revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Karina BIONDI

Uma ética que é disciplina:
Formulações conceituais a partir do ‘crime’ paulista

 


Os conceitos de ética e de disciplina, como se sabe, já foram intensa e extensamente trabalhados por diversos autores nas Ciências Humanas, no geral, e na Filosofia, em particular. Não cabe, no espaço deste artigo, visitá-los um a um, buscar seus pontos de congruência e divergência ou, ainda, elaborar uma síntese. Este artigo pretende, diferentemente, apresentar outra formulação acerca desses conceitos, uma formulação que vem das ruas e das prisões do Estado de São Paulo e que é realizada por meio da prática etnográfica. Afinal, essa é uma das principais características da antropologia: conferir primazia às reflexões daqueles sobre os quais se escreve.
Neste sentido, tanto ética quanto disciplina aparecerão, neste texto, realçados em itálico, identificando tratar-se de noções mobilizadas pelos correrias entre os quais realizei minha pesquisa de campo. Os correrias, também chamados de ladrões ou malandros, são aqueles que não só se dedicam a atividades criminosas, mas que são do crime. Em São Paulo, em função de sua hegemonia, o Primeiro Comando da Capital (PCC) se tornou sinônimo de crime. Mas crime, aqui, não se restringe a atividades que afrontam o Código Penal. Crime, nas prisões e nas quebradas de São Paulo, diz respeito a uma forma de condução da existência. E isso está diretamente relacionada às noções de ética e disciplina, termos intercambiáveis para eles.
Assim, este artigo abordará a ética do crime ou a disciplina do PCC como formulações centrais na condução das existências dessas pessoas. A exposição será feita por meio de descrições de situações vivenciadas em trabalho de campo, intercaladas com as reflexões e conexões que tais situações me suscitaram.

* * *

Em um dos primeiros dias em que estive na Favela Cadência, Murilo1 perguntou se eu gostaria de “dar um rolê pela quebrada”, para conhecê-la. Disse que Lúcio me levaria. Aceitei o convite e o acompanhei. Eu já havia andado pelas vielas daquela quebrada, mas esperava conhecer algo novo, ter a oportunidade de conversar melhor com Lúcio e, quem sabe, conhecer outros correrias. Com efeito, naquela breve caminhada presenciei três circunstâncias bastante distintas em que a noção de disciplina (ou de ética, já que para os ladrões são termos intercambiáveis) foi acionada.

A primazia das ideias

A primeira circunstância ocorreu quando Lúcio contava histórias sobre como era a quebrada “na época dos malandrões”.2 Em determinado momento da nossa caminhada pelas vielas, encontramos Dona Nívea, que me foi apresentada como uma das primeiras moradoras do local. Estimulada por Lúcio, ela passou a participar da conversa e relatou que, ‘naquela época, não podia nem olhar pros ladrões que tomavam conta da favela’. Disse que qualquer reclamação tendia a desencadear atos violentos, que qualquer queixa poderia resultar em retaliações, inclusive com a expulsão do morador de seu barraco. Ela, então, ilustrou o que dizia com o caso de seu vizinho, que fora expulso por um desses malandrões, mas readquiriu o direito ao seu barraco quando o PCC chegou na quebrada. Nesse momento, Lúcio se afastou para conversar com outro rapaz que passava por ali e Dona Nívea continuou:

     
 

Hoje em dia os meninos têm o maior respeito com nós, moradores. Às vezes, por exemplo, eles abusam do volume do som. Daí eu já chego neles e eles me tratam na maior humildade, pedem desculpas e abaixam o som. Eles têm educação, a disciplina deles, né? Dependendo do caso, falo com o Murilo, que sempre resolve meus problemas. Que nem na época que a polícia tava vindo direto aqui na favela e eu pedi pra eles não ficarem mais aqui do lado. É que eu não quero envolvimento com esses negócios de crime, sabe? Então eles respeitam. Me respeitaram e nunca mais se juntaram pra conversar aqui do lado. E eles me ajudam bastante também. Essa laje que eu bati na minha casa, foi eles que pagaram. São muito bonzinhos, respeitosos. Não tenho do que reclamar[ 3 ].

 
     

 

Lúcio voltou e nos despedimos de Dona Nívea. Ele comentou:

     
 

Viu só? Naquele tempo a situação era outra, não tinha disciplina. Era tudo na faca, na bala. Cobravam água, luz, tudo dos moradores. E ai de quem reclamar! Não tinha respeito. Qualquer fita já chegavam intimidando, dando tapa na cara, mostrando arma. Hoje ninguém mais anda armado, a não ser quando precisa, mas é raro. Porque tudo hoje se resolve na ideia. E o morador fica mais tranquilo também, porque ele sabe que nóis tem uma ética e não vai expulsar ele do barraco sem mais nem menos. Porque nóis age pelo certo.

 
     

 

Percebi que, embora ele estivesse conversando com o rapaz a cerca de dois metros de Dona Nívea e de mim, Lúcio estava atento à nossa conversa. Aproveitei para perguntar sobre como o PCC entrou na quebrada, ao que ele respondeu: “Naquela época a situação era outra. Tinha os malandrão que explorava a população, que humilhava. Com eles, não tinha ideia, foi na guerra mesmo. Uma pá de nego morreu naquela época. O bagulho foi doido, mas o certo prevaleceu”.
Nessa primeira circunstância em que me deparei com o acionamento da noção de ética, Lúcio distinguiu três situações diferentes na quebrada, que se sucederam uma à outra. A primeira dizia respeito à ‘época dos malandrões’, em que não havia disciplina. Assim os ladrões que decidiram somar com o Comando e lutar pela expansão do PCC viram a situação. Inevitavelmente, os ladrões expulsos ou mortos viriam essa situação de outra forma. Trata-se, afinal, de outro ponto de vista, como Marques e eu apontamos em outra ocasião (Biondi e Marques, 2010). Mas, segundo avaliação dos que “corriam com o PCC”, ali não havia disciplina e o certo deveria prevalecer mesmo se fosse necessário travar uma guerra. Nessa segunda situação, relativa à “época das guerras”, andar armado, fazer emboscadas e matar os inimigos era o certo. Afinal, aquela era uma situação em que havia uma oposição à disciplina do Comando, em que o certo era evitar a qualquer custo a circulação de ideias divergentes aos ideais do PCC. A terceira situação exposta por Lúcio diz respeito aos tempos atuais, de hegemonia do Comando, em que só circulavam ideias condizentes com sua disciplina. Nessa situação, mais do que um objetivo, o certo se tornou um método presidido por uma ética que, respondendo sempre aos ideais do PCC, prioriza as ideias.
O termo ideia está presente de diversas formas na malandragem. Nenhuma delas tem relação com as concepções filosóficas do termo, seja no sentido de lógica, de razão, de pensamento, de objeto de pensamento, de projeto, de opiniões ou de teorias (Lalande, 1999). Está longe, igualmente, da tradição de pensamento que, embora enraizada no platonismo e no aristotelismo, extravasou há séculos a filosofia.  Isso porque, em primeiro lugar, as ideias, na malandragem, não compõem um plano próprio e nem estão em um plano do sensível; elas sequer estão ligadas diretamente ao pensamento, formulação ou invenção. Nunca se diz, na malandragem, “eu tive uma ideia” ou “estava pensando em uma ideia”. Em segundo lugar, é somente quando as ideias se tornam manifestas que passam a ganhar existência na malandragem. É quando passam a se acoplar a outros elementos e se tornam movimentos, chegando a ser confundidas com eles. Em outras palavras, elas só existem quando em fluxo pelo mundo, quando compartilhadas, desvinculadas de autorias de criação. Nesse ponto, inicialmente as ideias estariam relacionadas a relações interpessoais: “vou chegar naquele maluco e dar logo uma ideia”, “então eu lancei a ideia”, “chegou uma ideia”, “vai ser dada a ideia”. Por fim, em terceiro lugar, uma vez lançada, ela passa a ser, ao mesmo tempo, um centro de convergência de forças que disputam seu rumo e a fonte que oferece direção e confere atributos a essas forças. Aqui, as ideias assumem uma existência própria: sem deixar de ser resultado das forças que incidem sobre elas, são também capazes de constranger essas forças. Elas não mais dizem respeito exclusivamente a pessoas ou a relações interpessoais, mas se alastram, repercutem, se fortalecem, são colocadas no gelo, são enterradas ou, então, se consolidam como uma orientação com validade geral e amplo alcance na malandragem.
Etnograficamente, é possível notar os esforços dos malandros em lançar ideias que lhe sejam apropriadas, tentar fazê-las repercutir e fortalecer, mas vemos também as operações realizadas com a intenção de colocar uma ideia no gelo ou fazê-la morrer. Isso porque a dinâmica das ideias está na base forma como esses malandros conduzem suas existências. Ela é, também, a base sobre a qual repousa o PCC, ele próprio uma ideia de amplo alcance e validade geral.
Naquela breve caminhada com Lúcio, como mencionei acima, vi que na situação atual, de hegemonia do PCC, o certo se tornou um método presidido por uma ética que prioriza as ideias. Isso me fez enxergar como essa primazia foi definitiva para que ‘uma chance de vida’ fosse dada a um morador de outra quebrada, o Parque Harmonia, ainda em uma circunstância de expansão do PCC. Ao caminhar com Rubens pela quebrada, passamos em frente a um bar e ele cumprimentou, de longe, um dos homens que estavam sentados à mesa tomando cerveja. A respeito de outro homem que estava no bar, Rubens comentou:

     
 

- Esse aí teve que largar o crime pra ficar aqui na quebrada.
- Ele colava com os coisa? – perguntei.
- É, ele somava com eles – Rubens confirmou.
- Então nem todos foram expulsos ou morreram... – comentei.
- O Comando dá oportunidade, doutora. Se o cara não matou ninguém, se não fez nada grave, o cara vai ter uma oportunidade. Mas pra ficar, ele teve que largar o crime e virar trabalhador. E tá sempre sendo observado, porque tem que andar na disciplina.
- Na disciplina do Comando, mesmo não sendo mais do crime? – perguntei.
- É... Todo mundo aqui anda na disciplina. Mas ele a gente fica mais de olho, porque sempre tem o receio dele ainda querer seguir a disciplina de antes – respondeu Rubens.

 
     

 

Com isso, Rubens mostrava que, se anteriormente aquele homem fazia oposição à disciplina do PCC, hoje, para permanecer na quebrada, precisou “largar o crime” e, adicionalmente, “andar na disciplina”. Sua fala explicitou também algo que já era bastante claro para mim: a ética do Comando é vivida por todos os moradores da quebrada, não só por quem “é do crime”. Para alguns, como o antigo opositor ao Comando, ela aparece como algo que deva ser vivida. Para outros, contudo, a adesão a ela não aparece como obrigação. Pelo contrário, esses mesmos moradores cobram os irmãos (integrantes do PCC) quando avaliam que eles estão fugindo à disciplina:

     
 

tem uma família aqui do lado que tá passando necessidade. O que os irmãos de qualquer outra quebrada fariam? Pelo menos compareceriam com uma cesta básica. Alguma ajuda, né? Mas os daqui tão totalmente sem ética. Eles não tão nem aí pra população. Resultado: nós aqui fizemos uma vaquinha pra comprar uma cesta básica. Mas não vai ficar assim. Porque é eles que deveriam dar essa atenção. Já falei pra eles. Senão a quebrada vai ficar malvista. Vão achar que aqui não tem disciplina.

 
     

 

Mais uma expressão utilizada por Rubens chamou minha atenção. Refiro-me à “disciplina de antes”. Isso, à primeira vista, contradizia a afirmação de Lúcio, “naquele tempo, não tinha disciplina”. Perguntei, então, a outro malandro se há (ou havia) algo a que os “ladrões das antigas” (de épocas anteriores ao PCC) ou os coisa dão (ou davam) o nome de disciplina (ou ética). Ele respondeu: “Olha só... Eles já tinham um proceder, mas era uma outra disciplina”. De fato, o proceder entre os que se opõem ao PCC ou entre os “ladrões das antigas” já foi abordado por Marques (2014). Entretanto, esses ladrões não fazem parte do escopo de minha pesquisa. Isso me leva a reformular minha dúvida: o que leva os malandros a atribuírem uma disciplina à oposição ao PCC ou ao que havia antes da disciplina do Comando?
Essa reformulação me fez lembrar de outro momento de meu trabalho de campo. Assistia a um noticiário na companhia de um irmão e a matéria em pauta enfatizava a seguinte declaração do governador do Estado de São Paulo: “quem não reagiu, está vivo”. Ele fazia referência ao assassinato, cometido por policiais paulistas, de nove suspeitos de participarem de um debate.4 Diante da frase do governador, o irmão comentou: “Pronto, o governador deu o aval. Agora é que a polícia sai matando mesmo! Por que... O que ele falou? A polícia matou nove e ele falou que é isso mesmo. Agora segura a matança... Você vai ver, doutora”. Mesmo sabendo que a segurança pública do Estado de São Paulo opera em outras bases que não a do aval (e, consequentemente, das ideias, uma vez que o aval é também uma ideia), o irmão fez uma leitura da fala do governador de acordo com o seu modo de produção de conhecimento. Com isso, ele elaborou uma situação sobre a qual lançou considerações e previsões de movimentos futuros, de consequências das palavras do governador.
Isso me fez enxergar outras ocasiões nas quais os ladrões fazem operações analíticas baseadas em seu modo de produção de conhecimento, de assuntos não estritamente (ou não originalmente) ligados ao crime. Isso vale para o que o irmão Rubens chamou de “disciplina de antes”. Vale também para a fala de Lúcio. Embora tenha afirmado não haver disciplina naquela época, sua análise se baseou nas situações que ele elaborou: “a situação era outra”. As falas de ambos, contudo, destacam a existência de uma disciplina própria ao Comando, inexistente (ao menos dessa maneira) em uma época anterior, que prioriza as ideias.

A condução das situações

Ainda hoje, entretanto, há regiões nas quais os malandros dizem não haver disciplina. Isso me foi mostrado na segunda circunstância em que a noção de ética foi acionada durante a caminhada que realizava na Favela Cadência em companhia de Lúcio. Depois de nos despedirmos de Dona Nívea e comentar a “época dos malandrões”, Lúcio perguntou se eu queria conhecer a cracolândia de lá. Aceitei. Entramos em algumas vielas, passamos por outra biqueira e, quando as casas deram lugar a uma região de matagal, ele anunciou que chegávamos ao nosso destino. Estávamos na periferia da favela. Entramos na pequena mata por uma trilha. Senti forte cheiro de detritos e esgoto e avistei restos de panos e lixo jogados no chão. Subimos um pequeno morro, em direção a algumas pessoas que estavam lá, a quem Lúcio cumprimentou: “Boa tarde! Tô trazendo ela pra conhecer aqui, que ela tá escrevendo um livro sobre a comunidade”. Uma mulher, que preparava um cachimbo, fez uma careta para mim. Foi a única que reagiu à nossa presença. As outras pessoas não esboçaram nenhuma reação, pareciam nos ignorar completamente. Elas sequer voltaram seus olhares a nós. Algumas delas dormiam no mato, outras fumavam seus cachimbos e outras, ainda, permaneciam imóveis, com seus olhares fixos no vazio. Havia, ali, um rapaz muito bem vestido (de calça e camisa sociais, bem limpas), mas todos os outros vestiam roupas muito desgastadas e sujas.
A forma como fomos recebidos parecia menos uma expressão de apatia do que uma manifestação de que nossa presença gerava um desconforto para os que ali estavam. Decidimos voltar à favela. Lúcio parecia contente por ter me levado lá:

     
 

- Aposto que você nunca esteve num lugar assim, né?
- Nunca estive mesmo... É triste, né?
- Ninguém vem aqui. Até os irmãos, quando têm que vir, vêm armados. É que aqui não tem disciplina. Não se sabe o que eles podem fazer. Aqui não é a mesma ética da quebrada – disse Lúcio.
- E na quebrada não se fuma crack, né? – perguntei.
- Não! Eles só colam lá pra comprar e vêm usar aqui – respondeu.

 
     

Chegamos novamente à biqueira, que percebi estar estrategicamente localizada logo na entrada da favela. Dois homens que deixavam a mata quando chegamos estavam ali comprando crack. Lúcio confirmou minha suspeita: a localização da biqueira era uma forma de evitar o trânsito dos noias (neste caso, usuários de crack) pela quebrada. “É que eles não têm disciplina”, explicou. Mais uma vez, me deparei com duas afirmações aparentemente contraditórias, dessa vez provenientes de um só malandro: “Aqui não é a mesma ética da quebrada” e “eles não têm disciplina”. Mas, como no caso dos malandrões, as falas de Lúcio evidenciavam uma ética própria ao PCC que não alcança os noias.
Isso não quer dizer, contudo, que os noias não conhecem a disciplina do Comando. A esse respeito, a fala de um interlocutor de Rui (2014) é exemplar:

     
 

Parecia conhecer quem, segundo ele, “corre com o crime”, mas insistia em se afastar, discursivamente, de tais pessoas: “eu até respeito os irmãos, peguei cadeia, conheço muitos, conheço as ética, mas não é a minha não. Sou mais livre, meio bicho solto”. (: 292).

 
     

Resistir à ética do Comando não é necessariamente confrontá-la. Não há confronto possível ou desejado entre os noias e os que “correm com o Comando” porque não há sequer a pretensão de incluí-los, nem a de aniquilá-los. Diferentemente, eles são mantidos à distância, mas a uma distância que os permita tanto chegar à entrada da favela para comprar crack, quanto circular e até residir na quebrada, desde que o consumo da pedra não ocorra ali. Ou ao menos aos olhos da população, como no Parque Harmonia, onde o irmão Rubens cedeu um barraco seu aos noias. Além disso, os interlocutores de Rui (2014), a quem a malandragem qualifica como noia, colocam esse termo como uma situação, uma “situação-noia”. Assim, a relação dos noias com a disciplina do Comando nada tem a ver com a dos malandrões. Não há, nesse caso, uma disputa que possa levar à guerra. Isso porque não há noias a serem vencidos, mas uma “situação de noia”, com a qual cabe a cada usuário lidar.
Embora ao consumo de pedra os malandros atribuam sua forma mais extremada, existem variadas maneiras de se tornar noia: por meio do consumo de crack, de cocaína, de bebidas alcoólicas. A questão pertinente à disciplina não é a substância ou a opção pelo seu consumo, mas o controle de si na interação do usuário com a substância e, subsequentemente, a interferência dos efeitos do consumo nas situações vividas por ele. Não se vê problemas, por exemplo, no alto consumo de cocaína. São muitos os relatos em que os malandros se gabam pela quantidade que foram capazes de consumir e, ainda assim, manterem-se na disciplina. Nessas ocasiões, eles ostentam, por um lado, a fartura do consumo e, por outro, sua capacidade de se manterem no controle de suas situações. Neste sentido, os malandros ponderam que o problema não é o uso e nem a fartura, a questão está em “saber usar”. Como argumentou um ladrão, “ninguém colocou uma arma na cabeça do cara e obrigou ele a comprar, a usar droga. Ele foi porque ele quis. O problema é que tem que saber usar, senão fica desgovernado... Daí fica sem disciplina”.
Assim, quando o consumidor perde o controle sobre si, ele deixa de ser responsável pelos seus próprios atos, perde sua dignidade, sua hombridade, seu proceder, ele deixa de ter disciplina e, nesse momento, se torna um noia. Como argumentou um ladrão,

     
 

Quando a droga frita o cérebro do cara, ele já não tem mais discernimento do que tá certo. Eles roubam até a mãe... Não dá pra falar que ele vai correr pelo certo porque, pra ele, em primeiro lugar vem a droga... É pela pedra que ele corre... E ele vai fazer qualquer fita pela pedra.

 
     

 

Os “trecheiros” e “pardais” etnografados por Martinez (2011)5também apontam o descontrole como o grande problema relacionado ao consumo de álcool (2011, p. 104) e de crack (2011, p. 111). Tanto para eles quanto para os correrias, o uso de drogas não é avaliado em termos de certo e errado, de permitido e proibido. Entretanto, se para os primeiros o prejuízo principal do descontrole está relacionado à falta de cuidado de si (Martinez, 2011, p. 112), para os malandros ele se expressa na incapacidade de os usuários de drogas “andarem na disciplina”, ao impedir que eles corram pelo certo. Nesses termos, se por um lado a disciplina do Comando não impõe restrições quanto ao consumo de entorpecentes, por outro, os efeitos desse consumo podem afastar os usuários da disciplina.
Se a primeira circunstância sob a qual me deparei com a questão da ética do Comando durante minha caminhada revelou como a disciplina está associada à primazia das ideias, a segunda circunstância fez aparecer a importância de se conduzir apropriadamente as situações. Se falta disciplina aos noias, é porque o descontrole impede que eles elaborem, avaliem e conduzam as situações com discernimento e contribuam ativamente na dinâmica das ideias.

Controle de si

Retorno, agora, ao meu passeio pela quebrada para apresentar a terceira ocasião em que a ética foi mencionada. Depois de conversar com alguns correrias que estavam na biqueira, Lúcio e eu entramos em outra viela. Ele me conduziu a um lugar da favela onde os barracos ainda eram feitos de madeira.6

     
 

- Você nunca tinha vindo pra cá, né? – perguntou Lúcio.
- Teve um dia que eu vim, com o Giovani, que trabalha lá no Centro Espírita – respondi.
- Ah! Deus está do meu lado e eu estou com ele! – exclamou Lúcio, fazendo o sinal da cruz.
- Mas lá não é umbanda...

 
     

Avaliei que sua reação advinha de uma concepção corrente entre os correrias de lá, que viam o centro espírita como um terreiro. Certa vez, um deles me perguntou se “rola uns tambores lá” e eu o levei para conhecer o centro (que já está na região há décadas). Depois disso, nunca mais esse correria tocou no assunto, mas minha impressão era de que eles não faziam muita distinção entre kardecismo, umbanda, candomblé, mas nutriam especial rejeição às religiões afro-brasileiras. Por isso, tentei desfazer o mal-entendido, mas fui interrompida por Lúcio, que confirmou minhas suspeitas ao fazer novamente o sinal da cruz com as mãos, enquanto dizia:

     
 

- Cada um, cada um, mas Deus está comigo e eu com ele! Tô fora dessas fitas de macumba!
- Lá não é fita de macumba, não. Aliás, hoje em dia não se vê muito essas coisas de macumba, né? – perguntei, apropriando-me da expressão a que ele se referia às religiões afro de modo a fazer prosseguir a conversa.
- Ah, tem... Os irmão tudo têm o corpo fechado.
- É verdade?
- É... Tudo os irmão – confirmou Lúcio.

 
     

“Fechar o corpo” é um procedimento realizado no candomblé com a intenção de protegê-lo (Sansi, 2009). A informação de que os irmãos recorriam a essa prática parecia ir de encontro à rejeição que pareciam ter com relação às religiões afro-brasileiras. Isso me fez lembrar de uma conversa que tive com Maria e Eugênio, quando ela me contou que um dos irmãos da quebrada estava “fora do ar” porque tinha “feito a cabeça” e estava “de resguardo”. “Fazer a cabeça” é, segundo Goldman (2009), um complexo ritual de iniciação no candomblé no qual as divindades são “feitas ao mesmo tempo em que são feitas as pessoas dos próprios iniciados, aqueles que deverão ser possuídos pelas divindades por ocasião de cerimônias específicas” (2009, p. 119). Embora também seja chamado de “fazer o santo”, não diz respeito exatamente à produção de uma divindade, pois elas, “como as pessoas, já existem antes de serem feitas – ainda que, claro, não existam da mesma maneira” (2009, p. 120). Neste sentido, “fazer a cabeça” consiste em “compor, com os orixás, um santo e uma outra pessoa” (2009, p. 119). Esse ritual requer um período de “resguardo”, aquele pelo qual passava o irmão, segundo Maria. “Ele tem que tomar muito cuidado pra nem trombar com a polícia, porque é muita negatividade, estraga toda a feitura” – disse Maria. Afirmei que achava estranho não ver mais religiões afro manifestadas dentro das cadeias e Eugênio, que havia saído da prisão há poucos dias, comentou: “Na cadeia não pode. Eles falam que não é lugar pra isso. Já vi nego apanhar até o santo subir de novo!”. Na ocasião, comentamos o quanto isso parecia incoerente e assumimos nossa incapacidade de entender como alguém iniciado no candomblé seria capaz de impedir as manifestações dessa religiosidade, quando na cadeia.
Minha conversa com Lúcio reforçou o que eu via ainda como uma incoerência, ainda mais ao confrontar sua declaração (“os irmão tudo têm o corpo fechado”) com as práticas religiosas de outros irmãos que conheci, frequentadores assíduos de cultos em igrejas evangélicas.7 Como Velho (1997) alerta a respeito da pentecostalização, o fundamentalismo “está mais nos olhos, ouvidos e interpretação linear — ingênua e acusadora ao mesmo tempo — dos próprios observadores, crentes em uma realidade literal anterior às narrativas” (1997, p. 142). O autor vê no neopentecostalismo movimentos de dissolução de dualismos e essencialismos em uma constante disputa de posições. Essa abordagem, com atenção ao “terreno das contingências” (1997, p. 142), ajuda a enxergar de outra maneira, que não a da contradição, os irmãos com o “corpo fechado” frequentando igrejas opositoras declaradas de práticas religiosas afro-brasileiras.8 Mesmo assim, para tentar entender melhor como essas práticas conviviam, argumentei:

     
 

- Mas me disseram que se baixar o santo na cadeia os caras descem a madeira.
- Ah, é que o santo não baixa mais hoje em dia. Eles fecham o corpo, mas não tem mais esse negócio de baixar santo – explicou Lúcio.
- Mas isso não é da religião? – indaguei.
- Não, hoje tem uma ética. Não pode deixar o santo ficar baixando na hora que quer.

 
     

A ética aparece, nessa conversa, como algo que, embora por si não imponha restrições com relação às preferências religiosas, coloca o malandro no controle de suas manifestações. Ele deve ser mais forte do que o santo e, assim, decidir quando ele pode se manifestar e quando essa manifestação é inapropriada. Em suma, o malandro não pode ficar à mercê do santo. “O ladrão tem que ter postura” – disse um irmão. Essa mesma “postura” faz com que muitos presos homossexuais optem por cumprir suas penas em cadeias de oposição. Boldrin (2014), que desenvolve pesquisa junto às monas (presos homossexuais) em uma penitenciária paulista, menciona que nessas cadeias elas dizem ter mais liberdade para manifestar sua sexualidade.
O intenso controle de si exigido para a manutenção da postura aparece como tema recorrente entre os ladrões, para quem as emoções podem ser prejudiciais quando se pretende “agir na disciplina”. É o que procuram expressar quando alertam alguém cujas emoções consideram obstruir sua visão e, por conseguinte, prejudicar as resoluções ou procedimentos que almejem o certo: “chega devagar, companheiro, senão vai bater o carrinho de pipoca. Controla suas emoções!”. Aos irmãos, a quem cabe “dar o exemplo”, adverte-se inclusive que sua família não pode ser empecilho para sua dedicação ao Comando (que, como afirmam reiteradamente, “está em primeiro lugar”, “acima de tudo”).
Nesses casos, a disciplina aparece intimamente relacionada com a postura, cuja manutenção requer que se evite interferências de fatores considerados estranhos à dinâmica das ideias próprias do PCC. Nesse sentido, nada pode se sobrepujar à disciplina. Tanto religião quanto opção sexual, emoções e laços afetivos são encarados como ameaças à apropriada condução das situações, uma vez que remetam ao que chamariam de outras éticas. Um malandro resumiu a questão em poucas palavras: “não pode misturar os assuntos”.

O certo e a ética que é disciplina

As três menções que Lúcio fez à disciplina durante nossa caminhada pela favela remeteram-na à primazia das ideias, à importância de se conduzir apropriadamente às situações e ao controle de si capaz de evitar a interferência de fatores considerados externos ao crime. Todas essas três referências apontam para a busca pelo certo. Em primeiro lugar, porque, se a ele se chega por meio das ideias, elas próprias indicam o certo. Em segundo lugar, a condução apropriada das situações, na mesma medida em que é considerada o certo, é um meio para alcançá-lo. Em terceiro lugar, o certo está na disciplina do Comando e não em qualquer outra.
Com efeito, como procurei descrever, ética e disciplina estão intimamente ligadas ao modo como os ladrões conduzem suas existências: suas relações consigo mesmos e com os outros, seja no que toca o consumo de entorpecentes, atividades sexuais, uso da violência, ou atividades financeiras. Entretanto, muitas vezes a disciplina diz respeito não aos malandros, mas a um espaço, um tempo ou a um agrupamento de pessoas: naquele tempo tinha disciplina, ali não tem ética, esses caras andam na disciplina. Num ou noutro caso, ela remete sempre ao certo, ao mesmo tempo em que opera pela sua sustentação. Em contrapartida, o certo delineia a ética, ao mesmo tempo em que é uma forma de exprimi-la. É por isso que, para os ladrões, estar pelo certo é o mesmo que estar na disciplina. Contudo, o certo nunca é definido de antemão. Ele é sempre perseguido, estabelecido, expresso por meio de ideias e mediante cada situação, cada guinada de movimento.
Desse modo, a ética permeia o certo a ponto de só existir em conjunção com ele, mediante amplo controle sobre qualquer fator que desvie, afaste ou desvirtue a busca pelo certo. Embora essa noção de disciplina esteja longe de ser irradiada a partir de um centro gerador ou de estar nas mãos de um detentor, embora ela percorra as capilaridades não só da malandragem, mas das quebradas e, finalmente, embora ela una de uma forma inédita elementos que já podiam ser notados antes de seu surgimento (como já mostrou Marques, 2009, 2012 e Feltran, 2013), a disciplina do Comando não pode ser confundida com o conceito homônimo trabalhado por Foucault (1975). Em primeiro lugar, porque responde a problemas diversos dos que exigiram o surgimento das “disciplinas” – e do indivíduo – no século XVIII. Em segundo lugar, porque a disciplina do PCC não diz respeito à fabricação de corpos dóceis e úteis, nem ao duplo sistema de gratificação e sanção e, tampouco, ao controle de indivíduos por meio de mecanismos de exame. Ademais, é importante insistir que ética e disciplina são, para os ladrões, termos intercambiáveis e intimamente relacionados com a noção de proceder, cuja associação com o conceito de “poder disciplinar” (Foucault, 1975) é, com razão, rechaçada por Marques:

     
 

a utilização dessa noção para explicar acontecimentos específicos, intimamente relacionados ao universo empírico por mim delimitado, configuraria aquilo que há de mais anti-foucaultiano. Além disso, seria ignorar a própria gênese de sua construção e sua íntima relação com acontecimentos regionais específicos; seria conceder-lhe um caráter universal, quiçá um estatuto de metáfora holística. Eu até cedia em falar sobre uma disciplinarização dos corpos submetidos ao regime do “proceder”. Contudo, definia terminantemente: a noção de poder disciplinar não parece dar conta das especificidades das relações que atravessam o “proceder”. (2014, p. 16)

 
     

 

O argumento de Marques (2009) com relação ao proceder adequa-se perfeitamente às noções de disciplina e ética, cuja correspondência com os conceitos homônimos trabalhados por Foucault (1975; 1998) só se realizaria em um procedimento anti-foucauldiano. Ademais, a intercambialidade entre ética e disciplina é permitida no âmbito do PCC porque aqueles que o compõem obedecem a práticas de conhecimento não submetidas a qualquer tradição acadêmica. Para eles, importa ser do crime, pois isso consiste na expressão de sua adesão à ética do Comando, uma ética que também é disciplina.

 

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Ronaldo. 2009. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome.
AQUINO, Jania Perla. 2010. Príncipes e Castelos de Areia: Um estudo da performance nos grandes roubos. São Paulo: Biblioteca 24x7.
BIONDI, Karina. 2008. “A ética evangélica e o espírito do crime”. Anais da 26a Reunião Brasileira de Antropologia: dilemas da (des)igualdade na diversidade. Porto Seguro: ABA (1 CD-ROM).
__________. 2012. “Com a palavra, os irmãos!”. Anais da 28ª Reunião Brasileira de Antropologia: desafios antropológicos contemporâneos. São Paulo: ABA.
BIONDI, Karina; MARQUES, Adalton. 2010. “Memória e historicidade em dois “comandos” paulistas”. Lua Nova, São Paulo, n° 79, p. 39-70.
FELTRAN, Gabriel de Santis. 2013. “Sobre anjos e irmãos: cinquenta anos de expressão política do ‘crime’ numa tradição musical das periferias”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, no 56, p. 43-72.
FOUCAULT, Michel. 1969. Surveiller et punir.Paris: Gallimard.
__________. 1998 [1984]. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal.
GALDEANO, Ana Paula. 2014. “Salmo 127, versículo 1: ativismo religioso e ordenamentos da segurança em uma periferia de São Paulo”. Religião e Sociedade. Vol. 34, no 1, p. 38-60.
GOLDMAN, Márcio. 2009. “Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica”. Análise Social. Vol. XLIV (190), p. 105-127.
LALANDE, André. 1999 [1926]. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
MARQUES, Adalton. 2012. “‘Maior respeito’ e ‘cuidado com as palavras’: considerações de moradores sobre transformações nas periferias de São Paulo”. Paper apresentado no GT33 - Sobre periferias: novos conflitos no espaço público, do36º Encontro Anual da ANPOCS.
__________. 2014. Crime e Proceder: um experimento antropológico. São Paulo: Alameda.
MARQUES, Vagner Aparecido. 2012. O irmão que virou irmão: rupturas e permanências na conversão de membros do PCC ao pentecostalismo na Vila Leste – SP. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.
MARTINEZ, Mariana Medina. 2011. Andando e parando pelos trechos: uma etnografia das trajetórias de rua em São Carlos. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos: São Carlos.
RODRIGUES, Arthur. 2012. ‘Quem não reagiu, está vivo’, diz Alckmin sobre mortes da Rota. O Estado de São Paulo, São Paulo, 12/09/2012. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,quem-nao-reagiu-esta-vivo-diz-alckmin-sobre-mortes-da-rota,929523>. Acesso em 03/07/2014.
RUI, Taniele. 2014. Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo:Terceiro Nome
SANSI, Roger. 2009. “‘Fazer o santo’: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras”. Análise Social. Vol. XLIV (190), p. 139-160.

VELHO, Otávio. 1997. “Globalização: antropologia e religião”. Mana. Vol. 3, no 1, p. 13

    
    

 









fevereiro #

10



ilustração: Rafael MORALEZ



1A fim de preservar a identidade dos colaboradores da pesquisa, todos os nomes de pessoas e de quebradas (bairros) mencionados neste artigo são fictícios.

2Os malandrões, típicos de épocas anteriores ao PCC, são figuras que se opõem aos malandros.

3As falas citadas foram adequadas às normas do português escrito, com exceção daquelas cuja adequação violaria a estética e as ênfases pretendidas pelos locutores e, assim, descaracterizaria seu modo de expressão. É importante destacar que essas subversões linguísticas adotadas por meus interlocutores não denotam desconhecimento da norma culta, mas preferências estéticas.

4A mídia impressa também noticiou amplamente o ocorrido. Ver, por exemplo, Rodrigues (2012).

5Ao evitar classificar seus interlocutores como “moradores de rua” (nominação na qual eles próprios não se reconheceriam), Martinez traz para o centro de sua pesquisa as “trajetórias de rua” (2011, 32).

6Se na década de 1980 os barracos eram caracteristicamente de madeira, atualmente as construções de alvenaria são predominantes.

7O caso notável de um irmão do PCC que também é “irmão da igreja” é trabalhado por Marques (2013). Algumas reflexões incipientes sobre o tema foram apresentadas em Biondi (2008; 2012) e foram levadas adiante por Galdeano (2014).

8Sobre essa oposição, ver Almeida (2009).