revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Suzane VIEIRA

Micropolítica da pirraça, ou por que resistência não é uma noção obsoleta

 


Resistência é uma palavra ativada, muitas vezes, para evocar lutas políticas. Mas quando esse mesmo termo passa para a escrita acadêmica, “resistência” parece uma palavra em desuso, como uma daquelas categorias encostadas, empoeiradas pelo tempo juntamente a outras antiguidades conceituais como revolução, subversão, sublevação etc. Será que a noção de resistência se tornou um daqueles casos de conceitos politicamente progressistas, mas teoricamente obsoletos? O objetivo deste artigo é repotencializar a noção a partir da ação de outra forma de criatividade política capaz de deslocar consensos estabelecidos da análise e da prática política: uma teoria política quilombola. As páginas seguintes apresentam alguns aspectos de uma teoria etnográfica da resistência a partir da luta dos quilombolas das comunidades rurais do Alto Sertão de Caetité,1 no sudoeste baiano. Essa teoria etnográfica procura deixar que eles inventem para nós novos sentidos de “resistência” e nos levem a aprender com eles a rir de nossos próprios consensos. Mas não se trata de um riso de escárnio ou ceticismo, mas um riso que muda a distribuição de afetos e o campo perceptivo, faz-nos pensar de outro modo e faz importar outras relações que não passam pela forma-Estado de convencionalização política.  
Até o século XVI, relata Foucault (2005), muitas sociedades na Europa eram sociedades guerreiras e pensavam o socius como uma guerra, como um jogo de estratégias. Era essa a imagem da política e das relações sociais. Esse pensamento guerreiro foi solapado pela centralização política e pela teoria política subsequente. Foucault (1979, 2005) ajusta o modo de análise da genealogia para estabelecer uma aliança com esses saberes desqualificados e sepultados, saberes eruditos e também o saber diferencial das pessoas. Ao redescobrir a guerra por trás das totalizações e pacificações da teoria política de Estado, Foucault faz a guerra em dois sentidos: como um marco de uma analítica do poder e também como a ativação de um pensamento guerreiro, há muito silenciado ao fim das controvérsias teóricas e políticas.
Ao se reapropriar da guerra como aporte analítico para pensar o campo estratégico das relações de poder, Foucault abre para a possibilidade de reencenar na filosofia a desforra desse pensamento reputado como arcaico ou ingênuo. Levar esse pensamento a sério é um modo de, ao mesmo tempo, revelar tensões e combates e quebrar a paz conceitual centrada no Estado e que decide o que deve ser levado a sério em uma análise política.
Penso que recolocar em perspectiva a noção de “resistência” é fazer a guerra estabelecendo uma aliança com saberes até então desqualificados pela política e pela hierarquização científica do conhecimento. E, através dessa aliança, reagir contra as totalizações conceituais. Resistência é, portanto, tomada aqui como uma palavra provisória para liberar um movimento de criação política, lidar com a singularidade e com as divergências. Por traz dessa imagem de saber ingênuo que imobiliza essas outras formas de pensar as relações sociais e a política, há muitas divergências que, a princípio, não nos são imediatamente inteligíveis.
Para a filósofa Isabelle Stengers (2004), a criação política é divergente e vem de um “fora” desqualificado, de uma multiplicidade de outros não considerados pela maneira atual de fazer política e de fazer ciência. No meio acadêmico com seus consensos atravessados por sínteses totalizantes e por expectativas de novas unidades e de acordo, o exercício antropológico contribuiria para descentrar perspectivas, mas também estranhar consensos, interromper convergências.
O sentido de resistência que busco aqui ativar, inicialmente, emergiu da luta política de comunidades quilombolas contra a instalação de empreendimentos capitalistas. Essas comunidades foram obrigadas, a partir do ano 2001, a conviver com a vizinhança de uma mina ativa de urânio radioativo operada pelas INB (Indústrias Nucleares do Brasil), referida pelo povo da roça como Urana, e, no momento em que estava em pesquisa de campo, a partir de 2011, essas mesmas comunidades foram incluídas no roteiro de construção de um parque eólico por empresas privadas como EPP e Renova Energia designadas em bloco como Eólica. Mas esse sentido de luta e de resistência não se restringe a esse enfrentamento e envolve combates cotidianos contra as convencionalizações do contrato e do acordo, recusa à representação política e um modo de levar a vida e de pensar as relações sociais e a ação política marcado por uma forma agonística de humor.
À primeira vista, tendemos a apreender a luta dessas comunidades como políticas da identidade e luta por direitos. Contudo, para nos aproximarmos desse movimento singular de resistência, é preciso ir além das lutas ao nível dos axiomas, do conflito ambiental e da reivindicação de direitos. Esta seria apenas a apreensão molar dessa luta que envolve combates moleculares e recusas que não nos são imediatamente inteligíveis. É nesses outros combates que encontramos o humor da pirraça como uma forma inusitada de criar a resistência. Além disso, o movimento criativo de resistência quilombola reflui a uma articulação ecológica singular. O que está em jogo não é apenas a formação de grupos reconhecíveis pelo Estado, mas também uma articulação ecológica anticapitalista.
A palavra “resistência” é especialmente ardilosa, por induzir a concebê-la do ponto de vista do Estado, como se o movimento ou o fluxo da história fosse uma prerrogativa dos empreendimentos capitalistas, daqueles que falam em nome do progresso e, portanto, o movimento contrário seria identificado como resistência em um sentido reativo. Somos levados a pensar, inicialmente, que essa é uma forma de resistência com o mesmo sentido convencionado pela política de Estado, em que um grupo se constitui como tal a partir da evocação da identidade étnico-racial quilombola e passa a interpelar as instituições jurídico-políticas no sentido de reivindicar o reconhecimento de direitos territoriais. Não estaremos equipados para reconhecer ou acompanhar tal movimento de criação política enquanto pensarmos resistência como algo que se opõe ao movimento (progresso, desenvolvimento, capitalismo) ou como uma ação que se limita a ser contra. 
Resistência, no sentido criado por Deleuze (1992, 1996), é agenciada como criação das possibilidades de vida que não se deixa definir pelo poder ou em relação a ele. Resistência, portanto, é primeira em relação às formas de dominação, é um movimento criativo como as artes, que abre o caminho do possível, criando continuamente a vida.
Os quilombos são comumente evocados como formas históricas de resistência negra. Mas é preciso aqui hesitar diante da associação automática entre “quilombo” e um sentido reativo de resistência. Não se trata de resistir como uma força de conservação diante de uma oposição ou de uma invasão externa. Nem mesmo resistir no sentido de manter-se igual a si mesmo, persistir e organizar-se politicamente em torno de uma identidade coletiva. Essa resistência não descreve um movimento de retorno ao passado ou um reencontro com uma identidade. Não se trata de um impulso de conservação ou de uma política da identidade, mas de uma prática criativa no sentido preciso da criação do possível. Desse ponto de vista, resistir não é ser contra, não se restringe a uma mera reatividade. O movimento criativo dos quilombolas das serras de Caetité, nesse sentido, não se deixa definir por um movimento extrínseco.
As pessoas das comunidades quilombolas de Caetité foram testando essas palavras “quilombo”, “quilombola” e “resistência”, transformando os sentidos delas até experimentá-las na ação política para retomar uma faixa de terra que havia sido apropriada por uma das empresas que pretendiam construir parques eólicos nas serras. Foi testando, experimentando, provocando os sentidos, as forças e afecções dessas palavras, em várias reuniões, encontros e conversas cotidianas, que criaram o “quilombo canhambola” como uma designação para sua luta. Essa criatividade política atravessa o meio jurídico-burocrático do autorreconhecimento quilombola e da reivindicação de direitos territoriais, mas não se detém nesse aspecto da luta política. O quilombo canhambola enuncia a luta pela retomada da terra, das fontes de água e do controle próprio sobre as condições de possibilidade de criar a vida.
O objetivo desse artigo é ativar a potência dessa palavra articulando outro sentido a partir de três agenciamentos: o humor designado como “pirraça”, a crítica quilombola às convenções da representação política designada como treta e a articulação ecológica anticapitalista.
Convido o leitor a me acompanhar no exercício de levar a sério o ponto de vista das pessoas das comunidades negras rurais, uma exigência metodológica e teórica da antropologia, o que implica descentrar nossa análise e seus pressupostos e evitar, também, os consensos estabelecidos em torno de noções e conceitos.

O agenciamento da pirraça

 

A despeito da seriedade da qual se investem as atividades tecnocientíficas e jurídicas das empresas de exploração energética e mineral, as pessoas das comunidades negras rurais das serras de Caetité exercitam o humor em suas práticas cotidianas. Riem um riso de quem não se convence diante da autoridade da objetividade e racionalidade da produção capitalista.
O humor aparece aqui como criatividade em dois sentidos: enquanto uma habilidade pessoal em criar relações e, assim, constitui um traço da socialidade dessascomunidades; e enquanto uma paixão que cria uma modalidade de resistência. Trata-se de uma disposição a resistir a um mundo fechado premido pelas “necessidades” absolutas e englobantes que os empreendimentos capitalistas recém-chegados na região quer representar e provocar o engajamento e a confirmação dos quilombolas.
A arte de fazer rir é referida localmente como “pirraças”. Pirraçar é uma habilidade pessoal muito valorizada. A pessoa que sabe “fazer rir” amplia suas possibilidades de relações e de circulação entre as comunidades negras vizinhas. O bom humor está presente nos encontros nas feiras e festas religiosas, mais especialmente nas pirraças entre pais e filhos, entre irmãs, entre compadres e comadres, padrinhos e afilhados. As brincadeiras são criatividades da ordem do discurso que têm como propósito fazer rir e rir junto. Elas envolvem uma arte de jogar com a linguagem.
O humor não só é uma característica marcante da socialidade dessas comunidades negras rurais como também articula uma prática e um pensamento político. A pirraça é um agenciamento micropolítico do humor que se desenvolve de modo agonístico.
As brincadeiras mantêm ativa a rivalidade deixando sempre abertas as possibilidades da reciprocidade das provocações. Uma provocação é sempre a primeira palavra, como um convite ao diálogo, busca adiar constantemente a resolução da tensão agonística e faz proliferar uma multiplicidade de diferenças que conjura formas de diferenciação hierárquica entre interlocutores e de desfecho violento.
O consenso não é a finalidade esperada das formas de diálogo. A rivalidade não cessa de divergir e de contrariar consensos e, portanto, estaria longe de ser tomada como instrumento de controle social ou de evitação de conflitos. A rivalidade nas relações cotidianas envolve uma estética do combate e uma ética da insubordinação. Não há consenso que esmague a possibilidade de diferenciação e divergência entre os interlocutores. O agenciamento da brincadeira concorre para uma formação de subjetivação agonística que se produz pelo desafio e pelo afrontamento das provocações.
A pirraça funciona como um instrumento que as pessoas praticam para provocar e envolver o interlocutor, mas também pode funcionar como uma arma e, ao invés de provocar o riso, ter como propósito justamente “tirar alguém do certo” ou deixá-lo sem graça. O que está em jogo, nesse outro agenciamento da pirraça, não é propriamente a capacidade de fazer rir, mas a habilidade de afrontar. Esse último agenciamento da pirraça é acionado quando é preciso resistir às negociações com os funcionários das empresas de energia eólica.
No final do mês de maio de 2012, presenciei um dos encontros entre pessoas da comunidade Quilombo da Malhada e os funcionários das empresas de energia eólica.  Ao meio-dia do dia 25 de maio, parou um carro na porta da casa de Teresa, uma amiga que me hospedava em sua casa. Era um novo advogado contratado pela empresa de instalação de aerogeradores que tentava mais uma vez negociar as terras da comunidade de Malhada. Teresa não se esquece do sorriso que aquele homem de sotaque sulista exibia e tentava manter durante toda a conversa.
Aquele homem se apresentou como advogado e explicou que não era da empresa de construção de aerogeradores, e sim dono de uma ONG especializada em regularizações de terras. Esperava, assim, compor uma apresentação mais simpática, desmanchando seus vínculos com a empresa de energia eólica, que havia se apropriado de uma grande parte da terra comum da comunidade.
Em uma reunião anterior, os moradores já tinham determinado que nenhum funcionário da empresa pisaria na comunidade se não fosse convidado. O advogado passava por cima daquela decisão e insistia com a visita. Ele queria demover a resistência da comunidade, que parecia ser, para ele, um sinal de incompreensão.
Algumas comunidades rurais do município de Caetité já tinham manifestado adesão aos contratos de arrendamento e a comunidade de Malhada era uma das comunidades em que os funcionários da empresa tinham maior dificuldade de formular e levar a êxito as negociações. Já tinham tentado, várias vezes, marcar reuniões no escritório da empresa ou no prédio escolar da comunidade. Todas sem sucesso. Ou ninguém aparecia. Ou, ainda, quando tentavam conversar com uma única pessoa separadamente, apareciam dezenas que aturdiam e refratavam quaisquer possibilidades de acordo ou negociação. Por várias vezes, tentaram obter a colaboração da comunidade.
Teresa me chamou na cozinha e pediu que eu distraísse o advogado conversando com ele enquanto ela fosse buscar apoio. Ela correu de sua casa até a casa de seu filho, Zequinha, que mora a pouco mais de um quilometro. O advogado aproveitou a ocasião para tentar conquistar meu apoio e buscar, a contrapelo, incluir-me em um “nós” que poderia ser acompanhado do subtexto “os estudados, os moradores da cidade”, que teriam condições de “esclarecer” os quilombolas, “os outros”.
Para atender ao preocupante chamado de sua mãe, Zequinha largou o prato de almoço e correu para a casa onde estava o advogado. No início, o advogado insistia, com sorrisos, que tinha vindo como um mediador de conflitos e garantia que não estava a favor da empresa. Ele ainda esboçou algumas críticas às abordagens de funcionários da empresa relatadas por Zequinha. Investia em um autocontrole a fim de manter o tom de voz calmo e pacífico ao se apresentar como alguém que tinha a intenção de promover a conciliação de um modo que ficasse “bom para os dois lados”. Na porta da casa, apareciam cada vez mais vizinhos, que acorriam para saber quem era aquela figura e o que ele queria.
Antecipando-se à hostilidade das reuniões anteriores, o advogado disse que queria que todos eles o vissem “como uma pessoa, um ser humano” que merecia ser ouvido. Desejava que Teresa e Zequinha enxergassem nele um pai de família, ao invés de um advogado contratado ou, no dizer nativo, “um homem mandado”. E prosseguiu a conversa tentando “humanizar”, também, as torres de energia eólica:
- Vocês já viram uma torre? – perguntou o advogado.
- Não, graças a Deus! – respondeu Teresa.
- É muito bonita, é igual... igual a um filho da gente – disse o sulista aproveitando também a ocasião para falar que era pai de um menino.

Antes que ele dissesse mais alguma coisa sobre seu fascínio pelos aerogeradores, que podem alcançar até 100 metros de altura, Teresa reagiu escandalizada:
- Deus me livre de comparar uma torre a um filho! – e repetiu ave-maria três vezes, como costumava fazer para afugentar um pensamento ruim. Zequinha aprofundou o absurdo da comparação:
- Numa comparação, a torre você faz e vende. E o filho, você vende? Não vende, nem passa para os outros!
O homem tentou se explicar, dizendo que o trabalho que ele tinha para fazer a torre era como se fosse o trabalho de cuidar de um filho.
- Você pensou errado. Uma torre não é igual a um filho! – redarguiu Zequinha.

Começou, então, uma ruidosa zombaria, que tornava ainda mais absurda e alarmante aquela comparação. Os risos eram estralados e nervosos e pareciam tentar reconduzir a conversa para longe do plano formal da negociação de terras. O advogado admitiu que torres e crianças eram incomparáveis para não alongar aquela situação embaraçosa. Desde então, ele retirou o sorriso da boca. Assim, o advogado partiu para a negociação direta, sem mais rodeios. Ele fez ofertas e disse que, caso a comunidade aceitasse suas condições, a empresa poderia devolver a terra que foi vendida por um fazendeiro que se arrogava dono da área da Queimada que pertencia à comunidade quilombola. Nesse momento, Teresa questionou:

- Como é que você vai devolver uma terra que não é sua? Tem como eu dar o que não é meu? Não devolve porque a terra nunca foi da empresa.
- Numa comparação, se essa cadeira é sua, eu te dou um papel, você assina sem saber, de quem é a cadeira? – reforçou Zequinha.

Depois de quatro horas gastas para explicar a proposta da empresa, o advogado estava transtornado. Se no início mostrava os dentes num sorriso, no final ele já franzia o cenho enquanto a zoada aumentava progressivamente. Já perdendo a paciência, ele esbravejou:
- Eu estou falando sério?
- Nós também! – retrucou Zequinha.

“E nós desgraçamos a rir”, assim finalizou Teresa ao relatar aquela conversa para seu vizinho e compadre. Os risos eram tensos e pareciam criar uma balbúrdia que tentava interromper a negociação e afugentar aquela presença indesejada. Teresa e Zequinha literalizavam as comparações e quebravam o controle semântico da metáfora. A comparação entre filhos e torres era uma abominação, recebida com horror e protesto, e ficou mais engraçada quando o caso foi recontado para os vizinhos. Essa era a parte de maior destaque nas narrativas sobre o episódio.
No meio da negociação em que o advogado apresentava contrapartidas ao arrendamento de terras, oferecendo ônibus, tanques de água e uma quantia de 6 mil reais anuais por torre, garantida pelo contrato de arrendamento, a equivalência entre filhos e torres escandalizou aquela inquieta audiência.
Nas narrativas que circularam pela Malhada, destacavam-se as habilidades de responsar e de descartar a palavra alheia, atingir o adversário com uma resposta certeira e embargar suas possibilidades de resposta.
Os risos aparecem como enfrentamento e atendem à intenção de tirar alguém do sério. Mas não conduzem a um “rir junto”. Nesse caso, as pirraças serviram para que o advogado, o “estudado” que esboçava preliminares amistosas, revelasse seu real lado: um “mandado” da empresa contra a qual a comunidade havia se posicionado muito claramente. A zombaria é agenciada como uma maneira de conhecer as pessoas, saber quem é quem.  O humor da pirraça singulariza uma modalidade de resistência urdida na linguagem. A tensão é conduzida através de um enfrentamento discursivo.
Essa prática discursiva é disparada como uma arma que pretende acertar o interlocutor de modo a comprometer suas possibilidades de reação. Para esses usos, é preciso saber responder, ou em termos nativos, “saber responsar” uma provocação. Os encontros com os funcionários das empresas de energia eólica eram narrados sem poupar detalhes do enfrentamento discursivo. O ponto alto dessas narrativas era justamente quando o narrador ressaltava para a audiência de parentes e amigos a resposta certeira que “tirou os homens do certo”.
A pirraça, portanto, exige a habilidade de “saber responsar”. Exímio nos jogos da pirraça, Zequinha dizia orgulhosamente “só tenho uma leiturinha, só escrevo o nome e, às vezes, erro, mas sei descartar palavra de qualquer um, sei responsar”. Quando se engaja num enfrentamento discursivo, ele não deixa que a palavra alheia se sobreponha à dele. Responsar tem por efeito um reposicionamento dos interlocutores num plano simétrico de diálogo.
Essas pessoas boas na pirraça geralmente são procuradas na comunidade quando aparece algum funcionário das empresas. São chamadas de “enfrentantes” essas pessoas prontas para o duelo discursivo que se desembaraçam das perguntas-ciladas, dão a resposta certeira (e não a resposta certa) e, desse modo, negam a sujeição e a adesão pretendida pelo discurso autoritário, fechado à polissemia e à reciprocidade da interlocução.
A condução do diálogo àquele desfecho barulhento não enuncia apenas uma recusa à proposta do advogado, ela expressa uma recusa mais radical. Não são exatamente os termos do contrato de arrendamento que estão sendo recusados, quando se nega a assinatura e se recusa a colaborar, mas a possibilidade de acordo, de uma paz transcendente que anule as dissidências. Refuta-se o acordo e a paz jurídica do contrato ao fazer a guerra nômade no diálogo.
A pirraça operava uma recusa ao contrato enquanto modelo de acordo transcendente. Esse agenciamento discursivo contra-Estado também é avesso aos mecanismos da justiça que subvencionam um centro de poder e transformam a violência em direito concedido pelo Estado. Essa suposição permite a Walter Benjamin (1986) reconhecer a violência como o princípio e o fim do contrato. O contrato, enquanto forma sancionada de violência que não mostra sua verdadeira forma, faz com que os efeitos dessa violência não se tornem visíveis de antemão. Os jogos discursivos da pirraça põem a nu essa violência não aparente.
No contrato entre duas partes, existe um terceiro termo que transcende as partes. Não são apenas duas partes envolvidas, há a mediação de mecanismos da justiça, a presença sub-reptícia de um terceiro termo que ocupa o lugar transcendente de juiz. O dialogismo da pirraça se constitui contra a violência e contra um diálogo de “dois contra um” que produz como efeito o silêncio. A pirraça encena a guerra no âmbito da linguagem e torna a dissidência possível onde se pretendia instituir a concordância. Sua forma provocativa e imanente rejeita a univocidade e recusa a instância onde habita a figura do juiz e a linguagem jurídica do acordo.
A linguagem torna-se um meio de criar as possibilidades de resistir às formas de violência de Estado subvencionadas no contrato. A pirraça se subtrai a essa violência enquanto criatividade da linguagem que resiste a formas de aprisionamento do diálogo. Como no episódio relatado, o embate se efetua no plano do discurso. Do ponto de vista quilombola, a forma ideal do diálogo não é a convergência, o acordo, mas a dispersão, a dissidência e a ativação contínua da tensão agonística. 
As pessoas reagem com pirraça àquilo que se dava o nome de “treta”: as estratégias dos funcionários das empresas para conduzir as pessoas a um acordo e a assinar contratos de arrendamento de terras necessários para a implantação de um parque eólico na região.
A pirraça estaria para o humor assim como a treta estaria para a ironia, no sentido deleuziano (2007). A treta remete à habilidade de tentar camuflar a divergência de pontos de vista tomando como dado o consenso pretendido. O acordo e o consenso são tropos ao qual a treta recorre, ao modo do discurso irônico, como princípio anterior e transcendente em nome do qual se procura submeter qualquer divergência.
Em seu diligente trabalho de resistência e de recusa ao acordo com a empresa de aerogeradores, as pessoas das comunidades negras tentam produzir o possível contra as “necessidades” desenvolvimentistas reputadas como inelutáveis e os vaticínios sobre a inevitabilidade da implantação dos parques eólicos em seu território.

O problema da treta

 

Com o termo “treta” são designadas as tentativas de pacificação ou totalização que pretende suprimir ou mascarar disputas.  Acordos, consensos, uniões de força são as tretas mais comumente identificadas pelas pessoas das comunidades negras rurais de Caetité. Essa teoria política singular reputa como “treta” o modo convencional como se apreende a luta política ou a ação coletiva, os imperativos de unificação ou convergência de interesses, a expectativa de constituir uma unidade ou um grupo coeso.
A originalidade dessa perspectiva não reside em uma posição marginal ou alheia à política que poderia nos levar a crer que os quilombolas conheceriam e experimentariam participação política apenas no período eleitoral. A teoria política quilombola demonstra, ao contrário, um profundo e atento conhecimento das convenções de nosso pensamento político Ocidental, mais ou menos difundido entre aqueles que tomam o Estado como referente último de toda ação política. Os quilombolas participavam, cotidianamente, de variadas formas de mobilização, seja no âmbito dos movimentos sociais, seja no âmbito das articulações político-partidárias.
A política eleitoral e a participação política no âmbito dos movimentos sociais estavam no campo de ação e de reflexão quilombola. Era no afrontamento com esse modo de ação política que se tornavam mais nítidos os pressupostos de uma teoria política quilombola. A treta descreve o modo como a ação política coletivizante era observada do ponto de vista quilombola.
O período das campanhas eleitorais torna mais nítido esse dispositivo da treta, que é objeto de acusação dos quilombolas. Há muitas formas reconhecidas de treta, mas duas delas são recorrentemente identificadas: “querer falar a mesma língua” e “querer falar pelos outros”. E a distribuição de votos nos candidatos a prefeito e a vereador segue certa dispersão porque é considerado “desaforo” votar no mesmo candidato que o vizinho.
Durante campanhas eleitorais, o “tempo da política” é visto como algo que invade e contamina a vida social e tem o potencial de colocar em suspenso o tempo cotidiano. A política subverte as convenções cotidianas nas comunidades rurais ao bloquear ou restringir o agenciamento crucial na produção e singularização das relações sociais: a brincadeira.
As brincadeiras são reabsorvidas no antagonismo da disputa eleitoral. As provocações inevitavelmente ressaltam as desavenças entre os candidatos e podem inflamar agressões violentas. No “tempo da política”, as provocações são menos toleradas, elas aviltam a pessoa e escapam do registro da brincadeira e podem culminar no confronto aberto. A troca de provocações passa a encenar a preeminência de um dos lados que o desfecho eleitoral distinguirá entre vencedores e vencidos.
Para os quilombolas, a política representa outra forma de convencionalização das relações sociais, que diverge das relações cotidianas entretecidas pelo humor. Durante as disputas eleitorais, sobretudo aquelas disputas no âmbito municipal, as relações sociais, as convenções do diálogo e da interação social são moduladas em outra frequência. A política se atualiza como outra lógica, que vem de fora e interfere – e aqui entendo interferência no sentido análogo à radiofrequência – na dinâmica ou na “sintonia” das interações sociais nas comunidades rurais.
Os enunciados que nascem em um contexto de mobilização coletiva, como “o povo é unido”, “a comunidade é uma só”, “os quilombolas votam em fulano”, podem ser denunciados como treta. A acusação da treta mostra que há algo enganoso e ilegítimo nos enunciados que mobilizam categorias totalizantes ou pretendem criar como efeito uma identificação entre as pessoas.
A pirraça é mobilizada para mostrar as divergências que a treta se esforça em encobrir pelo artifício do consenso. Segundo essa teoria política, o acordo e o consenso são os artifícios da treta. Contra consensos ou, no dizer nativo, modalidades de controle enunciativo em que “um só quer falar”, a pirraça recobra a possibilidade de reversibilidade da fala e o plano horizontal do diálogo.

Vida e resistência em uma ecologia anticapitalista

 

As pessoas das comunidades próximas à mina de Urânio radioativo observam os reservatórios de água diminuírem dia a dia. Há quase 16 anos, quando a Urana apareceu em Caetité, dizia-se que ela “chegou com a riqueza”, como se lembram meus interlocutores, e se instalou nas terras das comunidades Riacho da Vaca e da Cachoeira, a aproximadamente 7 quilômetros da Malhada.
As pessoas da Malhada e do Lajedinho contam que, há alguns anos, era possível ouvir sons de estrondos da tromba d’água no subterrâneo, sobretudo no tempo das águas. Do vigor dessas trombas d’água que ecoavam no passado, restaram minas de água muito enfraquecidas. A água mineral reduziu-se drasticamente. Hoje, os sons que ecoam do subterrâneo são os estampidos das detonações da Urana.
As pessoas da comunidade do Lajedinho contam que, a cada estrondo da Urana, a braúna que protege a fonte Moreira se estremece e chora, vertendo água por seus galhos. A Moreira é a mãe de todos que cresceram no Lajedinho. Ao assistir a fonte se enfraquecer a cada dia, Deli também se preocupa: “uma criança, uma cobra, qualquer vivente, se mata a mãe, vive o quê? Não vive nada”.
Os quilombolas observam, com muita atenção e preocupação, as alterações na dinâmica da produção em suas hortas e roças de mandioca, milho e feijão. Ainda que Malhada, Lajedinho, Lagoa do Mato e Vereda dos Cais estejam a certa distância da mina, os quilombolas participam das mobilizações da CPMA como um modo de se precaver desse perigo e tentar bloquear a expansão da zona de influência desse agenciamento potencialmente destrutivo.
O dispositivo que fomenta a “riqueza” da Urana, a extração do urânio identificado como seu “ouro”, é contrário ao fluxo da riqueza2 que, tal como é concebida pelos quilombolas, corresponde a uma articulação ecológica propícia à criação de vida naquele lugar. A riqueza da Urana representa um modo de produzir que começa com apropriações, cercas que declaram a propriedade, expulsões, controle monopolista sobre a água subterrânea e segue promovendo uma descodificação brutal dos fluxos codificados pelo parentesco e pela criação dos seres entendida como princípio espiritual e divino.
Aquela situação preocupante reuniu camponeses, quilombolas, lideranças religiosas, membros da diocese, agentes da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e da Caritas em uma atividade conjunta de criação política. A cada reunião da CPMA (Comissão Paroquial do Meio Ambiente, ligada à diocese de Caetité), a ecologia política era pensada e agenciada coletivamente. No âmbito dessa criação coletiva de uma ecologia política, algumas intervenções quilombolas apresentam outro modo de colocar questões e formular problemas no debate, sobretudo ao mostrar noções divergentes de “riqueza” e reinterpretar as situações do ponto de vista da teoria dos fluxos.
A Comissão Pastoral do Meio Ambiente esforçava-se em dar forma e sentido político à constatação reiterada por camponeses e quilombolas de que as atividades de extração de urânio radioativo estavam atrapalhando, de algum modo, as atividades produtivas nas comunidades, a força da terra, das plantas e dos animais. A contaminação, contudo, não foi o único problema. As INB detêm prerrogativas sobre o uso das águas de vários poços artesianos que foram perfurados e instalados por elas em comunidades adjacentes à mina de urânio.
Ao matar a mãe d’água das fontes, que também são mães de muitos viventes, a exploração de urânio subterrâneo destruía o potencial criativo da vida no local. Ao chamar a fonte de mãe, as pessoas se investem de obrigações, compromissos, enquanto que a assimilação da água como mero recurso produtivo soa ofensivo por ameaçar descodificar esse fluxo criativo.
Além de um modo de se relacionar com o território, trata-se de uma articulação ecológica com os fluxos de criação: a terra, a água, os ventos, as plantas e animais. E este é um dos pontos de divergência ecológica em relação a formas capitalistas de controle e apropriação da água e da terra. Essa articulação ecológica redistributiva se contrapõe à articulação ecológica capitalista que acaba por subvencionar e autorizar a ação de controle e de dominação dos humanos entre si e dos humanos sobre outros seres.
Ouvi, certa feita, de um morador da comunidade quilombola da Lagoa do Mato, que tanto as empresas Urana e Eólica quanto os políticos tinham uma “fome esquisita que quer enlaçar tudo” e arrematou com a afirmação “para eles, nós não temos nada e é assim que vão tomando o que é nosso!”. Com aquela formulação acerca da situação que todos estavam enfrentando, ele mostrou que “pobreza” ou “miséria”, conhecidos tropos dos discursos dos políticos, mascaram práticas de apropriação menos perceptíveis.
Como é patente em sua fala, enquanto os representantes das empresas tratam as pessoas das comunidades rurais como “pobres”, dissimulam a apropriação das possibilidades da riqueza, ou seja, a terra e a água, que, segundo a economia política quilombola, não podem ter dono. A má distribuição de água está, portanto, assentada em uma concentração e apropriação anterior. Aquela enunciação traduz, de outro modo, o sentido da observação de uma de minhas amigas da Malhada, em outra ocasião, sobre o modo de agir dos funcionários da empresa: “o povo da Urana é tudo cismado porque estão roubando o que é dos outros”. E não estão apenas se apropriando da terra e da água em si, mas das possibilidades de criar riqueza naquele lugar.
A noção de riqueza mobilizada pelos quilombolas e camponeses remete a uma economia política que não corrobora as convenções capitalistas de produtividade e de propriedade. Para muitas pessoas da Malhada, os contratos de arrendamento e as compensações oferecidas pelos funcionários das empresas de aerogeradores eram “como uma doença” que ameaçava capturá-los ou acometê-los justamente quando dispunham da riqueza das águas das cisternas de captação de água das chuvas recentemente instaladas, como uma potencialidade criativa. A riqueza é concebida como um conjunto ou um tipo de articulação ecológica de capacidades criativas.
Com aquelas objeções, os quilombolas retiram o traço consensual das palavras “pobreza” e “riqueza”, e também da avaliação capitalista sobre o modo de vida deles. Não era apenas o acordo contratual ou a negociação com as empresas que os quilombolas negavam. Havia acordos e consensos bem mais sutis em torno de convenções da política e da economia capitalista que também estavam sendo quebrados. Os quilombolas desaceleravam conexões rápidas demais e tornavam visíveis divergências em pontos antes tomados como consensuais e transcendentes. A fala das pessoas das comunidades negras rurais intervém para mostrar que a concepção de “água” como uma substância ou um recurso ao dispor da apropriação humana é um ponto pacífico.
A categoria burocrática “pobres” dos cadastros das políticas públicas prefigura e encobre essas apropriações ambientais menos perceptíveis e a destruição paulatina da articulação ecológica criativa que propicia o fluxo da riqueza. Ao mesmo tempo, os empreendimentos capitalistas reivindicam a autorização pública e estatal para efetuarem o controle e a apropriação mais drástica das condições de possibilidade de criar a vida, além da apropriação da terra, da água e do subterrâneo, da paisagem, do espaço e da liberdade de circulação pelas serras.
A assimetria entre ricos e pobres, entre grupos empresariais com alta capacidade de recrutar aliados e influir sobre o Estado e um grupo minoritário que se engaja nas lutas ambientais de um movimento social é subvencionada por outra assimetria entre natureza e cultura que tende a relegar as questões quilombolas ao domínio da cultura, como apenas uma curiosa visão de mundo. Contudo, as intervenções quilombolas em uma acepção cosmopolítica são habilitadas como capazes de modificar e quebrar esse e tantos outros pontos consensuais.
Não é apenas o controle sobre as fontes de água que está em disputa, mas mundos múltiplos e divergentes. Cumpre esclarecer que a expressão “mundos divergentes” não remete a mundos culturais divergentes. Não se trata de pontos de vista divergentes sobre uma realidade comum. Para Stengers (2005), essas divergências são criadas em cada situação pragmática específica. Essa perspectiva refrata qualquer possibilidade de acordo como uma paz transcendente, que coloca todos os seres e actantes em um mesmo mundo comum.
Cosmopolítica também não figura como outro nome para ontologia, tampouco sobrecodifica sistemas de pensamento e sistemas políticos autorreferentes. Do modo como compreendo a proposta de Stengers (Idem), penso que a proposição cosmopolítica intervém para propiciar as divergências e não simplesmente reunir o que separamos como cosmos e política.
Quando se leva efetivamente a sério as recusas e divergências ecológicas torna-se completamente ofensiva qualquer forma de enunciado que assimile as intervenções quilombolas como crenças ou representações e nos faz sentir vergonha de formulações como essa: enquanto eles “acreditam” que a Urana está matando a mãe d’água, nós “sabemos” que a morte da mãe d’água é uma representação singular para a “falta d’água”, cujas “causas reais” poderão ser identificadas por cientistas e, finalmente, criar o consenso. Se nenhum dos dois mundos divergentes tem direito de definir a realidade, em uma situação de indecidibilidade, não há efetivamente vencedores e vencidos, aqueles que sabem (detêm acesso privilegiado à realidade da “natureza”) e aqueles que creem (simbolizam ou representam a “natureza”).
As intervenções quilombolas experimentam com a ecologia política, criando outra maneira de colocar questões. A noção de resistência retoma um novo fôlego alimentada por maneiras concretas de viver e de pensar. Essa articulação cosmopolítica, propiciada pelas intervenções quilombolas no âmbito da ecologia política, abre a possibilidade de outra forma de composição, outra articulação ecológica, como um devir capaz de nos fazer pensar a resistência como um agenciamento da vida e da luta.

 

 

 

 

 


Bibliografia

 

BENJAMIN, Walter. Crítica da violência - Crítica do poder. In: BOLLE, Willi (Sel.). Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix: editora da Universidade de São Paulo, 1986.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007 [1969].
______. “R de Resistência”. In: O Abecedário de Gilles Deleuze,1996.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Genealogia e Poder. In: Microfísica do Poder. Graal, Rio de Janeiro, 1979.
STENGERS, Isabelle. “The Cosmopolitical Proposal”. In: Latour, Bruno; Weibel, Peter (eds.). Making Things Public: Atmospheres of Democracy. Cambridge: MIT Press, 2005.

    
    

 









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ilustração: Rafael MORALEZ




1 Caetité localiza-se na encosta da Serra do Espinhaço em uma região conhecida como Serra Geral. O município situa-se na faixa do semiárido baiano com áreas de elevadas altitudes.

2 Distingo graficamente riqueza e riqueza para enfatizar os sentidos equívocos dessa noção.