revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



Daniel Golovaty CURSINO

a linguagem do império e a arte da evasiva de Domenico Losurdo

 


Em A Linguagem do Império1, Domenico Losurdo empreende uma ampla análise crítica do que denomina o léxico de um novo discurso da guerra. Desde logo, percebe-se que tem em mira sobretudo os EUA, país líder do Ocidente, e Israel, seu mais próximo aliado no Oriente Médio. A abordagem do autor é estruturada em sete capítulos, que pretendem abranger, segundo lemos na contra-capa do livro, o que seriam os "sete pecados capitais" alardeados pela ideologia imperial, a saber: terrorismo, fundamentalismo, antiamericansimo, atissemitismo, antissionismo, filoislamismo e, por fim, o ódio contra o Ocidente.

Desde as primeiras páginas, a estratégia crítica de Losurdo torna-se clara: trata-se de, através de análises tanto teóricas quanto históricas, demonstrar a hipocrisia (ou o cinismo) do poder imperial, que se arroga o direito de decidir soberanamente o que seria violência legítima dos civilizados e o que seria violência condenável e bárbara; esta última atualmente imputada, sobretudo, aos povos árabes e islâmicos. Com efeito, na análise de cada um dos termos do léxico imperial supracitado, o autor utiliza-se amplamente da crítica da ideologia histórica do colonialismo, mobilizando para tanto uma extensa bibliografia. Assim, mesmo alertanto que não pretende fazer nenhuma hierarquia de horrores, a estratégia de Losurdo o tempo todo será calcada em uma espécie de inversão argumentativa, pela qual, com base em uma oposição simples, a violência originária passa a ser atribuída às potencias ocidentais (Israel incluído), sendo, consequentemente, classificada como contra-violência aquela praticada pelos povos historicamente alcunhados de bárbaros pela ideologia imperialista.

 

Terrorismo

 

Como sabemos, a atual guerra travada pelo Ocidente é a chamada "guerra contra o terror". Uma guerra em que os inimigos são designados de forma um tanto vaga, já que, como nota Losurdo, não haveria um esforço por parte de seus ideólogos em definir precisamente a atividade terrorista, pois "quanto mais vaga a acusação, tanto mais fácil para sua validade se impor de modo unilateral e tanto mais inapelável se torna a sentença enunciada pelo mais forte". É bem contra esta unilateralidade dogmática que nosso autor pretende aqui se insurgir, não apenas no que se refere ao terrorismo, mas também, como veremos, igualmente no que respeita a todos os demais termos do "léxico do Império".

Inicialmente, Losurdo rejeita a conhecida tese de que o terrorismo seria a arma dos fracos, os quais, dada a impossibilidade de combater com armamentos convencionais, organizar-se-iam em grupos cujo objetivo seria, através da aplicação da violência indiscriminada, paralisar pelo medo toda a organização social que sustenta o exército inimigo e, ao mesmo tempo, legitimar a si mesmos através da conhecida fórmula da "propaganda pelos atos". Contra esta ideia, o autor argumenta que o uso da violência indiscriminada contra populações civis nunca foi um apanágio dos fracos, já que, historicamente, não poucos Estados constituídos dela lançaram mão. Para prová-lo, ele convoca em seu auxílio uma longa e bem conhecida lista de horrores praticados por grandes potências militares, democráticas e ocidentais, visando submeter as populações de seus inimigos. Desde os bombardeios de Hiroshima e Dresden, passando pela guerra do Vietnã com seu terrível agente laranja, pelos embargos impostos aos sérvios e iraquianos, até às operações de assassinatos (não tão) seletivos de Israel contra lideranças palestinas; tudo isto e muito mais serve para deixar clara a prática sistemática de violência indiscriminada pelas grandes potências ocidentais, mesmo, repita-se, aquelas consideradas democráticas.

Da mesma forma, e perseguindo o mesmo objetivo de desautorizar o que seria um discurso imperial de superioridade moral, Losurdo remete-nos à ideologia histórica do colonialismo, para que assim possamos compreender as acusações de "fanatismo" e de "culto da morte" que hoje são dirigidas aos novos "bárbaros" por ideólogos que pretendem fundamentar sua superioridade no que seria uma posição moderna e esclarecida. Pretenso esclarecimento, sublinha Losurdo, ao nos lembrar que os grandes iluministas não hesitavam em "celebrar os negros que provocavam a própria morte para não cair ou permanecer em escravidão. Assim em Condorcet, assim em Maupertius, onde assume tons líricos: ‘um navio que volta da Guiné está cheio de Catões que preferem morrer a sobreviver à perda da liberdade’. Mas (lamenta nosso autor) hoje se atacam os Catões e se incensam os aspirantes a César"…

Neste ponto, já fica bem clara a estratégia da crítica de Losurdo, bem como suas evidentes limitações. Ao se misturar em um único conceito o terrorismo de movimentos islâmicos atuais e o terror perpetrado historicamente por Estados, traçando uma linha reta que sai de Gengis Khan, passa por Hitler e chega a Bush Jr., englobando ao mesmo tempo todos os movimentos terroristas, não se corre o risco de obscurecer a compreensão do fenômeno contemporâneo do terrorismo? Da mesma forma, o tratamento dado por Losurdo à violência política, designando-a como um mero instrumento, seja a serviço da dominação dos povos, seja a serviço de sua libertação nacional, não pode deixar de aparecer extremamente superficial, na medida em que ignora a inércia (auto) destrutiva inerente a toda violência indiscriminada.

Ainda mais grave são os erros decorrentes da já mencionada oposição simples que organiza toda a crítica de Losurdo. Com efeito, ao terminar a leitura de A Linguagem do Império, o leitor não poderá deixar de notar que o autor raciocina o tempo todo como se ainda vivêssemos na época clássica do colonialismo, de modo que somos induzidos a acreditar numa continuidade essencial do fenômeno colonial, cuja crítica ainda seria capaz de nos fornecer a chave para a compreensão das políticas externas atuais das potências ocidentais, sobretudo dos EUA e de Israel. Ora, se algo salta aos olhos é que a campanha militar estadunidense no Iraque não segue claramente uma lógica colonialista. E, da mesma forma, é preciso muita cegueira ideológica para caracterizar a violência sectária que explodiu naquele país após a queda de Sadam Hussein como sendo típica de movimentos de libertação nacional. Tampouco o conflito israelense-palestino pode ser equacionado no esquema clássico do colonialismo. Se é verdade que Israel expande os assentamentos judaicos na Cisjordânia palestina e, portanto, coloniza, também o é que não o faz no sentido do colonialismo histórico, isto é, como meio de dominar e explorar economicamente as populações autóctones (o que, diga-se, em nada alivia a vida dos palestinos). Basta lembrar que este conflito médio-oriental é bem anterior à referida ocupação da Cisjordânia, ocorrida como consequência da Guerra dos Seis Dias (junho de 1967). Mesmo a criação da OLP é anterior (1964). E, se fosse verdade que o terrorismo palestino se deve exclusivamente ao desespero causado pela ocupação israelense, seria ininteligível o fato de que, justamente no período de maior esperança, criada pelos acordos de Oslo, o Hamas tenha dado início a uma campanha particularmente brutal de terrorismo contra a população de Israel, fato este que, juntamente com transgressões da parte de Israel, viria a contribuir decisivamente para o fracasso daquele processo de paz. Portanto, como parece resultar de qualquer análise histórica isenta, o terrorismo islâmico atual não pode ser compreendido como mera extensão dos movimentos de libertação nacional, nem tampouco, como veremos, a ideologia que lhe serve de base.

 

Fundamentalismo

 

Ao abordar o fenômeno do fundamentalismo, Losurdo o faz de uma maneira bastante heterodoxa, visto que não o entende como um tipo específico de reação à modernidade, mas como algo quase que trans-histórico, na medida em que seria um resultado recorrente do "encontro-desencontro das culturas". O apoio teórico buscado por Losurdo neste ponto é o conhecido historiador das civilizações A.J. Toynbee que, em seu A Study of History, ao abordar a interação da antiga civilização judaica com a cultura helenística então em franca expansão imperial, distingue entre dois tipos opostos de atitudes, a saber: o "herodianismo" e o "zelotismo". O primeiro corresponderia à atitude de assimilação da cultura estrangeira, identificada por Toynbee simplesmente como "futurismo". Já o segundo corresponderia ao movimento de crispação identitária caracterizada pela postura de zelo ciumento da cultura nacional e de rejeição violenta da cultura estrangeira, entendida como elemento impuro e perturbador a pôr em risco a identidade autóctone. Esta postura é caracterizada por Toynbee de "arcaísmo".

É a partir desta base que Losurdo identificará a atitude "zelota" com o que chamamos hoje de fundamentalismo, o qual, nas palavras do autor, caracterizar-se-ia "pela tendência a construir uma identidade imóvel, anulando as relações e as influências recíprocas entre as diferentes culturas. Uma determinada tradição cultural torna-se compacta, exclusiva e antagônica em relação às outras; assim, ela tende a assumir uma configuração étnica. O fundamentalismo é uma tradição cultural propensa a tornar-se natureza, e natureza incompatível com respeito a outras tradições culturais, elas mesmas fixadas em uma permanência sem movimento". Pode-se depreender disto que, para o autor, todo e qualquer movimento político-comunitário que pretenda soldar suas bases identitárias com recurso a algum tipo de mitologia fundadora incorreria em "fundamentalismo". Coerente com esta premissa, Losurdo verá fundamentalismo praticamente em todos os movimentos nativistas ou nacionais, citando exemplos tais como a revolta dos boxers na China, a revolta de Mahdi no Sudão, o nacionalismo alemão com sua galofobia e exaltação dos antigos germanos, o sionismo com sua negação da diáspora, etc. Como facilmente se percebe, a lista poderia continuar quase indefinidamente.

Novamente, a exemplo do que ocorre com o fenômeno do terrorismo, o ponto problemático na conceituação losurdiana do fundamentalismo é que ela deixa escapar a sua especificidade como resposta reativa, ao mesmo tempo arcaica e moderna, à própria modernidade democrática com sua constitutiva separação das esferas do poder, do direito e do saber, operada pela criação de um lugar essencialmente vazio para o exercício da autoridade política (C. Lefort). Assim, a atual ressurgência do teológico-político só pode ser adequadamente compreendida, tanto em seu vigor quanto em seu perigo, como projeto político cujo objetivo maior é justamente colmatar aquilo que a modernidade separou, isto é, como uma revolta antidemocrátia que, na ausência de projetos políticos autenticamente emancipadores, se segue historicamente à falência dos totalitarismos seculares.

É bem verdade que Losurdo reconhece uma novidade no atual fundamentalismo, que também seria um produto da globalização, a qual generaliza o "encontro-desencontro das culturas", bem como do mercado mundial, cujo "cosmopolitismo" da produção capitalista destrói os "laços naturais de gênero", entregando os mais fracos ao seu destino, numa "dialética já analisada por Marx". Mas ao subordinar essa dialética ao esquema simplista "opressão imperial versus luta dos povos", Losurdo acaba por secundarizar a própria democracia2, isto é, justamente aquilo contra o que o fundamentalismo se insurge e que, portanto, ao reverso, lhe confere seu significado.

É claro que o fundamentalismo político-religioso atual retira suas forças de uma mobilização em sentido regressivo do mal-estar generalizado produzido pela dissolução mercantil das solidariedades sociais, com sua imponente massa de deserdados, ofendidos e humilhados, do mesmo modo que outrora fizeram os fascismos, cujo advento, aliás, Marx esteve longe de vislumbrar - fato que, dada as dificuldades hoje patentes de seu esquema geral da história, nos é compreensível. O mesmo já não se pode dizer da falta grave que comete Losurdo ao contemporizar com os atuais movimentos fundamentalistas islâmicos, associando-os anacronicamente a movimentos de libertação nacional3: "a história coloca-nos continuamente na presença de movimentos nos quais - ainda que de modo confuso, turvo e, às vezes, bárbaro - se agitam aspirações legítimas à independência nacional ou a recuperação de uma identidade cultural e de uma dignidade humana há muito tempo oprimidas".

De fato, nosso autor parece incapaz de compreender que, por exemplo, os terroristas islâmicos que promoveram o massacre de 11 de Setembro não se pareciam em nada com jovens desesperados que lutavam pela libertação de algum país ocupado… Em sua maioria, eram fanáticos oriundos de uma monarquia corrupta que, apesar de ser uma aliada dos EUA, constitui - juntamente com o regime islamofascista iraniano - o principal financiador do extremismo islâmico.

Aquilo de que certos esquerdistas - os quais, a exemplo de Losurdo, transformaram o anti-imperialismo em verdadeira "visão de mundo" - parecem não querer se dar conta é que seu esquema binário os cega para o fato evidente de que, longe de expressar aspirações de libertação nacional, o islamismo político é, ao contrário, um resultado da falência dos projetos propriamente nacionais de grande parte dos povos de cultura e religião islâmicas. Em seu horizonte político não há libertação alguma, mas apenas obscurantismo, miséria e opressão, articulados em uma nova forma de totalitarismo.

É claro que Losurdo está certo em afirmar que o termo fundamentalismo deve sempre ser declinado no plural. Ele nos lembra muito bem como os discursos de presidentes e congressistas norte-americanos aparecem muitas vezes repletos de referências ao Antigo Testamento e suas "guerras do Senhor". Da mesma forma que o fundamentalismo judaico, em sua versão nacionalista, prega abertamente contra a democracia israelense e desenvolve um tipo agressivo de racismo anti-árabe. Tudo isso é verdade e nos alerta para a circunstância de que a luta contra os fundamentalismos deve ser ampla e multifacetada. Entretanto, Losurdo vai além, pois a conclusão óbvia de seu livro nos leva à ideia de que, dentre os fundamentalismos existentes, o "fundamentalismo estadunidense" seria, na realidade, o principal inimigo, na medida em que forneceria uma justificação teológica para o "Império". Tal conclusão não apenas reforça a impressão de que, no esquema de Losurdo, a democracia é absolutamente secundária (afinal, apesar do estrago dos fundamentalismos, nem os EUA nem Israel estão na iminência de se transformarem em teocracias). Ela também evidencia, ironicamente, o "bom-mocismo" do autor, pois ignora solenemente o fato de que o islamismo político constitui uma tragédia, em primeiro lugar, e, sobretudo, para os próprios povos de religião islâmica. É entre eles que as vidas ceifadas pelo fanatismo religioso ou em guerras a ele vinculadas já se contam em centenas de milhares. Com efeito, são os homens e, principalmente, as mulheres de cultura e religião islâmicas que têm mais a temer por um eventual triunfo dos movimentos islamistas radicais, tal como já ocorreu na Arábia Saudita e no Irã, bem como, outrora, no Afeganistão.

 

Antiamericanismo

 

A acusação de antiamericanismo jogaria um papel importante na estratégia dos ideólogos do Império para calar e enquadrar as vozes críticas a sua política expansionista, sobretudo no que respeitaria aos intelectuais e políticos europeus. Esta é a tese de Losurdo, que classifica simplesmente como um "mito" o que seria a convergência, em perspectiva antidemocrática, do antiamericanismo de direita e de esquerda. Para prová-lo, o autor recorrerá a uma via dupla. Por um lado, mostrará que importantes comunistas, a começar por Marx e Engels, passando pelos bolcheviques Lênin, Bukarin e Stalin, e chegando a Gramsci, referiram-se em termos extremamente elogiosos aos EUA, tanto à sua política quanto a sua cultura. "Não há dúvida", diz Losurdo, "que os bolcheviques se sentem atraídos pela América do melting pot, do self made man e do desenvolvimento das forças produtivas". Entretanto, "outros aspectos são decididamente repugnantes aos olhos deles". A referência aqui é ao regime de white supremacy, que imperava sobretudo no Sul dos EUA, onde então atuava vigorosamente a Ku Klux Klan. Mas em nenhum momento, afirma o autor, a crítica desemboca em uma condenação indiscriminada dos EUA, isto é, em antiamericanismo.

Por outro lado, Losurdo irá demonstrar que a condenação pela extrema-direita europeia dos EUA nunca teria sido inequívoca. É que ela odiaria apenas os aspectos com os quais os comunistas simpatizavam, e vice-versa. Assim, o autor demonstra de modo convincente as intensas trocas e coloborações - com base no racismo antinegro e antijudaico - entre os adeptos da white supremacy americana e a reação europeia, sobretudo os fascistas italianos e os nazistas alemães. Mais do que isso, no que diz respeito à teoria política da segregação racial, seriam os supremacistas norte-americanos que ocupariam a vanguarda, como indicam as palavras de um expoente da eugenia nazista, o médico Fritz Lenz, que, já em 1923, lamentava-se pelo fato de que no que dizia respeito à higiene racial (Rassenhygiene), a Alemanha estaria muito atrás dos Estados Unidos. Daí a fascinação exercida sobre os nazistas, incluindo Hitler, por certo "americanismo" (Amerikanertum), entendido, nas próprias palavras do führer, como a expressão de "um povo jovem e racialmente selecionado". Mesmo as palavras-chave mais odiosas do abominável léxico nazista teriam sido traduzidas de autores estadunidenses, sobressaindo-se entre eles o notório Lothrop Stoddard, que, após ser elogiado por Rosenberg, foi recebido com todas as honras em Berlim pelas figuras de proa da eugenia nazista, bem como pelos hierarcas do regime, inclusive Hitler. Assim, o Untermensch dos nazis seria uma tradução do underman que consta do subtítulo do livro mais famoso de Stoddard (the menace of underman). O perigo da diminuição relativa dos nascimentos entre os brancos, combatido na Alemanha como "suicídio racial" (Rasseselbsmord), já teria sido antecipado pelo presidente estadunidense Theodore Roosevelt (race suicide). Por fim, até o repugnante eufemismo que na Alemanha foi usado para designar o projeto de sistemático extermínio de todo um povo (Endlösung) teria sido antecipado por autores americanos, que, entre o fim do século XIX e início do XX, já sugeriam a necessidade de uma final and complete solution ou ultimate solution da "questão negra".

Como se pode perceber, a análise através da qual Losurdo pretende refutar a tese da convergência, em perspectiva autoritária, do antiamericanismo de direita e de esquerda traz elementos muito interessantes. Entretanto, é preciso uma grande dose de ignorância história para não concluir que se trata aqui de uma falácia. Em primeiro lugar, sobre o antiamericanismo de esquerda, o qual Losurdo sustenta não passar de um "mito", é impossível não pasmar diante do fato de que ele exclui de sua análise histórica justamente o período em que ele (o antiamericanismo de esquerda) se tornou um fenômeno relevante, isto é, o período da Guerra Fria! Foi então que os Estados Unidos passaram a encarnar a pátria do capital imperialista, desprovidos do que seria uma autêntica cultura orgânica, mas possuidores apenas de uma civilização comercial composta por indivíduos superficiais e frívolos, cujo hedonismo depravado e egoísmo mesquinho os tornaria congenitamente incapazes de sacrifício por ideias elevados. Nesse contexto, falar em "cultura americana" chegava a ser quase um oxímoro, visto que se trataria de algo puramente mercantil e mecanizado.

É claro que este retrato desumanizador ganhou mais força nas esquerdas do Terceiro Mundo, que passavam a revalorizar o nacionalismo como um componente fundamental na luta contra a dominação do "imperialismo ianque". Também é inegável que esse antiamericanismo foi fortemente alimentado pela real e deplorável atuação imperialista dos EUA durante a Guerra Fria, conspirando com todo tipo de candidato a ditador terceiro-mundista que se provasse suficientemente antissoviético. Entretanto, parece óbvio que a ação política dos Estados Unidos é amplamente insuficiente para explicar o fenômeno em tela, uma vez que todo autêntico preconceito não se reduz a mero resultado de circunstâncias objetivas. Muito mais do que simples reação irrefletida e espontânea a políticas específicas de Washington, o antiamericanismo passou a constituir uma peça fundamental da ideologia de certa esquerda autoritária, na medida em que esta transformava seu anti-imperialismo em verdadeira "visão de mundo", cuja binariedade passava então a sobrepujar em sentido regressivo a sofisticada crítica marxista à Economia Política. Em seu livro, Losurdo, claramente um adepto da weltanschaung anti-imperialista, constitui uma exceção à regra, visto que não adere propriamente ao antiamericanismo. Mas, se não o faz, é apenas ao preço de, bem ao velho estilo stalinista, apagar da história tudo aquilo que contraria as suas teses.

Já quanto ao antiamericanismo de direita, Losurdo sublinha bem que, se a reação europeia flertava abertamente com certo "americanismo" - aquele da Ku Klux Klan e do espírito guerreiro e colonialista do Far West - ela também sentia profunda repugnância pela América do melting pot e da mistura racial. Esta seria a América "judaizada" que Hitler via "conspirar" contra a Alemanha e contra a qual ele declararia guerra. Mas o que Losurdo não diz é que esta "outra" América era "judaizada" aos olhos dos reacionários europeus não apenas no sentido da mistura racial, mas também, e com igual importância, no sentido de que consistiria em uma civilização não orgânica, artificial, isto é, como já vimos acima, mecanizada, mercantilizada, cujo materialismo vulgar, prosaico e egoísta encarnaria a mais perfeita antítese do que seria a espiritualidade heroica e sacrificial europeia4 e, mais especificamente, alemã, uma vez que, como se sabe, antes de ser exportada para várias partes do mundo - em diferentes e, às vezes, até opostas correntes políticas -, não por acaso esta temática originou-se no nacionalismo romântico alemão, em parte uma reação à hegemonia da cultura francesa no velho continente, após a revolução de 1789 e o período napoleônico. Portanto, a convergência antidemocrática do antiamericanismo de esquerda e de direita não se resume apenas, como quer Losurdo, à mera fabulação dos ideólogos do "Império". Ela possui uma realidade e uma história bem concretas. O que os une é uma espécie de pseudo-revolta fetichista5 contra o que seria o predomínio corruptor das abstrações do capital sobre a autenticidade dos costumes dos povos. Todos aqueles que possuem alguma familiaridade com a "lógica do antissemitismo" não poderão deixar de notar as semelhanças evidentes com o antiamericanismo assim compreendido, embora um não implique necessariamente o outro.

 

Antissemitismo

 

A acusação de antissemitismo constitui, para Losurdo, um expediente importante para calar toda crítica a Israel com sua política de ocupação. É uma acusação, sublinha o autor, cuja volatilidade faria com que, paradoxalmente, nem mesmo o Estado de Israel esteja a salvo, uma vez que colonos judeus fanáticos não raro acusam o exército israelense de "odiar os judeus" por ocasião de evacuações forçadas de assentamentos judaicos, como notadamente ocorreu em Gaza em 2005. Mais ainda, Losurdo se insurge contra a tentativa de, na questão do antissemitismo, opor positivamente os EUA à Europa, como se este flagelo fosse uma enfermidade típica desta última, enquanto ao primeiro costumaria ser reservado o epíteto de terra da tolerância multicultural. Tal oposição, defende o autor, só poderia ser sustentada por uma clara manipulação histórica, visto que, como já foi mencionado acima, o regime norte-americano de white supremacy foi um modelo que exerceu grande influência sobre os movimentos racistas europeus, destacando-se dentre eles o movimento nazista, que, durante anos, nutriu amistosas relaçõos de colaboração com a Ku Klux Klan. Esta teria sido o primeiro movimento no Ocidente a conjugar "agitação antissemita e violência de grupos fascistas". Além disto, Losurdo nos lembra da acolhida calorosa que o libelo antissemita de Henry Ford encontrou entre os hierarcas nazistas, que, em seu O Judeu Internacional encontraram a importante "revelação" de que, assim como a democracia, o bolchevismo constituiria também um instrumento privilegiado para o projeto da dominação mundial judaica.

Mas qual seria o motivo desta curiosa tendência a isentar os EUA de qualquer responsabilidade histórica sobre o antissemitismo? A resposta, segundo Losurdo, residiria no atual pacto político interno aos EUA entre as lideranças das comunidades judaica e cristã, pelo qual se tenta separar ideologicamente dois fenômenos que, historicamente, surgiram em estreita associação, a saber: o moderno antissemitismo racial e o racismo em relação aos povos coloniais - fato que, como se sabe, foi primeiramente lembrado por Hanna Arendt. Esta clara manobra ideológica culminaria no extremo a que chega Paul Johnson, historiador britânico que simplesmente pretende tachar a própria categoria de imperialismo de antissemita, uma vez que esta, a partir de Atkinson Hobson (autor liberal muito apreciado por Lênin), aprofundaria suas raízes na "teoria antissemita do complô". Daí, sustenta o autor, a urgência política da tarefa de análise histórica e teórica do antissemitismo.

Em primeiro lugar, ao analisar historicamente o fenômeno do antissemitismo, Losurdo - seguindo também aqui Hanna Arendt - alerta para a necessidade de se distinguir entre a judeofobia religiosa medieval e o moderno racismo antijudaico, isto é, o antissemitismo propriamente dito. A judeofobia medieval baseava-se na posição ambígua ocupada pelos judeus na Cristandade, uma vez que eram ao mesmo tempo incluídos e excluídos dela. Por um lado, eram renegados por ter rejeitado Jesus e, no extremo, até mesmo por tê-lo matado (acusação de deicídio). Por outro lado, os judeus constituíam o povo que deu origem ao Cristo e cuja miséria neste mundo dava testemunho da verdade cristã enquanto Verus Israel. Nesse sentido, eram como irmãos mais velhos desencaminhados, que deveriam ser duramente castigados, mas também de quem se esperava uma conversão para a "verdadeira fé" no final dos tempos, conforme conhecido tema bíblico. A partir daí, compreende-se o papel dúplice exercido pela Igreja em relação aos judeus, ao mesmo tempo a fonte maior de uma violenta judeofobia - que resultou nos constantes massacres das comunidades judaicas que viviam dentro da Cristandade - e zelosa guardiã da "família judaico-cristã", que incentivava a conversão dos judeus e cuidava para que a sua perseguição não se transformasse em extermínio total. Já o preconceito contra os infiéis muçulmanos era decididamente unívoco. Estes se constituíam em verdadeiros inimigos da Cristandade que poderiam ser mortos sem que isto implicasse pecado. Além do mais, como bem nota Losurdo, foi em relação aos muçulmanos (e também aos negros) que o preconceito religioso cristão adquiriu, pela primeira vez, tons naturalistas, identificando na pele escura uma marca indelével de inferioridade.

A passagem da judeofobia cristã para o antissemitismo envolve, sublinha Losurdo, uma verdadeira mudança de paradigma. Ao situar racialmente a diferença judaica, os modernos antissemitas rompiam a ambiguidade da judeofobia cristã medieval em relação aos judeus, que ficavam agora claramente excluídos do âmbito dos povos civilizados. Desta forma, o racismo científico, umbilicalmente ligado ao colonialismo europeu do século XIX, estabelecia uma clivagem definitiva e intransponível entre os povos-senhores (arianos) e os povos bárbaros, destinados por sua própria natureza à servidão e, no limite, ao extermínio. Foi a necessidade dos "arianos" europeus de diferenciar-se racialmente, em primeiro lugar, dos povos colonias, externos ao Ocidente, que produziu neles a necessidade análoga de diferenciar-se, agora também em termos raciais, dos judeus, um povo que há muito tempo havia chegado ao Ocidente, mas que permaneceria essencialmente "oriental". Assim, o antissemitismo racial não apenas opera uma ruptura com a judeofobia cristã, mas também termina com um nada surpreendente ajuste de contas com o próprio cristianismo, que passaria a ser cada vez mais referido pelos antissemitas europeus (sobretudo alemães) como uma enfermidade judaica da qual tornava-se imperioso tomar a devida distância.

A conclusão de Losrudo, neste ponto pertinente, é que o combate ao antissemitismo deveria sempre ser posto ao lado do combate ao racismo que atinge os povos de origem colonial, significando assim a rejeição categórica de toda forma de discriminação racial. Se isto não ocorre atualmente seria porque, segundo o autor, após o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do Terceiro Reich, Israel, bem como as comunidades judaicas da diáspora, teriam sido cooptados pelo Ocidente, passando por um processo de branqueamento e deixando de ser considerados parte dos povos "negroides", de pele escura e, portanto, estranhos ao Ocidente, o que não aconteceu com os povos árabes e islâmicos, de modo que a referida oposição entre EUA e Europa na questão do antissemitismo acabaria resultando em uma forma sutil de racismo, uma vez que não apenas escamoteia o importante capítulo norte-americano do antissemitismo, mas também se sustenta na abstração do racismo antinegro, bem como do extermínio dos peles vermelhas.

O único reparo aqui é que a tese da simples cooptação deixa no escuro o fato de que, no Ocidente, o antissemitismo, após certo declínio, retomou ímpeto e tem dado provas claras de vitalidade. Mas isto o autor não se propõe discutir, embora reconheça algo da complexidade desta questão, produzida, a seu ver, sobretudo pela facilidade em se deslizar de uma crítica legítima da religião judaica (como de qualquer outra religião) para um preconceito dirigido indiscriminadamente aos judeus, através do que ele denomina de "plano inclinado da judeofobia". O deslize neste plano seria induzido pela peculiaridade de que a religião judaica concerne exclusivamente a um povo. Além disso, acrescenta o autor, existe historicamente a associação entre judeus e comércio/finanças, a qual produz o resultado de que, no caso específico dos judeus, "o conflito religioso entrelaça-se com o conflito social. Além de ser atacado por sua religião, o judeu é atacado pela posição ocupada no âmbito de uma divisão social do trabalho, imposta, aliás, pelo grupo dominante". Nesse sentido, Losurdo compara o antissemtismo ao preconceito contra os armênios no Império turco-otomano (o qual também produziu um genocídio) bem como ao preconceito contra as comunidades chinesas do Leste asiático, as quais foram vítimas de grandes massacres.

Embora as pontuações de Losurdo sobre as complexidades do antissemitismo sejam importantes, salta aos olhos que elas estão longe de dar conta desse fenômeno, pois não explicam: a) a notória plasticidade do racismo antijudaico, haja vista que suas vítimas são acusadas a um só tempo de serem banqueiros inescrupulosos e comunistas empedernidos; arraigados às suas tradições e cosmopolitas desenraizados, etc.; b) o fato de que o Holocausto judeu se deu em uma época em que não havia mais nada da tal posição objetiva dos judeus na divisão social do trabalho; c) a estranha "universalidade" deste racismo, explicitada no fato de que ele pode verificar-se nas mais diversas - e até mesmo opostas - correntes políticas. Mas, no livro em questão, o que interessa ao autor é, sobretudo, o abuso que os ideólogos do Império possam fazer da categoria de antissemitismo. Neste sentido, ele defende a necessidade de se estabelecer critérios claros e distintos sobre esse fenômeno, distinguindo entre o que seriam "três tipos radicalmente diferentes de atitudes críticas em relação ao judaísmo". Às já citadas judeofobia religiosa e antissemitismo racial, teria, defende Losurdo, que ser acrescentada uma terceira: a de "antijudaísmo", que consistiria numa "crítica legítima (o que não significa correta) da tradição religiosa e cultural judaica". Portanto, para Losurdo, existe critério claro e objetivo para definir o antissemitismo: "a crítica do judaísmo, em si legítima (como a de qualquer tradição religiosa ou cultural), transforma-se em algo qualitativamente diferente só quando ela se entrelaça com a reivindicação de uma discriminação negativa feita para os seguidores daquela tradição".

Embora essas distinções propostas por Losurdo sejam corretas e, mesmo, necessárias, o problema aqui é que na realidade nem sempre existe uma separação tão nítida entre as três atitudes supracitadas. Assim, durante a exterminação nazista, verificou-se, em várias partes da Europa, grandes pogroms de judeus nos quais esteve presente a acusação de deicídio. Mas a questão mais delicada, aqui, é aquela que opõe a crítica legítima à discriminação étnico-racial. É fundamental, política e moralmente, distinguirmos entre crítica legitima e preconceito e, igualmente, entre preconceito social, discriminação política e a "passagem ao ato" genocida. Contudo, no plano da história concreta, é impossível ignorar que o "mero" preconceito social pavimenta o caminho para o racismo político e, este, por sua vez, para as políticas de limpeza étnica e, no limite, de extermínio. A dificuldade também consiste em que, por um lado, a livre crítica racional a todas as tradições religiosas é inegociável para as sociedades democráticas. Por outro lado, nem sempre há um limite claro entre uma crítica legítima e a caricatura preconceituosa produtora de ódio e desprezo aos povos ligados a certa cultura ou religião. Com a defesa de um critério bem definido para a atitude racista, que seria a presença ou não da proposição da discriminação negativa, Losurdo pretende resolver também a espinhosa questão do chamado "antissemitismo esclarecido". Para ele, corretamente, não haveria como comparar a crítica feita por autores como Voltaire, Hegel, Marx, etc., que eram favoráveis à emancipação dos judeus, daquela de autores que propunham a segregação, a expulsão ou até o extermínio dos mesmos. Do contrário, afirma o autor, teríamos que classificar como antissemita boa parte do panteão intelectual do Ocidente, de modo que "Adolf Hitler deveria sentir-se lisonjeado por estar em tão prestigiosa companhia!" Além disso, conclui Losurdo, "pode-se dizer que, depois do horror de Auschwitz, certos movimentos espirituais se tornaram intoleráveis; no entanto, seria anti-histórico projetar nossa sensibilidade hodierna diretamente sobre textos de dois séculos atrás".

Haveria muitas questões a se discutir aqui. Sobre o tema do "antissemitismo esclarecido", deveríamos distinguir entre, de um lado, autores como Voltaire e Marx, que, apesar de suas observações sobre o judaísmo estarem repletas de violentos preconceitos, objetivavam, ainda que de modos muito diferentes, a crítica do fenômeno religioso enquanto tal, não privilegiando uma única tradição. Por outro, autores como Kant e Hegel, que, ao mesmo tempo em que celebravam as virtudes espirituais do cristianismo (sobretudo em sua versão protestante), despejavam sobre o judaísmo e os judeus ataques absolutamente desumanizadores. Aqui entramos na difícil questão do antissemitismo no panteão artístico-intelecutal do Ocidente. A dificuldade, diga-se, advém de um problemático lugar comum, ele mesmo "esclarecido", a saber: aquele que identifica preconceito racial com ignorância. O que incomoda em relação ao fenômeno do antissemitismo, justamente, é que ele constitui o desmentido cabal deste lugar comum. E isto, é imperioso que se afirme, não traz nenhum atenuante para os antissemitas, mas, ao contrário, lança uma sombra de suspeição sobre a nossa própria tradição intelectual e cultural. Assim, deveríamos responder a Losurdo que, como já foi dito acima, uma vez feitas as imprescindíveis distinções políticas e morais entre três males que, apesar de interligados, são de fato e de direito diferentes entre si: preconceito social, racismo político e, por fim, prática genocida; uma vez afirmadas tais distinções, podemos dizer que sim, em certo sentido, Hitler está e esteve em "boa" companhia. Seria fácil descartar o nazismo e os nazistas como uma anomalia monstruosa no desenvolvimento da cultura ocidental. Mais difícil seria explicar o apoio maciço que tiveram do povo alemão e de partes de muitos outros, que colaboraram ativamente na "solução final" nazista. Mais séria é atitude que, sem abrir mão da singularidade do crime nazista, se dispõe a enfrentar o difícil problema apresentado pela constatação de que nos picos mais altos da tradição cultural do Ocidente, já se encontrava presente o ovo da serpente. Tal constatação nos obrigaria a uma revisão crítica (a qual só pode ser feita por meio da própria razão) de toda a nossa tradição, tarefa que, como se sabe, foi empreendida por autores como Adorno e Horkheimer. É claro que Losurdo está correto ao afirmar que seria anti-histórico projetarmos nossa sensibilidade contemporânea sobre autores que viveram em séculos passados. Entretanto, desta vez de um modo bem afeito ao pensamento histórico de Marx ("a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco"), deveríamos afirmar que o inverso também é verdadeiro, isto é, depois de Auschwitz, certos textos já não podem mais ser lidos como se nada tivesse passado. A catástrofe do século XX cria retroativamente os seus precursores.

 

Antissionismo

 

Losurdo pretende refutar a tese, que seria "do Império", de que o virulento antissemitismo europeu dos séculos XIX e XX continuaria muito vivo e atuante, visto que teria sido transferido para o Oriente Médio. Sua análise não começa, como pareceria natural, pelo nacionalismo árabe ou pelo islamismo político, mas com críticas ao próprio sionismo. Losurdo lembra que Herzl foi influenciado pela ideologia colonialista de sua época; que, em seus escritos, há traços claros de concessão ideológica aos antissemitas; que, no início, o sionismo foi visto com simpatia por muitos antissemitas empedernidos, os quais viam a possibilidade de se livrar dos judeus europeus, transferindo-os para a Palestina (neste sentido, lembra também o delicado tema do acordo entre a liderança sionista da Palestina e o regime nazista, pelo qual muitos judeus alemães conseguiram ir para a Palestina em troca de pagamentos, que contrariavam as tentativas das lideranças judaicas da época de boicotar a Alemanha nazista ). Depois disso, o leitor familiarizado com o tema esperaria que Losurdo assumisse a postura usual da extrema-esquerda anti-imperialista, condenando in totum o próprio sionismo por ser "essencialmente" colonialista e racista. Mas, surpreendentemente, ele não o faz. Reconhece que as tratativas de algumas lideranças sionistas com os nazistas eram eminentemente instrumentais e, além disso, admite que ataques contra o sionismo vindos de conhecidos autores judeus como Arendt e Klemperer não seriam "imunes a exasperações polêmicas e ao risco de simplificações excessivas". Além disso, aponta o fato um tanto óbvio, mas que costuma ser grosseiramente ignorado em numerosas críticas, de que o movimento sionista não pode ser reduzido à ideologia circunstancial de seu fundador. A este respeito, afirma: "não há dúvida, são vários os componentes do movimento sionista e são também sionistas com uma longa história de esquerda que promovem a fundação do Estado de Israel"6. E, por fim, reconhece - como outrora fizera a União Soviética e os PCs do mundo inteiro, antes que a dinâmica ideológica da Guerra Fria obscurecesse o fato - que o sionismo foi um movimento de libertação nacional, pois "no sionismo encontra a exigência de um povo, tradicionalmente oprimido, de conseguir o reconhecimento não só como conjunto de indivíduos, mas também como povo, como cultura, como entidade metaindividual"7.

Portanto, é preciso reconhecer que a crítica que faz Losurdo - tanto correta quanto incorretamente - a diversos aspectos do sionismo, possui qualidade superior ao que é normalmente encontrado entre os seus congêneres "anti-imperialistas". Embora não esteja isenta de suas próprias "exasperações polêmicas" e "excessivas simplificações", não há nada aqui das costumeiras arengas odiosas contra a "entidade sionista" ou o "Estado artificial de Israel", o qual, como fruto de uma conspiração sionista-imperialista para submeter os povos árabes, encarnaria a fonte de todo o mal na região, devendo, portanto, ser extirpado.

É pena que esse salto de qualidade não se mantenha na abordagem que Losurdo faz do nacionalismo árabe e dos movimentos islâmicos. Ele até chega a fazer duas perguntas, que considera lícitas e até obrigatórias: "verifica-se um desvio naturalista e racial também na luta conduzida pelo povo palestino?" e "a recusa a reconhecer Israel não é a prova irrefutável da persistência do antissemitismo entre os palestinos e no mundo islâmico?" Mas as respostas, como veremos, são pura evasiva.

É verdade que, muitas vezes, a direita israelense instrumentaliza o antissemitismo dos movimentos e regimes árabes e islâmicos, numa política de administrar o medo dos judeus em benefício dos seus projetos da "grande Israel" (que se concretizaria, substancialmente, com a anexação de grande parte da Judeia e Samaria, isto é, da Cisjordância palestina). Admitir isso, no entanto, não pode significar negar a realidade e o vigor deste antissemitismo. Como comprova qualquer bibliografia básica sobre este assunto, a qual, estranhamente, falta ao livro de Losurdo8, o antissemitismo vigente no mundo árabe-islâmico está longe, muito longe, de ser um fenômeno marginal. Trata-se de uma região do mundo em que os famigerados Protocolos dos Sábios de Sião são ensinados nas escolas como verdadeiros documentos históricos e a autobiografia de Hitler é permanentemente um best-seller. O Holocausto é apenas mais uma mentira da conspiração judaica para dominar o mundo, perfidamente incutida nos povos ocidentais pelos mídia, que, é claro, são amplamente dominados pelos judeus. Trata-se aqui de uma loucura sancionada publicamente pelos aparelhos ideológicos estatais, bem como por grande parte dos intelectuais e dos mídia dos regimes árabes. Malgrado as grandes diferenças, no que diz respeito ao ódio antijudaico, a única analogia histórica possível neste contexto - no qual a destruição de Israel e o extermínio de judeus são moralmente legitimados - é com a Alemanha dos anos 1930.

Em sua denúncia do racismo anti-árabe que cresce em Israel, Losurdo, muito corretamente, não faz concessões. Mas diante do virulento antissemitismo que, há várias décadas, é disseminado no mundo árabe e islâmico, qual é a sua postura? Infelizmente, uma lamentável combinação de atenuações e negações, empregadas em uma clara estratégia de evasiva. Sobre o uso dos mencionados "Protocolos" pelos regimes árabes e/ou islâmicos, ele tem a dizer apenas que "ao que parece" (sic.), alguns dos seus setores o trariam à tona. Mas isto se daria apenas como uma compreensível "tentativa de explicar a tempestade que se abateu sobre eles". Seria, sim, "um fenômeno de barbarização cultural", admite. Mas "limitado", e que não poderia ser definido como antissemitismo, já que, por alguma estranha razão, para Losurdo esta categoria só valeria para o Ocidente9.

É em relação ao regime iraniano que a estratégia de evasiva aqui mencionada chega ao cúmulo do caricato. A respeito das reiteradas declarações de M. Ahmadinejad sobre a necessidade de Israel ser riscado do mapa, Losurdo, aparentemente sem medo de cair no ridículo, encampa a tese de que isto constituiria apenas uma vaga referência a uma "necessidade histórica". Já a negação do Holocausto se deveria tão somente à "expressão desajeitada e infeliz do desejo de chamar a atenção para os sofrimentos e as injustiças impostas aos palestinos e árabes". Em suma, na visão de Losurdo, tudo não passaria de fenômenos que, embora lastimáveis, seriam a compreensível resposta de uma sensibilidade ultrajada. Sensibilidade, diga-se, muito seletiva, pois não se aplica a episódios como o gaseamento da população curda pelo regime de Sadam Hussein, ou mesmo o recente extermínio das populações animistas sudanesas perpetrado pelo regime árabe-islâmico de Cartum. Isso para não falar das pilhagens, pogroms e expulsões que afetaram a centenas de milhares de judeus que viviam no mundo árabe até a criação do Estado de Israel. É interessante notar aqui como o autor, que em seu livro pretende o tempo todo criticar o dogmatismo inerente a todo discurso unilateral, pratica exatamente o que condena. Com certeza, para sensibilidades, como a de Losurdo, muito dispostas a "compreender" determinados racismos (inclusive, violentos racismos de Estado), não faltariam motivos para também atenuar o racismo antiárabe que grassa atualmente em Israel, visto ser este um país minúsculo, com uma população diminuta, cercado por inimigos numerosos que, no passado, já tentaram por várias vezes destruí-lo, e cuja população é, em grande parte, formada por refugiados tanto da Europa quanto dos países árabes. Isso para não mencionar o grande número de famílias israelenses que tiveram membros seus mortos em guerras ou assassinados por terroristas, etc. Mas, não custa repetir, nenhum autêntico preconceito é mero resultado de circunstâncias objetivas, reais ou supostas. Ao contrário do que nos querem fazer crer certos ideólogos, o racismo - todo racismo - continua sendo o que sempre foi, uma modalidade perversa de ódio resultante de falsas projeções e que, portanto, diz muito mais a respeito dos seus sujeitos do que de suas vítimas10.

 

Filoislamismo e ódio ao Ocidente

 

A acusação de filoislamismo desempenharia hoje, para Losurdo, papel análogo ao que, no passado, teve a acusação de filossemitismo feita pelos antissemitas a todos os que se recusavam a aderir à sua campanha de ódio contra os judeus, bem como eram igualmente acusados de simpatizar com os "assassinos dos brancos" os abolicionistas que, outrora, combateram a escravidão negra. Tratar-se-ia, com isso, de intimidar todos aqueles indivíduos que, pertencentes aos povos-senhores (Herrenvolk), se identificam com a causa dos povos por eles subjugados, tachando-os de colaborar com um perigoso inimigo. "Essa inversão dos lados", alerta o autor, "de agredidos e agressores, oprimidos e opressores, não deve espantar, é parte integrante da ideologia colonial". Baseando-se sobretudo em uma publicista islamófoba italiana11, que vende bem nas duas margens do Atlântico, mas cujos escritos não possuem prestígio intelectual algum, Losurdo expõe uma série convincente de analogias entre a atual onda de islamofobia e o antissemitismo clássico, intensificada pelo fato de que, hoje, já vive dentro do Ocidente uma expressiva população originária dos países islâmicos, resultando com que estes imigrantes possam também desempenhar o papel de inimigos internos, como outrora os judeus. Entretanto, o autor admite que o racismo hoje dirigido contra os povos árabes e islâmicos está mais em continuidade com o racismo colonial do que propriamente com o antissemitismo. Observação fundada, até porque ainda é difícil imaginar os imigrantes islâmicos que vivem no Ocidente sendo acusados de parasitas monopolizadores da riqueza ou culpabilizados pelas crises econômicas do capitalismo.

Por fim, a acusação de "ódio ao Ocidente", para Losurdo, resumiria todas as anteriores, na medida em que este Ocidente é identificado como "greco-romano-judeu-cristão", singularizado por unir o universalismo ético judaico-cristão com o princípio da valorização do indivíduo e da razão caros à tradição greco-romana. Enfim, a "alma ocidental", que culminaria na institucionalização das modernas democracias liberais, é oposta às tradições holísticas e autoritárias "orientais". Losurdo contesta tal oposição fixa como sendo uma manobra ideológica, que obedeceria a uma estratégia de exclusão e subordinação das populações não brancas. Em primeiro lugar, lembra que o advento das democracias liberais é algo extremamente recente se comparado à pretensa "essência" da tal "alma ocidental". Também chama a atenção para a dificuldade de inserir em uma mesma tradição harmônica judaísmo e cristianismo, pois para isso teriam que ser esquecidos os séculos de opressão e exclusão a que os judeus foram submetidos no interior da Cristandade. Mais radicalmente, pergunta: como incluir na mesma tradição o povo que sofreu a chamada "solução final" e aquele que a perpetrou? Last but not least, observa que o tema da defesa da Civilização Ocidental foi historicamente usado para legitimar exclusões preconceituosas com o objetivo de consolidar hegemonias geopolíticas. Em um extremo, vemos a própria Inglaterra ser contraposta ao "verdadeiro Ocidente", que seria encarnado unicamente pelos Estados Unidos. Em outro, até mesmo a Alemanha nazista já se arrogou o papel de defensora da cultura e da alma ocidentais, durante a guerra de extermínio com que agrediu a União Soviética. Nesse mesmo sentido, Losurdo argumenta que esta autocelebração ocidental, como civilização e cultura onde nasceram o reconhecimento do valor irredutível do indivíduo em sua universalidade, tem por outra face da moeda certo negacionismo, igualmente ocidental, a respeito do destino reservado aos povos coloniais ou de origem colonial12. A isto atribui o que seria a sacralização, nas duas margens do Atlântico, de pensadores como Leo Strauss e Tocqueville.

Neste ponto, a pertinente questão levantada por Losurdo, e já citada, a respeito da atual dissociação, no discurso hegemônico ocidental, entre a condenação do antissemitismo e do racismo dirigido aos povos coloniais - fenômenos que, como vimos, nasceram historicamente ligados -, ganha todo o seu peso. Com efeito, pergunta o autor, por que à Nuremberg que condenou os grandes criminosos nazistas não se seguiu outra, igualmente fundamental, que seria a "Nuremberg" para julgar os grandes crimes perpetrados contra os povos coloniais? A resposta a esta pergunta, dada por Losurdo, levanta um tema central para o autor, realmente penetrante e que faz pensar. Ela consiste no tema das Herrenvolk democracys (a grafia, tal como cunhada por certa historiografia norte-americana, mistura propositalmente o alemão e o inglês).

Em resumo, o autor sustenta que a referida dissociação se deve ao fato de que o julgamento do nazismo foi historicamente legitimado pela superioridade moral das democracias e dos Direitos Humanos a elas ligados. Ocorre que as democracias ocidentais foram - e, para Losurdo, ainda seriam - historicamente democracias para os povos-senhores, que, se de um lado limitavam o poder e garantiam direitos nos países ocidentais, de outro, perversamente, legitimavam (e ainda legitimariam) as piores arbitrariedades e violências contra os povos não brancos. Eis aí a razão mais profunda que leva o autor a, como já notamos, conferir um peso absolutamente secundário à questão democrática, submetendo-a ao que seria denominado em tempos passados de "contradição fundamental", a qual simplesmente subsumiria todas as demais e se encarnaria na luta anti-imperialista. De fato, o que Losurdo parece querer nos dizer o tempo todo é: se hoje, como ontem, a democracia e os Direitos Humanos são usados como ideologia pelas potências ocidentais para, através das chamadas "intervenções humanitárias", legitimar seus próprios interesses estratégicos e submeter o resto do mundo, a tarefa da esquerda deve ser, como outrora propôs a Terceira Internacional, apoiar incondicionalmente a "luta dos povos" contra o "Império", quaisquer que sejam suas compreensíveis limitações ideológicas. O que importa agora é a questão nacional. A questão democrática vem depois… Eis aí a fórmula para o desastre.

 

A arte da evasiva

 

No livro em questão, apesar das evidentes negações e distorções históricas, sem dúvida há muitas coisas verdadeiras. Sobretudo, o autor tem toda razão ao expor os dois pesos e as duas medidas com que as potências ocidentais (incluindo Israel entre elas), tratam, de um lado, a si mesmas e os seus aliados e, de outro, os seus inimigos. Entretanto, Losurdo, que o tempo todo pretende criticar o que denomina de dogmatismo unilateral que estaria impregnado na "linguagem do Império", não escapa, ao fim e ao cabo, ele mesmo de ser dogmático, pois as elaborações teóricas e digressões históricas de que se utiliza para expor o maniqueísmo da ideologia da "guerra de civilizações" repousam, como tentamos argumentar, elas mesmas em uma evidente simplificação, uma estrutura binária jamais questionada. O resultado, malgrado as aparências conferidas pela erudição, é a produção de um discurso tão estreito e autoritário quanto aquele a que o autor se opõe, sustentado numa estratégia de repressões e desconversa. Terrorismo, há aquele dos poderosos e o dos fracos e desesperados. Este último, embora lastimável, é compreensível. Fundamentalismo? Há vários, mas devemos distinguir aqueles que sustentam pretensões imperiais daqueles através dos quais se expressam legítimas aspirações nacionais. De quais tomaremos partido? Filoislamismo e ódio ao Ocidente? Apenas estratagemas com que, desde o colonialismo clássico, os ideólogos dos "povos senhores" procuram intimidar os seus adversários13. Já com relação ao antiamericanismo e antissemitismo14, a resposta é dupla. No que concerne aos supostos movimentos islâmicos de libertação nacional, eles existem, mas não passam de fenômenos residuais, reações compreensíveis a agressões históricas. Já com relação à esquerda (sobretudo, a comunista, filiada, assim como o autor, à tradição da Terceira Internacional), é como se tivéssemos um silogismo oculto: a) a esquerda, embora reconheça a importância da questão nacional, é internacionalista; b) assim, nela não há lugar nem para antiamericanismo nem, muito menos, para antissemitismo; c) logo, isto não existe na esquerda, é puro mito (apague-se as evidências em contrário!).

Já se disse que Domenico Losurdo é mestre na arte de defender acusando. A linguagem do Império é um livro escrito por um expoente de certa esquerda, cujo público, é verossímil presumir, deve ser formado, em grande parte, por leitores simpáticos a essa mesma esquerda. Ao fim da empreitada, pretensamente desmistificadora, um e outros saem com a consciência tranquila, tanto em relação aos engajamentos passados quanto aos presentes. O inimigo foi claramente apontado. Fundamentalmente, ele continua o mesmo. Os aliados já foram designados por suas supostas virtudes anti-imperialistas. O caminho a seguir é claro e as objeções, puras mentiras ideológicas, não passariam de "uma linguagem, um discurso que busca justificar a pretensão de um domínio universal", segundo as palavras do autor do texto da contracapa da edição brasileira do livro, que, sintomaticamente, é um professor de uma universidade paulista conhecido por ter saudado calorosamente o 11 de Setembro e por defender uma aliança com o "internacionalismo islâmico" (sic.) para destruir Israel… Sem mais comentários.

































fevereiro #

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1A linguagem do Império, São Paulo, Boitempo, 2010.

2Ver a bela resenha de um outro livro de D. Losurdo, feita por Cícero Araújo para o número 4 da revista Fevereiro, denominada "O stalinismo recauchutado de Domenico Losurdo".

3Neste ponto, Losurdo se opõe a Toynbee, pois recusa a simples caracterização de "arcaísmo" para os movimentos que considera de libertação nacional.

4Assim, por exemplo, Hitler, se expressava sobre a América, em termos que hoje seriam familiares a certa esquerda: "a civilização americana é de natureza puramente mecanizada. Sem a mecanização, a América se desintegraria mais rapidamente do que a Índia. (...) meus sentimentos contra o americanismo são de ódio e de profunda repugnância". Apud Ian Buruma e Avishai Margalit, Ocidentalismo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 23.

5O conceito de revolta fetichista é usado por Moishe Postone em sua análise da lógica do antissemitismo presente em seu texto "Anti-semitismo e Nacional Socialismo". Este texto pode ser encontrado no site português da revista Exit.

6Entretanto, a comparação que faz entre a esquerda sionista e o chamado social-chauvinismo da Segunda Internacional é discutível. Para falar apenas das primeiras décadas do Estado de Israel, quando os partidos de esquerda eram hegemônicos, é verdade que houve na esquerda israelense o desvio nacionalista (sobretudo na campanha do Suez, em 1956), mas a assimilação deste àquele dos sociais-democratas fica prejudicada pelo fato de que estes últimos apoiaram uma guerra claramente imperialista, enquanto os sionistas de esquerda viram-se, ao menos nas três guerras mais importantes que travaram (1948, 1967, 1973), diante de guerras que lhes foram impostas, sob pena de destruição. Neste contexto israelense, que, sob todos os ângulos, é excepcional, a defesa da nação ganha uma dimensão existencial, que não possuía no caso da social-democracia europeia. Para um boa análise deste assunto, ver A Muralha de Ferro, de Avi Shlaim (Rio de Janeiro, Fissus, 2004).

7"Infelizmente", completa, "essa exigência de reconhecimento é buscada às custas de outro povo, que tende a ser assemelhado a uma tribo indígena, segundo o modelo estadunidense, naqueles anos confusos de grande prestígio". A comparação entre a colonização sionista e o Far West americano consiste em uma falsificação grosseira. É verdade que Herzl olhava com simpatia para os EUA, mas este nunca preconizou um extermínio de árabes, mas sim um modelo paternalista, em que estes últimos seriam beneficiários do "progresso" trazido pela colonização judaica. Além disso, e muito mais importante, a esquerda sionista, que constituía a ampla maioria do movimento, não demorou em romper com a visão colonialista da população da Palestina como res nulis e a reconhecer a legitimidade da reivindicação nacional dos árabes. A solução proposta foi a partilha da Palestina ou mesmo, para o chamado sionismo classista, a instauração de um Estado binacional. Como se sabe, nenhuma dessas duas possibilidades encontrou eco na liderança árabe-palestina, que era politicamente de extrema-direita e que moveria, a partir de 1948, uma guerra de extermínio contra os judeus israelenses. Dizer isto, é claro, não significa negar as culpas de Israel neste longo conflito com os árabes. Estas, embora sejam muitas, estão muito longe de ser todas.

8Para o antissemitismo no mundo árabe e islâmico, ver, além de Lews, Bernard, Semites and Antisemites (único citado, mas não discutido, por Losurdo), ver La Nouvelle Judeophobie, de Taguieff, P.A., Do anti-sionismo ao anti-semitismo, de Poliakov, L., e Muslim Antisemitism: a clear and presente danger, de Wistrich, R. É lícito esperar que, se a chamada Primavera Árabe terminar por instaurar verdadeiras democracias árabes no Oriente Médio, sua "prova dos nove" deverá ser o surgimento de uma vigorosa contestação pública deste antissemitismo.

9Não é o que pensava a mais alta liderança árabe-palestina da época, Haj Amin Al-Husseini, o Mufti de Jerusalém, cujos vínculos com a Alemanha nazista foram muito além do que Losurdo sugere, em mais uma lamentável tentativa de esquiva a respeito da profundidade do antissemitismo árabe. Na realidade, a aliança selada entre a liderança palestina da época e a Alemanha nazista foi muito além de uma mera aproximação tática. Ela constituiu uma verdadeira aliança estratégica (militar, política e ideológica), como ilustra bem a ida de Husseini, após a derrota da rebelião árabe na Palestina em 1939, para a Alemanha, onde foi recepcionado pessoalmente por Hitler, que lhe conferiu nada menos do que o comando das SS muçulmanas da Bósnia, de onde o líder palestino teve de fugir após a vitória dos partisans, os quais passaram a persegui-lo por crimes de guerra. Tudo isto é escamoteado por Losurdo.

10Sobre isto, tomando uma posição infelizmente rara na extrema-esquerda, S. Zizek (em Vivendo no fim dos tempos, São Paulo, Boitempo, 2012, pp. 67-68) afirma que: "uma pergunta tabu deve ser feita: o que significa a fixação dos países árabes e das comunidades muçulmanas de todo o mundo com o Estado de Israel? Ela não pode ser explicada em termos de ameaça real às nações árabes (afinal de contas, Israel ocupa um território minúsculo), sendo assim seu papel é obviamente sintomático: quando forças tão díspares como a absolutamente corrupta monarquia saudita e os movimentos populistas contra o stablishment concentram-se no mesmo inimigo, um intruso, isso não é prova de uma estratégia para evitar o verdadeiro antagonismo interno? (De fato, os judeus funcionam como sintoma dos árabes, isto é, como personificação da recusa de enfrentar o impasse imanente de sua própria sociedade, a corrupção, a incapacidade de lidar com o choque da modernidade." A tal questionamento, aparentemente corajoso, deveria somar-se obrigatoriamente um outro: por que uma crítica, cuja obviedade é admitida pelo próprio Zizek, se transforma em tabu para certa esquerda. Responder a esta questão implicaria a análise do antissemitismo, quase sempre revestido de antissionismo, presente nesta mesma esquerda. Análise que Zizek não faz. Sobre este assunto ver: Poliakov, L., op., cit., Taguieff, P.A., op., cit., Wistrich, R., "Left Against Zion", e "From Ambivalence to Betrayal," Johnson P. "História dos Judeus". Independentemente dos problemas de suas posições políticas sobre o conflito israelense-palestino, devemos reconhecer que, na esquerda radical, Robert Kurz (recentemente falecido), tem o inegável mérito de nunca ter se enganado com o "antissionismo" de certa esquerda anti-imperialista. Dele ver, sobretudo, "Os assassinos de crianças de Gaza" e "A Primavera Negra do Antiimperialismo" (ambos estão disponíveis no site português da revista Exit). Por fim, gostaria de recomendar vigorosamente a leitura do brilhante e lúcido "História e Desamparo: Mobilizações de Massa e Formas Contemporâneas de Desespero" de Moishe Postone, que faz a ligação entre antissemitismo e antiamericanismo. Também de Postone, ver "Sionismo, antissemitismo e a esquerda" e "Hamburgo, 2009 - um outro Outono Alemão" (todos estão disponíveis no site português da revista Exit).

11Trata-se de Oriana Fallaci a quem (corretamente) Losurdo não hesita em classificar como islamófoba. Aqui aparece a dificuldade de sua proposição de estabelecer a diferença entre racismo e crítica legítima com base no critério de existência de uma reivindicação de discriminação negativa. Como, ao que parece, O. Fallaci não propõe nenhuma lei contra os muçulmanos, por que então Losurdo não aceita, coerentemente com o que havia dito sobre o antijudaísmo, a crítica dela como legítima?

12Sobre a questão do negacionismo, chega a ser incrível que, em um livro como o de Losurdo, aparentemente dedicado a analisar questões como o antissemitismo, o antissionismo e o filoislamismo, o nome de Roger Garaudy apareça apenas para... sustentar o argumento de que seu negacionismo seria menos grave do que aquele de autores como J. Keegan, os quais escrevem sobre a história dos EUA fazendo abstração do genocídio dos pele-vermelhas, ou até mesmo legitimando-o. Losurdo afirma que Garaudy reconhece ao menos que os deportados judeus sofreram crueldades dos senhores hitleristas...

13O livro supracitado de Ian Buruma e Avishai Margalit é sumariamente catalogado, por Losurdo, entre as obras de ideólogos da guerra. O que é falso.

14A posição de Losurdo sobre o antissionismo não fica clara, pois, também neste ponto, ele se esquiva da questão. Aqui não me é possível expor os notórios vínculos entre certo antissionismo, tão presente no tipo de esquerda a que pertence o autor, e o antissemitismo. Ver bibliografia citada na nota 9.