revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037

Alexandre CARRASCO

kitsch onírico

 

Não dormes sob os ciprestes
Pois não há sono no mundo
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo


Fernando Pessoa



De fato o que vou contar pouca importância tem e, levando-se em conta que é produto de uma vida bastante ordinária, deve ser um tipo de experiência bem comum. Digo experiência para evitar tantas voltas e desperdícios enunciativos do tipo: “Eu — tive um sonho ”. Sejamos discretos. Há um bom tempo os sonhos perderam sua extensão mágica e são tão explicáveis e mesmo previsíveis e das mais diferentes formas. Há teorias para gostos diversos  ou para todos eles – que pouco devem dizer do suposto leito profundo de que emergem. Se é que emergem de algum lugar e qualquer um que seja profundo. Profundidade é uma coordenada matemática, o que me permite insistir na minha trivialidade preferida: experimentei um sonho. (No campo das teorias arrisco a minha – que eu preferia entre as outras pela simplicidade: estamos sempre sonhando; fechamos os olhos e percebemos).

Sendo de pouca importância, entretanto, é fato. Vamos a ele.

Não costumo dormir à tarde, muito menos nesses dias de calor e umidade sufocantes. Hoje dormi. Eis o meu sonho:

Estava estranhamente no meu quarto. E a estranheza de se sonhar estar onde se está  (acordado, mas o que importa se estou lá, dormindo ou... acordado?) vem do fato de querer estar ali de outra forma: desperto? No meu sonho, portanto, era um estranho no meu quarto, estava recém desperto. Despertar em um sonho é curioso: acordamos para um sonho mais profundo – uma vigília sonhada – ou o contrário? Acordado, em sonho, deveria cumprir uma tarefa; e, sinto dizer, uma tarefa incomunicável. Tendo dispensado a fantasia de um lugar, concentrava-a toda numa ação; ação que envolvia ordens divinas, anjos e demônios, previsíveis duelos do bem contra o mal, os destinos do mundo, lutas homicidas. Deixando de lado essa ação que me custa compor – ainda que estivesse sempre lá, eu, atrás dos objetos familiares do meu quarto e de mim mesmo, ainda que estranho, semelhante e verossímil a alguém que supunha ser eu – sobrava o trivial: tentava associar-me aos anjos, engajar-me nas ordens divinas, lutar contra demônios, escapar do mal e triunfar com o bem, que sempre vence no final. Vale, ademais, algumas observações: o demônio me conhecia como um vizinho, alguém com quem se cruza constantemente e isso, de certa forma, constrangia-me. Por outro lado, os anjos eram intratáveis, mas não num “mal sentido”, se é que me faço entender: eram de tratamento difícil, suas palavras mudavam constantemente de sentido de modo a me mostrar sempre incapaz, pequeno, ingênuo para as exigências do momento. Não conseguia compreendê-lo plenamente. O que me fazia apelar para a benevolência, à graça, ao milagre, outros nomes que o favor deve receber em um mundo que dispensasse favores. O sonho do favor é ser um milagre. O momento crucial do sonho, porém, apenas se esboçava nessa trama de faroeste. Eis que, repentinamente, cumpro o prometido e descubro que estou morto (repentina novidade). De fato, a descoberta me choca e desconcerta. Mas inesperadamente adapto-me rapidamente à situação e sigo como  um morto desperto. Com a descoberta passo a viver num mundo híbrido, meio matéria, meio espírito e vagando por ruas vazias, fugindo de outros demônios – agora desconhecidos e um pouco mais selvagens –, e devo cumprir uma certa pena ou um conjunto de tarefas não muito complexo para enfim me redimir e ir, veja só, de lotação para o céu. Que não me parece ser o céu, quer dizer, o paraíso, mas um lugar mais limpo, com mais companhia e menos privação. Apesar de estar me esforçando e, em breve, segundo o quadro geral que o sonho me fornecia, ser promovido, desperto.

Suponho não ser a redenção a parte principal do sonho – ainda que haja quem diga que é sempre a “parte principal” do sonho o motivo de despertamos. Mas note: por princípio o sonho não alcança o “principal”: o principal deveria caber à vida. Enfim, “parte principal” talvez não caiba bem para nenhum caso.

Resta, as contas feitas, a tarefa, composta no sonho de múltiplas charadas, combinações de difícil intelecção, anagramas insuspeitáveis, nomes sugerindo outros nomes, tudo isso compondo um tal misterioso propósito que faz desse sonho, agora contado, uma reconstituição imaginosa, caricatural, sem propósito, desconexa e sem graça; a ponto de merecer a questão, sendo à tarde, porque já não acordou?

Omito, entretanto, um fato. Em si mesmo insignificante. No rompante da execução da tarefa, e envolto de um imenso entusiasmo, beijei um anjo. Beijando-o, eu mesmo sonhado pensei, “anjos não tem sexo” – o meu beijo era apócrifo. Mas no instante mesmo desse pensamento o anjo, que visto por mim parecia uma pintura vulgar de igreja salpicada de luz, fez-se mulher. E completei o pensamento (de um eu sonhado, resignado a pensar em um sonho que não podia mais agir): a mulher que amo não a encontro porque é um anjo. Precisarei morrer? (Não sei a quem cabe a pergunta: se a eu que sonho ou a eu que sou sonhado.)

Post scriptum post mortem.

Agora é noite; desperto. Penso como um morto. De volta ao meu escritório os objetos não se revelam, escondem-me. Tento ordenar a taxionomia de mim mesmo. A familiaridade dos objetos me salva e pacifica. Estou protegido dos  sonhos e de novas aventuras em torno da roda de mim mesmo.

E me custa acreditar que, diante disso, haja motivos para sonhar. (Ainda que fracasse na tarefa ingrata de dominar o sono: na cama, agora, olhando para o teto claro, vejo apenas o branco opaco que pretendo que preencha meus sonhos bem comportados. “O sonho participa da história”.)




Zé VICENTE































fevereiro #

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