revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Cícero ARAUJO

interpretando a campanha e as urnas

 

Foi uma vitória do campo situacionista, é óbvio, mas não foi aquela que se esperava. Até a oposição deve ter se surpreendido com os resultados. A não ser nos últimos dez dias (mais ou menos) antes do primeiro turno, tudo levava a crer numa vitória acachapante da candidata Dilma Roussef.


A estratégia de colar sistematicamente a imagem do presidente à dela estava dando certo, e as alianças partidárias se mostravam eficazes, menos pelo tempo adicional no horário gratuito de TV do que pelo impulso que dava à campanha em diversas regiões e estados, além de neutralizar ou pelo menos atrapalhar os adversários em outros. Até mesmo a tentativa de fazer uma eleição plebiscitária parecia estar colando: no início de setembro, todas as pesquisas de intenção de voto indicavam uma vitória tranquila da candidata logo no dia 3 de outubro, com a principal alternativa oposicionista devidamente estancada e a outra opção sem dar sinais de alçar o voo tão esperado, pelo menos a uma altura que pudesse levar a disputa para o segundo turno. Já os temores (ou esperanças) relativos ao desempenho individual de Dilma Roussef se revelaram infundados. Sua inexperiência em batalhas eleitorais e falta de apelo popular não impediram que ela atingisse níveis de sustentação sólidos, para além dos números das pesquisas, inclusive a necessária autoconfiança para ao menos não cometer nenhum erro fundamental nos comícios, nas entrevistas e nos debates. De fato, nada que dependesse exclusivamente dela saiu fora dos eixos, do início ao fim, mostrando ser uma alternativa tão viável como qualquer outra que dependesse do prestígio do governo e da unção de Lula.


Contudo, alguma coisa saiu errado no final das contas, mesmo que o favoritismo da candidata tenha se confirmado. A partir de certo momento (?), a sucessão de escândalos avidamente propagados por uma mídia inamistosa, incapaz de afetar a popularidade de Lula e do governo, pareceu começar a surtir efeito na eleição: a notícia de violações de imposto de renda como forma de intimidar oposicionistas até hoje envolva em mistérios , o caso Erenice Guerra etc. Eis que surge a onda religiosa, como que a partir do nada... E então o inesperado acontece: vamos ao segundo turno com a candidatura de José Serra ganhando um entusiasmo e um vigor jamais alcançados em nenhum outro momento da campanha, enquanto o campo governista mostravase perplexo e recolhido, tentando absorver o choque. Sentiase a iminência de uma virada de jogo, acompanhada de alta polarização ideológica, outra vez insuflada por falas e símbolos religiosos. Um teste difícil para a democracia brasileira.


Os fatos consecutivos acabaram desarmando todo esse clima carregado e surpreendente, já o sabemos. Mas aquela situação peculiar e a vitória situacionista alcançada meio aos trancos e barrancos merece, e continuará merecendo por um bom tempo, os melhores esforços de interpretação.


Inferências enganosas a partir de pesquisas de opinião


A questão mais intrigante parece ser esta: por que um governo com índices inéditos (a nível federal) e sempre crescentes de aprovação popular acabou encontrando tanta dificuldade pelo menos maior do que a esperada para fazer a sua sucessão? Tudo bem: não se deve esperar que governos transfiram todo seu cabedal de opinião favorável para as alternativas que venham a oferecer nas próximas eleições. Jamais haverá perfeita simetria entre uma coisa e outra. Mas isso não esvazia a relevância da questão. Primeiro, o grau de aprovação nesse caso importa: não estava se falando de índices de 40% ou 50%, mas de algo que girava em torno dos 80%!... quero dizer, uma margem bem razoável para um jogo que, em comparação a esse cabedal, “só” requer a maioria (50% mais um) dos votos válidos. Ademais, como se sabe, certos governos estaduais com índices semelhantes de popularidade, ou mesmo não tão elevados, emplacaram seus sucessores com relativa facilidade, e sem precisarem de chefes e cabos eleitorais tão carismáticos como Lula. Não contando com os mesmos índices de aprovação do atual governo, FHC conseguiu se reeleger logo no primeiro turno, quase tão facilmente como conseguira na primeira vez. Naturalmente, alguém dirá: a imprensa, os tais “formadores de opinião” e a mídia de um modo geral tornaram a vida mais fácil para FHC do que para Lula. Porém, esse rigor da imprensa já não deveria ter se refletido diretamente nas pesquisas de avaliação do governo? Também não nos parece convincente a idéia de uma diferença abismal entre uma hipotética candidatura de Lula e sua candidata efetiva. Ninguém duvida que Lula se comunica melhor com o povo do que Dilma. Mas o Lula candidato seria tão melhor assim, isto é, teria tornado as coisas tão mais fáceis? Depois de tudo que vimos ao longo da campanha, essa pergunta já não pode mais ser respondida sem hesitação.


Muito já se disse sobre os defeitos das pesquisas de intenção de voto, mais graves no Brasil do que em outros países, especialmente na metodologia de coleta de dados. Independente disso, porém, sempre chegaremos ao momento em que tais pesquisas serão comparadas ao teste final e fatal das urnas, eventualmente desmentidas por elas. Isso é inescapável. Não é o que acontece com as pesquisas sobre desempenho de governo. São comparáveis a quê? Não às de intenção de voto, porque as próprias perguntas são diferentes; e muito menos ao próprio voto, que não pode desmentilas. Contudo, as deduções que se fazem de suas respostas, essas sim são enganosas. O problema crucial, pelo visto, é entender o que há por trás de uma opinião ou sentimento favorável ou desfavorável ao desempenho de um governo. Provavelmente, há mais mistérios do que se imagina nessa caixapreta, e nas suas possíveis ligações com o juízo eleitoral, que extrapolam o fato já reconhecido de que governo nenhum é capaz de transferir, para seus candidato a sucessor, toda a capacidade que tem de atrair a boa vontade do cidadão. Em suma, uma interpretação fácil ou apressada sobre esse ponto, aplicada ao que poderia significar a simpatia aos feitos do governo Lula, levou às expectativas enganosas que se viram de quase todo mundo, inclusive deste articulista. De modos distintos, ambos os campos, situacionista e oposicionista, se deixaram levar por esse engano.


Não pretendo discutir aqui os aspectos técnicos dessas pesquisas, nem tenho competência para fazêlo. Se insisto nos equívocos a que elas induzem, é apenas para explorar a seguinte intuição. Aprovar um governo significa, simplesmente, aprovar os seus feitos, o programa que foi capaz de executar, e nada mais. Portanto, não implica, necessariamente, aproválo como um agente, um sujeito de vontade, potencialmente capaz de fazer, no futuro, coisas até diferentes do que fez antes; enfim, não significa aproválo como uma agência de poder. Em princípio, dizer “sim” aos feitos de um governo não é o mesmo que dizer “sim” a esse sujeito, a esse poder. A segunda assertiva requer mais do que um juízo sobre fatos: requer confiança. É claro que essas coisas podem coincidir num mesmo cidadão, mas elas são conceitualmente distintas. Assim, posso aprovar os feitos do governo mas não confiar nele, isto é, em seu poder; inversamente, posso darlhe essa confiança, mesmo não fazendo um bom juízo do que fez ou esteja fazendo. Quando uma agência, ou uma pessoa que a represente, indica para os eleitores um continuador, o que está em jogo é muito mais do que um juízo sobre fatos presentes ou passados. Tratase de uma aposta, um atitude de investir ou não em algo um tanto indeterminado, que se traduz nesse X, nessa incógnita que estamos chamando de “poder”.


Certamente, essas são distinções apenas teóricas. É possível que, na prática, elas não aconteçam com frequência. Aliás, seria de esperar que a maioria dos eleitores, na maioria dos casos, tendesse, ou fosse facilmente induzida a misturálas. Mas parece que não foi exatamente isso que aconteceu em nosso peculiaríssimo caso que é, afinal, o que nos interessa...


Contradições do consenso, ou o dissenso do consenso


Não sendo um patrimônio exclusivamente seu enquanto agência de poder, os altos índices de aprovação do governo Lula carregavam em suas entranhas um potencial de alternativas distintas de agências sucessoras. Para simplificar, poderíamos resumilas a duas fundamentais: uma inclinada à esquerda, outra inclinada à direita. Não deixa de ser verdade, portanto, que o que estava em disputa era o quanto cada um seria capaz de abocanhar desse cabedal. E se uso esse termo mais leve, “inclinada”, para caracterizar as opções em conflito, é porque essa aprovação elevada ao governo atual, suponho, estaria espelhando um consenso básico do país a respeito de um leque de políticas, uma plataforma mais ou menos difusa de governo, do qual as alternativas não poderiam destoar muito. Nesse quadro, “esquerda” e “direita” dizem respeito menos ao conteúdo das políticas públicas do que aos estilos de governar e às bases sociais de sustentação das alternativas.


De que consenso estamos falando? O fio que o norteia é bastante simples: tratase de uma reelaboração do clássico sonho da ascensão social, a busca de “um lugar ao sol” numa economia de mercado popular. Mas não exatamente uma ascensão em bases individualistas estritas, a do self made man, mas uma ascensão induzida pelo Estado. Por estarem centradas na iniciativa do beneficiado por exemplo, em suas decisões privadas de gasto e não em serviços públicos providenciados diretamente pelo Estado, políticas tão populares como a do crédito consignado e o próprio programa do Bolsa Família possuem uma matriz liberal. Contudo, por estranho que isso pareça, é um liberalismo produzido pelo Estado.


Esse consenso não surgiu do dia para noite, e nem foi construído apenas a partir do governo Lula. Ele vem pelo menos desde a liquidação do ciclo inflacionário, em meados da década de 1990 em parte devedor, portanto, do partido que hoje faz a principal oposição ao governo. Não se trata aqui de reproduzir as disputas verbais de tucanos e petistas a respeito do legado de um e de outro. As divergências eleitorais os fazem exagerar suas diferenças (diferenças existem, é claro), embora os formuladores das políticas públicas concretas saibam da herança comum. Sem dúvida, Lula, o PT e seu governo introduziram no consenso que herdaram uma inflexão, uma correção de rumo, algo implicitamente desejado pelos eleitores, se lembrarmos dos índices decrescentes de prestígio do governo no período final do ciclo FHC. Os sucessores desde logo entenderam, porém, que havia de se fazer uma correção prudente, pelas margens, sem desarranjar subitamente o núcleo das políticas anteriores, especialmente a política econômica. Introduziuse, de qualquer forma, uma inflexão, e seu principal aspecto foi acentuar, nas políticas concretas e no plano simbólico, a “cor parda” das classes populares. Pode parecer pouco, mas num país como o Brasil faz toda a diferença, quando força brechas em hierarquias longamente estabelecidas. De partida, Lula já encarnava o simbolismo social dessa peleja, mas ele tratou de praticar em seu mandato todas as falas, gestos e ações que a tornassem o símbolo de seu governo.


Do ponto de visa intelectual, porém, o processo segue orientado por uma hegemonia “moderadamente liberal” para usar a idéia de um colega da Sociologia da USP, Brasílio Sallum Júnior, a meu ver muito apropriada cujas orientações centrais foram assentadas durante o governo FHC. Por representar a vertente esquerda desse processo, Lula e o PT dificilmente poderiam têlas iniciado: a oportunidade acabou recaindo sobre uma pessoa e um partido na época já meio “coringas” ideologicamente, e em busca de uma base social efetiva, oportunidade que os ajudou, ao fim e ao cabo, a encontrar essa base e logo a se fixar como a vertente direita do mesmo processo. No entanto, uma vez introduzidas aquelas orientações, seus sucessores não as jogaram ao mar, na verdade ampliaram seu sentido com a glosa peculiar ao discurso e às práticas de uma esquerda formada nas lutas que trouxeram a democracia de volta ao país, e que aos poucos os adaptava ao jogo eleitoral (com tudo de bom e ruim que há nisso). Mas do mesmo modo que um governo à esquerda deu continuidade a aspectos importantes da gestão adversária, seria bem provável que um governo à direita viesse a assimilar, e até estender, por exemplo, as políticas de distribuição pelas margens do atual. E não será nada surpreendente que um certo populismo de direita, ao estilo de Joaquim Roriz, encontre seu caminho no plano nacional investindo agressivamente nessa direção nos próximos anos.


Como foi dito acima, é antes no estilo e nas bases sociais distintas dessas vertentes, e não tanto no conteúdo, que vamos encontrar as contradições desse consenso difuso em que nos encontramos. Ou, se quiserem, onde vamos encontrar o dissenso dentro do consenso. Assim, os discursos e programas políticos que os respectivos campos partidários produzem para indicar suas divergências em eleições, afinal muito semelhantes, acabam pouco orientando e canalizando as tensões sociais reais que animam o processo. Este é o ponto: um contexto intensamente marcado pela busca de um “lugar ao sol”, de ascensão de uma massa da população oriunda dos estratos mais baixos da hierarquia social, tende a gerar conflitos de todos os tipos e em toda a superfície de contato entre as classes.


As políticas do governo Lula de forma alguma têm afetado os interesses fundamentais das camadas que detêm o poder econômico efetivo, muito pelo contrário. Contudo, sua simples existência, seu simbolismo, aliado às políticas de distribuição de renda, mesmo que pelas bordas, ao estimularem a mobilidade social e a disposição, individual e coletiva, para forçar as brechas da hierarquia social, acabam ajudando a carregar de tensões os contatos entre as classes. No fundo, estamos falando aqui mais de um problema de psicologia social do que de economia em sentido estrito. No cômputo geral, todos estão se beneficiando materialmente com essas políticas, alguns mais, outros menos, não importa: Bolsa Família, salário mínimo maior, mais crédito na praça etc, geram mais empregos, mais negócios, mais lucros... Enfim, todos deveriam sentirse mais felizes com o governo que direta ou indiretamente as promove, como num certo sentido estão mesmo. E, contudo, o sentimento geral na verdade é mais ambíguo do que esse, porque há mais competição, mais desconfiança, mais “cotoveladas” entre indivíduos e grupos, coisas que aquele grande consenso de cor moderadamente liberal, acima sugerido, endossa e difunde. Por isso, o sucesso do desempenho econômico do país e das políticas estatais que ajudam a segurálo, se por um lado moderam objetivamente, por outro acirram subjetivamente a tensão social. Mesmo que a luta de classes não logre ser travada pelo medium dos discursos ideológicos clássicos, ou por divergências políticas/intelectuais claras, quaisquer que sejam, o que está em jogo nesse fenômeno contraditório não é outra coisa senão ela mesma, a velha luta de classes.


Em suma, sugiro que um quadro como esse que acabo de esboçar possa ajudar a compreender melhor aquela estranha divergência entre a alta popularidade do governo e a alta polarização do último embate eleitoral. O quadro pode ser resumido assim: as paixões contrárias são fortes, mas elas estão sem gume intelectual. Pesquisas de opinião sobre desempenho de governo, creio, continuam pouco eficazes para detectar tais reações, que permanecem num fundo prédiscursivo. Já no plano discursivo, os partidos contrários se batem em torno de detalhes e minúcias, indício claro de que são basicamente consensuais. Isto é, nada que um grupo seleto de técnicos não consiga resolver depois (como lembrou um colunista de jornal recentemente), sem o voto popular, por qualquer uma das equipes que vença. Ou então produzem falas particulares para setores muitos específicos, porém numerosos, que eventualmente possam virar a balança dos votos. Em vista dessa situação, parecerá enfim menos espantosa a ressurgência de um discurso religioso e sectário no cenário político, por nenhum outro motivo a não ser revirar o borbulhante caldeirão das paixões abafadas e lhes dar vazão pública.































fevereiro #

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