apenas mobilização própria, como também das classes populares. Segundo, porque a corrupção acaba, em geral, corroendo toda a esperança que as classes trabalhadoras têm na política, fazendo alimentar o perigoso discurso da antipolítica - e, como sabemos, a antipolítica não pode senão beneficiar a direita, e, mais, em geral, o que existe de pior na direita. Terceiro, porque é fantasioso o discurso de que se deve focar na redução das desigualdades em detrimento do combate à corrupção, ideia que mais afasta do que atrai o eleitorado, dado que são problemas, em larga medida, conexos, pois, drenando os recursos do Estado, a corrupção prejudica a população mais pobre e que depende dos serviços públicos (ainda que, evidentemente, o problema da desigualdade não se encerre no combate à corrupção, como sugerem, de forma ideológica, muitos grupos de direita).


Assim, a corrupção deve ser pensada não apenas com vistas à formulação de uma agenda voltada para a classe média, mas também para as classes populares - visto que o discurso anticorrupção também tem forte impacto nesses estratos da população. Nunca foi, e hoje é menos ainda, possível abafar a corrupção, ou mesmo sustentar sua necessidade, dizendo que assim se faz distribuição de renda; na verdade, o que é necessário, e possível, é um projeto de governo que não seja corrupto e consiga pôr em prática políticas sociais.


Caso a pauta do combate à corrupção não fosse senão um discurso para a classe média, ainda assim ela teria validade? Sim. Nas campanhas contra Collor, por exemplo, a esquerda ganhou espaço ao levantar a bandeira da ética na política e, nesse interregno, ganhou o apoio de parcelas significativas da classe média. Hoje, no entanto, a ideia da ética na política se tornou algo tortuoso, quando não obsceno, para a esquerda. Ética seria combater a desigualdade e a miséria. Isso é verdade. Mas não se deve misturar as coisas: se o combate à miséria é um componente ético da esquerda, o combate à corrupção não deveria ser diferente. Dizer que a corrupção não é importante; que não tem nada a ver com a desigualdade; que existe em outros países; que é também a sonegação das grandes empresas, só serve para escamotear o problema.


Pode-se criticar um programa, ou mesmo uma narrativa, que se paute exclusivamente no combate à corrupção, mas também é mais do que necessário criticar os programas que não se preocupam com a corrupção, que procuram embaralhar as coisas para não se falar do que deveria ser evidente: a corrupção é um problema preocupante. A punição exemplar de políticos e empresários corruptos não deve ser a única medida para solucionar o problema: fica claro que, sem uma reforma política, ponto que Jessé, com razão, enfatiza, as chances de se minimizar a corrupção estrutural são quase nulas. Acontece que criticar a corrupção enquanto resultante de motivos estruturais não exime que essa crítica seja igualmente operada no plano das individualidades - se não for assim, sai-se do moralismo para cair em outra armadilha: a ausência de qualquer responsabilidade dos indivíduos.


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As chamadas Jornadas de Junho foram e continuam sendo de difícil compreensão. Já há uma bibliografia razoável sobre o tema e muitas possibilidades de enquadramento teórico do ocorrido. De qualquer forma, percebe-se que, em larga medida, a maneira como se interpreta Junho condiciona a forma de atuação dos grupos políticos depois de 2013. Uma das interpretações mais difundidas na esquerda é aquela em parte elaborada, em parte sintetizada por Jessé: as manifestações de 2013 aparecem inicialmente como um movimento de setores excluídos ou semi-incluídos que, logo após a entrada da classe média, tornaram-se o "ovo da serpente". Nas palavras de autor, "a verdadeira novidade das "jornadas de junho" foi a reconstrução, repaginada e turbinada - uma espécie de versão 2.0 - de um ator político velho e bem conhecido da história brasileira: a fração da classe média moralista e conservadora, que sempre desprezou e odiou os pobres, representantes da maioria da população brasileira"19 .


Toda a classe média que foi às ruas é "moralista e conservadora" e nutre um "ódio aos pobres"? Se há parcelas claramente fascizantes, não se pode dizer que essa tipologia antiquada resolva o problema. Muitos foram provavelmente movidos menos por um ódio de classe do que pela percepção de que a economia não caminhava bem, de que o governo não tinha as soluções adequadas e de que a corrupção era um problema grave. À compreensão da classe média como uma faixa fascista, manipulada, ignorante, racista e contrária a todo tipo de projeto de combate à desigualdade, floresce uma incapacidade de entendê-la e de procurar dialogar com aqueles que, sem serem extremistas, decepcionaram-se com os governos do PT.


No entanto, para Jessé, as manifestações de 2013 aparecem apenas como um movimento de setores marginalizados que, logo depois da entrada da classe média, tornou-se mais ou menos o equivalente do inferno na terra. Isso é muito pouco a se extrair dessa experiência. Estamos, tanto à esquerda quanto à direita, diante de novas formas de se organizar as sensibilidades e a forma política. Os partidos, evidentemente, não saem de cena, mas passam a ser constrangidos a entender as ruas, algo que já não acontecia há pelo menos uns quinze anos. Porém não só isso, eles também, de alguma forma, passam a incorporar essa demanda por maior participação da sociedade civil na vida política nacional. Isso transforma a maneira como a política acontece e como deve ser pensada, mas nada disso parece ter impacto para Jessé, a não ser como uma grande convulsão social a abalar o PT.


Para além de não homogeneizar a classe média a partir daquilo que há de pior nela, deve-se rediscutir os possíveis significados de Junho de 2013. Longe de ser o tal "ovo da serpente", Junho foi, antes, uma caixa de pandora, inaugurando novas possibilidades de ação política - que foram, é verdade, logo entendidas e também apropriadas pela direita. Contudo, enfatizar apenas a continuidade entre 2013 e as manifestações antipetistas é esvaziar um processo infinitamente mais complexo e esquecer que também seria possível traçar uma linha de continuidade entre elas as mobilizações dos secundaristas na ocupação de suas escolas. Ou entendê-las como manifestações contrárias à blindagem patrimonialista operada pelo sistema político brasileiro, aí incluso o PT. Enfim, haveria muitos outras possibilidades mais férteis de se entender o que se passou do que apenas a narrativa proposta por Jessé.  


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Hoje, é fácil apontar para os erros, olhar retrospectivamente e, com ares de sabichão, mostrar como e por quê a experiência petista estava fadada ao fracasso. É esse o argumento derradeiro de alguns. No entanto, que se lembre que já há muitos anos políticos e intelectuais críticos sublinhavam todos os problemas aqui colocados, e também outros. Não são críticas que nasceram após os governos petistas no âmbito federal. Todas essas observações já estavam por aí. Mas não havia uma verdadeira disposição em ouvi-las e levá-las a sério. Tanto foi assim que os críticos tiveram, mais cedo ou mais tarde, que se colocar em posição de dissidência, e foram obrigados a se afastar do partido, sendo, então, acusados de traidores, de serem linhas auxiliares da direita, de ingênuos, idealistas etc.


Não se nega que o PT tem uma história de luta e mobilização. Mas, dado tudo que se passou, há uma recusa justificável a assumir uma defesa irredutível do partido. Que parcela significativa das novas gerações veja o PT apenas como parte do sistema partidário mais escuso, isso mostra como essa história ficou apagada pelos inúmeros erros cometidos nos últimos tempos. A tarefa histórica do partido parecia ser a de não aceitar as regras do jogo, de alterá-las, e não fazer o melhor possível dentro de uma estrutura viciada. De qualquer forma, não havendo uma mudança nas práticas, a esquerda não deve pagar os pecados pelos erros do PT e tampouco se apegar ao legado petista ali onde ele se afigura como indefensável, sob o argumento de que não se poderia fazer o que houve de positivo sem que se executasse também uma política claramente distorcida.


Caso não haja autocrítica do que se passou, corre-se o risco de a esquerda chegar ao poder, seja em 2018, seja depois, ou com o PT ou com outro partido, com práticas muito parecidas - o que, inevitavelmente, continuará dando armas para a direita e, mais cedo ou mais tarde, acarretará o descrédito e a nova perda não apenas de eleições, mas de capacidade de influenciar o processo político em razão da desconfiança popular. Se não se assumir, sem receios, o gesto de adotar uma postura crítica permanente em relação à esquerda, faz-se, na melhor das hipóteses, teoria crítica acrítica.


*


Depois de tantas considerações de ordem teórica e política, aonde chegamos? Se a corrupção não é uma singularidade nacional, tampouco combatê-la é desimportante; se a desigualdade é um grande problema em nossa sociedade, tampouco ela deve eclipsar tantos outros; se parte da classe média odeia os pobres, tampouco isso explica toda a classe média; se há elementos comuns entre as movimentações de 2013 e os protestos pró-impeachment, tampouco esse foi o único legado das Jornadas de Junho; se a imprensa encampou o golpe, tampouco ela o criou; se há descontinuidade entre Dilma e Temer, tampouco a ruptura foi absoluta; se o governo petista caiu, tampouco isso está apenas na conta das elites; se os mais pobres não defenderam o governo, tampouco isso foi por ignorância ou desinformação; se nossa tradição sociológica é insuficiente, tampouco ela é desastrosa ou racista; se houve confabulação golpista, tampouco isso exime a esquerda de realizar uma autocrítica; se as estruturas explicam algo, tampouco elas podem se sobrepor aos agentes; se a pretensão de cientificidade é importante, tampouco ela pode se arrogar a prerrogativa da última palavra; se o mercado não é o reino das virtudes, tampouco isso autoriza uma visão acrítica sobre o Estado; se do capitalismo derivam muitos problemas, tampouco ele é o fundamento de todos eles.    


Ao fim e ao cabo, a audácia da máquina de guerra argumentativa de Jessé revela-se menos uma crítica radical do que uma radicalidade unilateral e, por isso, insuficiente. Ao contrário do que prometem os livros, vemo-nos diante de um discurso que se recusa a olhar para seu lado da mesma forma implacável com que julga os opositores, emudecendo quando se faz necessário seguir com a crítica até o fim.


    
    

 







fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ




1 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 47.

2 A esse respeito, ver MOREIRA LEITE, Dante. O Caráter Nacional Brasileiro. História de uma ideologia. 6ª edição. São Paulo: editora UNESP, 2002, em especial p. 379-388; GUILHERME MOTA, Carlos. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Editora 34, 2008, em especial p. 35-37 para a crítica de Alfredo Bosi; BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 4ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 11-63. Há aí críticas menos sistemáticas, mas mais matizadas às ideias contidas em Raízes do Brasil.

3 SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos inícios do Romance Brasileiro. 5ª edição, São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000 e FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo, UNESP, 1997.

4 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 35.

5 FAORO, Raymundo. A aventura liberal numa ordem patrimonialista. Revista da USP, São Paulo, mar./maio 1993, 17, p. 17.

6 A argumentação de Jessé contra Buarque e Faoro aparece, de forma resumida, também em A Radiografia do Golpe, p. 26-42.

7 "Persistente Enigma", Gabriel Cohn, presente em: Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder, Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Biblioteca Azul, 2012, p. 10. A propósito das opiniões políticas, em geral lúcidas, de Faoro, crítico do modelo neoliberal e também dos interesses de grupos entrincheirados no Estado, ver também o volume A Democracia Traída (org. Mauricio Dias). São Paulo, Editora Globo, 2008.

8 FAORO, Raymundo. A aventura liberal numa ordem patrimonialistaRevista da USP, São Paulo, mar./maio 1993, 17, p. 26. Especialmente sobre o governo FHC, sabe-se que Faoro era crítico em relação à forma pela qual ele pretendia dar cabo ao patrimonialismo, e em especial foi crítico dos aspectos socialmente regressivos do modelo econômico imposto. Jessé também condena Faoro por fazer uso extraviado de conceitos weberianos ao utilizá-los em contextos históricos amplamente distintos dos quais eles foram elaborados. Sobre esse argumento, ainda no texto citado, Faoro expõe com clareza e consciência que sua teoria não é apenas uma aplicação da sociologia política weberiana, mas uma interpretação nova e criadora de conceitos específicos à compreensão da realidade nacional (mesmo que não presentes originalmente em Weber), refutando a crítica de uma suposta má utilização do aparato conceitual weberiano.

9 Aliás, em texto recente para o número 129 da revista Piauí, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad mostra como é possível retomar o conceito de patrimonialismo em uma chave teórica crítica e sem apelar a qualquer tipo de culturalismo.

10 Sem serem acríticas, as leituras propostas por Pedro Meira Monteiro - em especial em seu livro Signo e Desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil - e também o prefácio de Sérgio Costa à edição alemã da obra - chamado O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda -  nos parecem oferecer uma análise mais cuidadosa e equilibrada de Raízes do Brasil. Como contextualização histórica e teórica de Raízes do Brasil, ver o livro A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil também de Pedro Meira e a tese de doutorado de Marcus Vinícius Corrêa Carvalho, Outros Lados, Sérgio Buarque de Holanda: crítica literária, história e política (1920-1940).
Quanto a Raymundo Faoro, ainda não há uma interpretação acurada e crítica acerca de Os Donos do Poder, além de se verificar, salvo desconhecimento de nossa parte, uma ausência de estudos acerca das mudanças entre a primeira e a segunda edição da obra.

11 SOUZA, Jessé. A Radiografia do Golpe. Entenda como e por que você foi enganado. São Paulo: LeYa, 2016, p. 20 e 28-29; SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 9-13.

12 Essas críticas são em parte baseadas nas considerações tecidas por Jacques Rancière em seu livro Le Philosophe et ses Pauvres acerca da sociologia de Pierre Bourdieu.  

13 Sobre esse ponto, não me furto a citar um trecho de uma entrevista de 1989 à revista IstoÉ Senhor (com o título de “Uma Armadilha para o PT”), em que Faoro, ao ser questionado sobre a candidatura de Lula, diz: “Eu suponho que a força do PT, ao contrário do PTB, está exatamente em contar que o tempo não é tão urgente. O que havia com o PTB era que o tempo era muito urgente, tinha de ser naquele momento. E isso embaraçava a sua atividade partidária, embaraçava também a sua estratégia e suas táticas. Se o PT entender que o tempo não é crucial, vai se beneficiar muito com isso. O tipo de proposta do PT não é a Presidência da República. O importante são os meios para, na Presidência da República, promover aquelas reformas a que ele se propõe. Só a Presidência da República, desligada do programa, poderia até ser uma armadilha para o PT. O Lula poderia ser mais um presidente da República que quis muitas coisas e não pôde; e que não poderia, talvez, nem governar.”. Com seu instrumental teórico, criticado por Jessé, talvez Faoro tenha visto mais longe do que os que viveram para ver.

14 Sobre o tema da política econômica do primeiro governo Dilma, é curioso ver como Jessé procura traçar um paralelo com a tentativa de Geisel de criar um esforço de desenvolvimento capitaneado pelo Estado. Para o autor, o resultado, nos dois casos, foi uma oposição da burguesia nacional ao projeto. No final dos anos 70, isso teria significado o começo do combate à ditadura pelo andar de cima e, assim, do enfraquecimento efetivo do regime militar; em nosso tempo, seria a marca da traição da burguesia nacional ao governo petista, culminando na adesão ao golpe, com direito a patos de borracha gigantes. No entanto, surpreende que essa comparação seja feita por Jessé como algo positivo. Ora, essa retomada feroz do desenvolvimentismo pela ditadura não deveria ter servido de alerta para os possíveis perigos contidos nesse modelo? Como ideias muito próximas dessa, e executadas de forma bem mais desordenada, poderiam ter um desempenho positivo em pleno século XXI? Parecia ao menos muito improvável que essa estratégia econômica fosse bem sucedida, com ou sem o apoio da burguesia industrial (diga-se de passagem que contar com esse apoio foi de uma ingenuidade extrema).
Por outro lado, o tópos da comparação – de um ponto de vista negativo - entre a política econômica do governo Geisel e do governo Dilma foi a ponta de lança dos liberais. Os dois seriam estatizantes, intervencionistas etc. Ora, se há alguma verdade na crítica do estatismo exacerbado, ela deveria incidir menos no desenvolvimentismo em si do que na forma em que ele foi implementado: desorganização, falta de regras claras, desatenção com as restrições fiscais, diminuta preocupação ambiental, violação dos direitos dos povos indígenas. Nada disso é parte obrigatória do receituário desenvolvimentista, e não por acaso alguns dos economistas ditos heterodoxos não se identificaram com o que foi feito, vocalizando as críticas desde muito cedo.  
Note-se, no entanto, que o fracasso da Nova Matriz Econômica não significa uma condenação a priori de todo tipo de projeto desenvolvimentista. Significa, no entanto, depois de tantas experiências históricas, uma exigência de que ele seja inteiramente repensado, levando em conta tanto as críticas propriamente econômicas quanto ecológicas e indígenas, e sobretudo executado de forma muito cuidadosa, para que possa ganhar um novo significado.

15 Ver, por exemplo, a chamada do semanário CartaCapital na semana do dia 7 de novembro. A capa trazia a manchete: "Pobre povo brasileiro" e, como subtítulo: "As eleições municipais provam sua incapacidade de agir politicamente e entender que os golpistas o escolhem como vítima. E pobre Brasil...".

16 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 150. Há muitas outras considerações nos dois livros, e também em inúmeras entrevistas, que seguem pelo mesmo caminho.

17 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 91.

18 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. Ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 59.

19 SOUZA, Jessé. A Radiografia do Golpe. Entenda como e por que você foi enganado. São Paulo: LeYa, 2016, p. 100. Também em A Tolice da Inteligência Brasileira, Jessé tece considerações sobre as manifestações de junho de 2013, p. 239-252.

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