revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Alexandre de Oliveira Torres CARRASCO

Poesia & Profecia: Sessão, de Roy David Frankel

 

 


São várias os modos de entrada no livro Sessão, de Roy David Frankel (Editora Luna Parque, 2017). A mais óbvia, parece-nos, seria notar e dar relevo à atualização que o livro opera de um consagrado expediente formal (quase, diríamos, de vanguarda, se ainda houvesse uma), e que funciona com muita consequência no livro. E que, mal resumido, poderia ser indicado mais ou menos em termos de um deslocamento em bloco de contexto original do discurso dado, de modo a dar-lhe uma monumentalidade inesperada, na falta de seu contexto ou sob o fundo de contexto diverso, sendo este o efeito mais perceptível. A potência escondida das coisas viria de seu deslocamento de lugar – as palavras em estado de dicionário. Há ainda outros. Por exemplo, o de explorar uma nova possibilidade do discurso (um novo possível), por meio desse deslocamento, que, sendo voluntário – a arte poética que convém para o procedimento –, é igualmente exterior. Antes de avançar, já antecipando um pouco o que virá na sequência, diríamos o seguinte: a escolha do procedimento, uma forma antilírica por excelência, tem muito acerto e astúcia, e, depois da leitura (e releitura) do livro, quase concedemos à tentação de dizer não haver outro modo de tratamento àquela matéria.
Retomo, pois, o fio da meada. O procedimento formal que o autor adota, parente próximo ou distante, a depender da afinidade eletiva do crítico, seja da poesia automática surrealista, seja de alguns experimentos poéticos radicalmente prosaicos que melhor se formalizam no modernismo (também no “nosso” modernismo) é o que  à primeira vista saltaria aos olhos do leitor, menos pelo impacto do choque, efeito que também conta para tal procedimento, e mais pela agudeza com que é feito, na edição poética propriamente dita do material. Isso, que já revela algo do livro e de seu propósito, não diz tudo, apesar de parecer dizer muito. Talvez quase nada diga do livro.
Eis aonde pretendia chegar. Talvez essa virtuose formal até atrapalhe o que vem depois dela – de fato, em nada atrapalha, mas tomando em conta o que vem após, pode bem ser considerada um faux frais da revolução, lembrando de uma expressão bastante datada. Ocorre que o que vem depois é enorme: estamos falando de um modo de registro da sessão da Câmara dos Deputados de 17 de abril de 2016, a sessão televisionado em um domingo ensolarado (em São Paulo, pelo menos), e cujo objeto único era a abertura de processo de impedimento da então Presidenta da República, Dilma Rousseff.
Aqui o procedimento formal como que se interverte e deixa de ser forma para ser conteúdo. É o que dizíamos: a força do material viria do seu descolamento do contexto original. O que nos damos conta: o seu contexto original era seu “falso contexto” e o procedimento poético, que Roy consagra, que deveria tirar a “verdade” do texto para devolvê-la à poesia, isto é, tirar-lhe a denotação para deixar-lhe apenas a conotação, opera em sentido radicalmente diverso: é na poesia que se encontra a verdade. Talvez nunca tenha havido tanta verdade em tamanha falsa poesia. Toda a extensão fraudulenta do texto apenas se encontra consigo mesma na poesia: somente na forma poética, e nesta forma poética, aquilo que foi dito adquire a dignidade que lhe é conveniente.
É a consciência disso que desarma a tentação lírica: não há lirismo possível ao material dado, eis uma verdade subsidiária de que somos informados ao curso da leitura. A tentação lírica sempre é imensa diante daquele fato, que tomou a todos, concedamos, a favor ou contra –  e antecipo já meu voto, voto por aqueles que nunca escolheram o lado fácil da história, eu voto por Marighella, eu voto por Plínio de Arruda Sampaio, eu voto por Evandro Lins e Silva, eu voto por Arraes, eu voto por Luís Carlos Prestes, eu voto por Olga Benário, eu voto por Brizola e Darcy Ribeiro, eu voto por Zumbi dos Palmares, eu voto não. O que houve, em estritos termos políticos, adquiriu e se preparou mediante uma dimensão retórica e viva inesperada na extensão e na virulência, tomando de assalto o que chamaríamos de vida comum, episódio quase sem precedentes na vida política recente, e claramente muito mais contra a presidenta do que a favor e, de todo modo, com uma dimensão antirreflexiva no sentido tradicional, pelo menos, de alcance inesperado, tomando tudo de roldão.  Houve, como ainda há, uma interdição ao pensamento, causa e efeito do processo, e todo o discurso viu-se obrigatoriamente operando por imagens e imagens das imagens. Seria como se tudo devesse passar da reflexão ao slogan, e do slogan a mero grito. Parte do que está expresso em Sessão é testemunha privilegiada de uma certa idade da fala comum, talvez, de um retrocesso específico a uma idade da fala, que aqui não saberia explicar, do modo como a fala comum recuou ao mero soçobro identitário, do que sobrou de comum para ser dito. Daí, com votos comprados ou não (provavelmente sim) a expressão em Sessão se reduza a uma faixa estreita, imagética no pior sentido, regressiva, da expressão, em que o popular é correlato do religioso e o privado é o que orienta o famigerado espaço público. Não é sem sentido que o discurso religioso convirja com o discurso ultraliberal dando-lhe “forma” popular: nos dois casos há um adesão identitária ao privado, uma vontade de subsunção do público ao privado, relativamente elaborada. Nada deve ser dito senão pela afirmação indentirária mais mesquinha, nosso estado de linguagem atual. Havia (ainda há, post festum, pós farsa) um resto daquela sanha, irracional em mais de um sentido, que se arma aqui e ali, de exclusão pura e simples do outro da vez, seja negro, negra, judeu, homossexual, trans, mulher, cigano, comunista, deficiente, etc., etc., etc., (aqui a ordem da enumeração não indica qualquer tipo de hierarquia), e que operou como máscara ideológica ideal e simultaneamente vetor de um processo político subjacente e sobre o qual quase nada diz, não em sentido próprio, ainda que o processo subjacente a que nos referimos esteja em curso – as nossas reformas –, mesmo que o discurso que o legitimou tenha arrefecido, relativamente.
O tempo, porém, fez e faz um trabalho inesperado. E trabalhando de palavra a palavra, essa poesia pobre das coisas como elas foram, adquire uma monumentalidade inesperada, inesperada mesmo diante do procedimento formal que organiza esse registro. É diante disso que o procedimento antilírico de Roy Frankel revela toda sua sabedoria: tentado a chorar as dores e os dissabores de 2016, e cada um com suas dores privadas e públicas há de ter muitas lágrimas para verter, em um ano terrível, somos levados a nos conter, a conter a expressão a um possível mínimo: há um calar nisso tudo que é uma forma superior de expressão e diante de cada uma daquelas passagens, cada uma à sua maneira infame, vil, mentirosa, mesquinha e pusilânime podemos medir as nossas próprias mentiras e dar-lhes o caráter finito que merecem.

No futuro, sobre esse dia, a história vai contar que a alegria é triste e que o não é a palavra mais bonita da língua portuguesa. Meu voto é não.

    
    

 









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