revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                     ISSN 2236-2037



 

José SZWAKO

a tarefa da crítica ou Frankfurt nos trópicos

 


O que é ser crítico? O que faz de uma postura de análise uma postura crítica? Essas questões não apenas habitam a imaginação das e dos iniciantes às ciências sociais, aqui e alhures, como também as respostas a elas servem como verdadeiras armas de ataque e de defesa entre diversos ismos - marxismo, liberalismo, feminismo, republicanismo, comunitarismo, durkhemianismo, etc. Embora parte significativa dos cientistas sociais de divergentes filiações reivindique para si a chancela crítica, aquilo que se entende por crítica permanece, não raro, irrefletido nessas filiações. Este texto propõe um modo específico de responder àquelas questões iniciais com base na análise da produção intelectual de um grupo de sociólogos brasileiros agrupados ao redor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, o Cenedic. No entanto, à diferença do momento anterior (SZWAKO, 2009), centrado na trajetória e nas inflexões operadas no pensamento compartilhado e produzido por esse grupo de intelectuais, trata-se aqui de mostrar o tom hipercrítico desse modo de pensamento, bem como aquilo que resta aí de crítico em um sentido específico e explicitado. Esse exercício interpretativo importa por duas razões maiores: permite primeiramente observar o preço cognitivo pago por posturas hiperbólicas que, em função de sua vontade de crítica, se aproximam aporeticamente de posturas tradicionais de análise (HORKHEIMER, 1980). E, como observaremos ao final do texto, ele também permite notar como as formas intelectuais de classificação e de autoclassificação (formas, por exemplo, de ser e de parecer 'crítico') delimitam o campo empírico de uma sociologia das disputas político-intelectuais, cujo alcance heurístico parece e pretende ultrapassar limites disciplinares e continentais.

O texto se divide em três partes. Apresenta primeiramente um esboço do caráter distintivo da crítica à la Frankfurt, enfatizando o compromisso normativo desse grupo de intelectuais com um ideal de emancipação. Em seguida, resgata a produção daquele conjunto de sociólogos brasileiros que hoje parece apontar para um horizonte duplamente negativo - tanto de pressuposto de análise quanto da realidade analisada. Por fim, fornece exemplos das pugnas um dia travadas ao redor da interpretação dos movimentos sociais, ilustrando o sentido específico do que é ser crítico e acrítico, tal como explicitado à primeira parte. No seu todo, o texto traz pistas de uma história intelectual dupla e unificada que, ao abrir mão de uma compreensão limitante e autonomizada de 'campo acadêmico', observa a disputa pela interpretação (dos limites e potenciais) dos movimentos sociais na redemocratização brasileira como índice das disputas mais amplas pelos rumos e significados dessa mesma redemocratização.

 

A tarefa da crítica

 

"Uma teoria social crítica", nos diz Seyla Benhabib, "observa o presente desde a perspectiva da transformação radical da sua estrutura básica e interpreta os protestos e crises realmente vividos à luz de um futuro antecipado" (1986, p. 226). Mesmo se um tanto hermética, essa proposição de Benhabib encerra um dos princípios mais caros à reflexão da chamada Escola de Frankfurt, a saber, o compromisso com um ideal de emancipação ou de transformação radical. Esse compromisso, como alertou Horkheimer, não é uma fantasia utópica (1980, p. 134), não é produto de uma imaginação teórica normativista que, logo depois de se divorciar da realidade analisada, imputa a ela um dever ser. Ele é, antes, um modo de pensar a realidade vigente orientado pela e para a emancipação, inspirado por fontes e forças sociais emancipatórias que, embora não realizadas concretamente, contêm virtualmente capacidade transformadora. E, em sentido oposto a esse, diz-se tradicional de uma perspectiva que não vê as fissuras naquilo vigente, incapaz de ver além do que é dado. Para utilizar os termos de Benhabib, uma análise incapaz de reconstruir as mediações entre o ser e o dever ser - este afetado por aquele - é, de um ponto de vista crítico, uma análise inútil (1986, p. 243).

A ênfase no potencial de emancipação e correspondentemente nos obstáculos à emancipação permaneceu central na reflexão frankfurtiana mesmo após inflexão pessimista, para não dizer apocalíptica, de A dialética do esclarecimento. Já em seu prefácio original, Horkheimer e Adorno não desconheciam a posição aporética de sua crítica ao triunfo da razão instrumental, ao passo que na apresentação à edição de 1969 aquele compromisso se recoloca. "O pensamento crítico", eles dizem, "exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da grande marcha da história" (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 9). Que a identificação desses resíduos de liberdade tenha sido obliterada pela inflexão adorniana cristalizada em A dialética é fato bastante conhecido. Menos conhecidas, porém, são a permanência e a persistência na teoria crítica do pressuposto de que a realidade não é reduzível aos "fatos vigentes" pois "neles se manifesta algo que eles não são" (ADORNO, 1996, p. 122). A orientação para esse algo, para essa potência inscrita nos fatos, mas cuja apreensão depende de uma postura crítica neste sentido, alinha velhos, novos e novíssimos frankfurtianos. O diagnóstico marcusiano da unidimensionalidade, por exemplo, ao mesmo tempo em que descortina um suposto mundo livre totalizado por formas de controle e repressão, afirma, ressoando Arendt, que "o conceito de beleza compreende toda beleza ainda não realizada; o conceito de liberdade, toda liberdade ainda não realizada" (MARCUSE, 1973, p. 200) (Grifos no original).

A teoria crítica chegou de inúmeras formas ao Brasil; e, com ela, veio também seu compromisso normativo: "a percepção clara de que aquilo que poderia se realizar historicamente e não se realizou, quando devidamente incorporada, converte-se em energia tenaz, que move esse tipo de pensador" (COHN, 2006, p. 50). Embora pudesse tratar de um frankfurtiano de primeira geração, o pensador ao qual se refere esta passagem é um dos mais renomados sociólogos brasileiros, Francisco de Oliveira. Cohn sugere aí uma aproximação entre as reflexões de Adorno, Pollock e Nöemann e a produção de Oliveira, igualmente enraizada na "busca de retaliação histórica pelo que poderia ter havido e não houve, ou pela realização plena daquilo que no momento presente se anuncia" (idem). A ênfase naquilo que historicamente pode e poderia, a potencialidade apreendida via negação do presentismo, do fato dos dados - essa é claramente uma herança crítica e comprometida com um ideal de transformação/emancipação, e crítica porque comprometida com tal ideal. "Em resumo", lê-se em outra homenagem a Chico de Oliveira, "permanecendo apenas no plano da sociedade tal como ela está colocada, nós acabamos [acriticamente] reconduzindo-a, apenas acrescentando água na maré da continuidade. Nós precisamos ter uma perspectiva mais radical: é preciso atentar para o fato de que o que está em causa é a esfera pública" (MAAR, 2006, p. 45) (Grifo no original). Essas citações bastam para ilustrar nosso primeiro ponto: bem entendida e em senso frankfurtiano a uma postura crítica cabe a tarefa de apontar, como condição de suas viabilidade e vitalidade, para fontes históricas de emancipação e para seus obstáculos.
No que se segue, vamos reconstruir parcialmente os debates e reflexões do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, o Cenedic - em cujo centro se encontra a crítica de Chico de Oliveira à cumplicidade entre reformas neoliberais e a captura dos fundos público-estatais no bojo da reconfiguração, financeira e financeirizada, do laço Estado-capital (OLIVEIRA, 1998; 2007). Ao nos concentrarmos nesse conjunto de autores e em sua crítica, não estamos emprestando ao Cenedic a chancela de representante autorizado da teoria crítica em terras brasileiras; trata-se, antes, de observar como o recente e predominante tom hipercrítico de suas análises carrega irremediavelmente as aporias típicas de um pessimismo frankfurtiano, uma espécie de frankfurtianismo, mais evidente e evidenciado em A dialética do esclarecimento.

 

Frankfurt nos trópicos

 

Embora o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania seja composto por pesquisadores, para além da Sociologia, desde sua formação, na segunda metade da década de 1990 até 2007, quando da publicação de A era da indeterminação, as reflexões de Francisco de Oliveira, bem como a interlocução deste último com Vera da Silva Telles e com Maria Celia Paoli são centrais no repertório intelectual do Cenedic. A abordagem comum ao grupo, mesmo se a partir de diferentes grades e casos de análise, está centrada "na noção de direitos de cidadania, que visa formular o campo de tensões e conflitos através dos quais o sentido dos direitos, como possibilidade de ampliação democrática e republicana, é disputado". Ampliação democrática, direitos e conflitos e cidadania não são apenas termos herdados das pesquisas desenvolvidas, ao longo dos anos 1980 e da década seguinte, por Paoli e por Telles em diálogo direto com figuras como Eder Sader e Evelina Dagnino. São também parâmetros através dos quais aqueles três sociólogos empreenderam e defenderam uma tese muito simples, mas também muito contestada: a entrada em cena de novos personagens importa politicamente - ou, ao menos, já importou.

Falsamente simples, essa tese esconde com efeito dois deslocamentos cognitivos. Por um lado, tratava-se de ver "a política como algo que não se reduz a um único espaço, prefixado e determinado ao Estado e das relações institucionalizadas de poder" (TELLES, 1988, p. 281). Munidas de um arsenal crítico que reunia autores como Lefort, Castoriadis e Arendt, as pesquisas de Telles e Paoli, como de outros, enfatizavam a potência política lato sensu inscrita nas formas e espaços de mobilização popular e sindical reanimados no país desde fins da década de 1970. Por outro lado, tratava-se de ver que essas mesmas mobilizações traziam uma novidade histórica: elas configuravam "movimentos vários de luta contra opressões diversas, a maioria de base popular, cuja promessa tirava de cena os atributos de 'alienação' e heteronomia tradicionalmente atribuídos aos trabalhadores" (SADER & PAOLI, 1986, p. 61). Foi com base nesse duplo deslocamento que esse grupo de autores foi capaz de reconhecer na performance dos movimentos sociais um potencial de alargamento político e das disputas político-públicas. Note-se, porém, que esse diagnóstico não esteve limitado aos atores da sociedade civil, pois também na esfera produtiva apareceram pistas de explicitação e negociação de interesses entre atores divergentes e desiguais (OLIVEIRA et al, 1993). Esse potencial, que não foi escrutinado fora de seus próprios limites, apontava então para a constituição de "campo de práticas legítimas de invenção, conflito e negociação", bem como para a "legitimidade dos conflitos na esfera da sociedade, algo que a cultura política brasileira jamais aceitou" (PAOLI, 1995, p. 32;37).

Esse conjunto de pesquisas constituiu uma espécie de matriz intelectual do Cenedic, cujo núcleo era ocupado por uma concepção de política enraizada em noções como conflitualidade, publicidade e legitimidade; e dentro dessa matriz, diga-se de passagem, estava uma concepção radical de cidadania (SZWAKO, 2009). No entanto, ao invés de seguirem os rastros das potencialidades e disputas sócio-políticas herdadas dos anos 1980, os sociólogos do Cenedic rebaixaram o estatuto daqueles parâmetros de outrora, reservando a eles pouco ou nenhum alcance heurístico.

[As] noções de leis, direitos, cidadania e espaço público foram esvaziadas de sua potência crítica. Melhor dizendo: foi esvaziado o espaço conceitual em que essas noções se compunham [...]. Desativado (ou deslocado?) o plano da consistência em que essas noções circulavam e fincavam pontos de referência, elas [as noções] ficam desprovidas da potência de se confrontar com uma realidade que escapa e transborda por todos os lados. Ficam girando no vazio (TELLES, 2007a, pp. 201-202 - grifo nosso).

Não foi sempre assim: cidadania e política entendidas, respectivamente, como construção contenciosa e como possibilidade histórica de conflito e de explicitação de conflitos já compuseram a grade pela qual foram lidas as tensões, ambiguidades e contradições da realidade sociopolítica brasileira. Desde fins dos anos 1990, no entanto, a análise desses sociólogos passa por uma grave inflexão. Quando da realização de um seminário sobre os Sentidos da Democracia (OLIVEIRA & PAOLI, 1999), esses pesquisadores davam sinais de desencanto com as personagens e promessas politizadoras da década anterior - promessas, segundo eles, não realizadas. No referido seminário, eles estavam "perplexos" com "uma forma de poder que parecia desistir" de "um mundo comum referenciado a parâmetros cidadãos, dentro dos quais se desenhavam os caminhos do conflito, das negociações, dos horizontes futuros" (PAOLI, 1999, p. 10). De início, essa postura inicialmente não obliterava (ainda) a identificação de fissuras, de alternativas ao hegemônico, "para recuperar os direitos de uma cidadania que, reinventando a si própria pela discordância e pela sua própria recriação, possa reinventar novos caminhos da construção democrática" (idem, p. 10). Nessa mesma veia, àquela altura fazia sentido falar de conflito, pois se tratava de discutir os "processos atuais de construção de uma economia mundializada e o conflito que é travado, em seu interior, pelo sentido da democracia" (idem, p. 10-11).

As pesquisas e reflexões ao redor de Os sentidos da democracia trazem marcas que não são apenas de desencanto, mas permitem entrever também uma inflexão normativa ou o seu início. E na base dessa inflexão estiveram as mutações neoliberais então correntes. Especialmente dos anos 1990 em diante, os ajustes perseguidos e conseguidos pelo neoliberalismo vêm empreendendo essas mutações privatizantes, sob o rótulo de medidas racionais ou mesmo necessárias, conforme diagnosticou Chico de Oliveira (1999). Central nessa crítica de Oliveira é a objetivação de um dos pilares do projeto neoliberal, qual seja, a insidiosa ideia de desnecessidade do público ativamente fomentada e difundida ao longo dos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardos, e por eles. Mais ainda, e de um ponto de vista estrutural, era a apropriação dos fundos públicos e o casamento destes com a forma molecular do capital financeirizado que se consolidavam e legitimavam. Ao mesmo tempo em que atacava as forças de oposição - só para lembrar que elas existiram, resistiram e foram achincalhadas sendo chamadas de corporativas e seus sujeitos, de neobobos -, a ideologia neoliberal, como bem demonstrou Telles (2001), apresentava-se como signo de avanço e modernidade. Afinada a esses diagnósticos, Paoli (2002) enfatizou o caráter despolitizante da "solidariedade social das empresas" e das dinâmicas de "filantropização da cidadania" e "autodesresponsabilização estatal" justificadas por aquele discurso solidário. Frente àqueles exames baseados em parâmetros de conflitualidade e publicidade, estas análises marcam uma inflexão na lógica da crítica do Cenedic: se antes o potencial contido na performance daqueles sujeitos falantes era central na análise, agora são os obstáculos impostos à transformação que se impõem à perspectiva crítica. As figuras do falso, as medidas que magicamente nos fariam modernos e racionais, foram criticamente escrutinadas e situadas como bloqueios para a emancipação.

Porém, especialmente após a publicação de O ornitorrinco (OLIVEIRA, 2003), os parâmetros de outrora caem por terra, e ali onde a crítica via obstáculos e limites insidiosos, ela passou a ver apenas impossibilidades. Não se trata mais de falar em cidadania, em conflitos ou em direitos, pois "Estado de exceção e vida nua são noções que compõem um espaço conceitual que circunscreve outra ordem de problemas" (TELLES, 2007, p. 200). Não por acaso, nesse mesmo intervalo temporal, entre 2001 e 2005, se dá o desenvolvimento da pesquisa de maior envergadura do Cenedic, intitulada Cidadania e democracia: o pensamento nas rupturas da política. Os resultados e achados dessa pesquisa coletiva foram reunidos em A era da indeterminação que, para retomar os frankfurtianos, poderia ser bem chamada de Dialética do esclarecimento à brasileira.

Uma revisão de A era não tem espaço aqui, mas dois traços são marcantes nessa publicação. O alcance dos insights de O ornitorrinco ao longo de praticamente todos os capítulos é um deles. Outro traço é a inversão categorial e negativa que atravessa a obra e fornece a base de um argumento mais amplo alinhado por uma noção de não-política. As categorias que estruturam a versão negativa, desencantada e desativada de política são várias: "trabalho sem formas", "Estado ad hoc", "exceção permanente", "destruição da política", "neoatraso", "contrarrevolução", "anulação do dissenso", "simulacro da participação", "relações difusas", "pesadelo da sobrevivência", "ação anticomunicativa"... Já não se trata de uma noção historicamente possível de política, na qual conflitos e direitos pautam, qua potencialidades, o debate. Em direção oposta, a crítica recente do Cenedic aponta para os obstáculos que não apenas se impuseram à política, como também a sepultaram: no contexto pós-1990, "[n]ão pode haver 'política', nem 'polícia': há apenas administração" (OLIVEIRA, 2007, p. 29).

Desde já, vale notar que política e polícia não se esgotam nos significados a elas atribuídos pelo senso comum acadêmico, isto é, não se resumem à esfera político-institucional e a aparelhos e formas estatais de repressão e emprego da violência. Trata-se aí da política como "desentendimento" (RANCIÉRE, 1996). Pista dessa compreensão rancieriana de política está no diagnóstico (de outrora, mas não necessariamente ultrapassado) realizado por Vera Telles a respeito dos sujeitos falantes: "esses personagens [que] comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige seu reconhecimento" (TELLES, 1998, p. 39). Nessa acepção, o instrumento político por excelência é a palavra, da qual fazem uso os "sujeitos falantes", dentre os quais poderiam ser citados o movimento negro e o movimento dos trabalhadores sem-terra. Pelas lentes rancierianas, contudo, o uso da palavra não visa nem almeja o consenso, mas, ao contrário, aponta para a instauração do dissenso, do dano, enfim para o desentendimento (RANCIÉRE, 1996, p. 39-ss). "[U]m dissenso sobre o que conta e deve ser levado em conta", nos disse um dia Telles, "sobre quem fala e quem tem ou não a prerrogativa da palavra, sobre a pertinência ou não pertinência das questões e realidades nomeadas por essa palavra" (TELLES, 1998, p. 41).

A "prerrogativa da palavra", contudo, ficou no passado. "[As] conexões que articulavam o 'Estado e o urbano', por exemplo, foram cortadas ou viradas pelo avesso sob a lógica de um duplo desmanche, por cima e por baixo", diz Vera Telles; "[o] que antes era percebido como exceção [...] transforma-se em regra" (TELLES, 2006, p. 42). Ora, o que aconteceu com aquele anterior "campo de práticas legítimas de invenção, conflito e negociação"? O dissenso foi aniquilado pela polícia partidária? Para os pesquisadores do Cenedic, e também para seus principais interlocutores, a resposta a essas questões está tanto no chamado trabalho de "desmanche", tal como o alcunhou R. Schwarz. O parentesco intelectual entre esses autores e a contiguidade entre "desmanche" e neoliberalismo são evidentes:

[o] trabalho de 'desmanche' - o termo é de Roberto Schwarz, que inspirou toda uma linha de pesquisa no Cenedic - da sociabilidade gestada no longo período analisado. Desregulamentação do mercado, abertura indiscriminada às importações, perda do controle cambial, financeirização total da dívida interna e da dívida externa e, não menos importante, a construção do discurso com o qual se acusava os adversários de 'corporativismo' (...) tentando instaurar uma nova sociabilidade, cuja matriz era tanto o discurso liberal da iniciativa dos indivíduos quanto a desregulamentação que davam as bases materiais à nova 'ação comunicativa' (OLIVEIRA, 2007, p. 31).

Grosso modo, essas são as forças e tendências impostas pelas reformas neoliberais, pela nova tendência, tal como Schwarz se refere a ela. "Desconhecer a tendência nova", diz ele, "ou [desconhecer] a data vencida de convicções que estão na praça seria uma ignorância" (SCHWARZ, 2003, p. 16). Para o que nos interessa aqui, importa menos escrutinar os processos que estiveram na base dessas supostas reformas, e mais observar como a tendência nova foi apreendida em registro totalizante custando um preço alto à perspectiva crítica dos pesquisadores e interlocutores do Cenedic.

Como disse e repetiu Chico de Oliveira, na era da indeterminação, ou seja, no contexto pós-reformas neoliberais, "há apenas administração"; depois do velório da política, restaram técnicas administrativas que, travestidas de políticas públicas, funcionalizam e gestam a pobreza, despolitizando a questão social. Nesse mundo "às avessas", a realidade e a exploração não se transformam, apenas deformam e conformam; tudo aí é aparência: "[p]arece que os dominados dominam (...). Parece que os dominados comandam a política, pois dispõem de poderosas bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Parece que a economia está finalmente estabilizada".

Não se trata aqui de contrapor substantivamente a esse tipo de análise. A questão é, antes, observar como o enquadramento basicamente negativo no interior do qual é empreendida a crítica dos pesquisadores do Cenedic, no diálogo com Chico de Oliveira e ao redor dele, desmanchou a própria crítica, quer dizer, desmanchou sua capacidade de ver além do que lhe é dado - o que o totalitarismo neoliberal produziu foi um sistema-monstro: "é uma dominação que se faz pelo terror, diretamente, sem mediações. É uma dominação sem política" (Oliveira, 2006, p. 287). Ao que parece, as forças e tendências neoliberais solaparam a capacidade crítica dos sociólogos do Cenedic. "[A]nulando o dissenso, privatizando a fala e destruindo a política, o período [Fernando Henrique Cardoso] FHC completou o desmanche conforme sua promessa de superar a era Vargas" (OLIVEIRA, 2007, p. 31). Mais uma vez, não há política e sequer dissensos, retomando Ranciére, após o desmanche neoliberal há apenas desconhecimento, sobraram, no máximo, mal-entendidos e quasi sujeitos; o que parece sociabilidade é sociabilidade sem reciprocidade.

Ao lado da política desmanchada, essa não-política, outras categorias e metáforas marcam a inflexão negativa no pensamento do Cenedic, a começar pela própria figura d'Ornitorrinco, "um bicho que não é isso nem aquilo", "este não-ser" (SCHWARZ, 2003, p. 12-15). Ou ainda, "[o] ornitorrinco que é o Brasil apresenta-se, portanto, como uma evolução sem saída" (SANTOS, 2007, p. 301-302). E, utilizando-se do mesmo animal, é para este mesmo sentido que aponta Vera Telles em sua vontade de descrever o país: um monstrengo feito de pedaços desconjuntados, diferenças, defasagens, descompassos, desigualdades, que, não sendo mais atravessados por uma virtualidade de futuro, não mais articulados por uma 'dialética dos contrários', ficam onde estão, um neoatraso, [...], fatos irrevogáveis de nossa realidade, sem solução e sem superação possível no cenário do capitalismo globalizado [...] (Telles, 2006a, p. 41-42).

Tarefa hercúlea apreender essa coisa truncada e negativa, não só por sua complexidade, mas, sobretudo, porque "é vertiginoso e inusitado o andamento das categorias: estão em formação, já perderam a atualidade, não vieram a ser, trocam de sentido, são alheias etc." (SCHWARZ, 2003, p. 12-15). Os demais pesquisadores do Cenedic endossam essa postura, pois "[o] que está em pauta nos tempos que correm é a inviabilidade de nos fixarmos nos termos como até agora lidamos com as coisas do mundo" (TELLES, 2007, p. 200). Trata-se de algo avassalador, de "uma revolução epistemológica para a qual ainda não dispomos da ferramenta teórica adequada". Bem observada, a matriz cognitiva que informa e alinha esse conjunto diverso de proposições e pesquisadores encontra seus limites em dois termos: desmanche e exceção. Ao redor deles circulam outras categorias negativas que, embora tenham supostamente perdido sentido e atualidade, tentam dar conta de uma realidade ornitorrínquica, isto é, não-dialética, "sem solução", "sem superação", "sem saída", cujas partes "ficam onde estão".

Não somente crítica, essa é uma postura hipercrítica, mas o mal-estar que nela vive logo se evidencia. Como que desempenhando função de vigilância normativa, aquela ênfase frankfurtiana na potencialidade inscrita nos fatos e na possibilidade de emancipação volta de modo renitente a esses pesquisadores: "[o] texto que anuncia a era da indeterminação não a considera a era do fim do conflito. Na intransparência, na opacidade, há luta" (SANTOS, 2007, p. 296). Mesmo o projeto de pesquisa cujo resultado foi A era da indeterminação tentou passar "pela procura e pela atenção às ações de resistência, protesto e crítica que surgiam" (RIZEK & PAOLI, 2007, p. 10). No entanto, a despeito dessa atenção e bem ao modo de A dialética de Adorno e Horkheimer, aquela embocadura pautada pelo desmanche e pela exceção já tinha circunscrito, de antemão e irremediavelmente, o alcance e o espaço de visão desses pesquisadores. Não foi por acaso que eles chegaram "à identificação de uma ordenação que consegue impedir que se formem experiências e comunidades políticas capazes de aparecer como tal" (idem).

Em outro momento, a nossa crítica dirigida a essa matriz hipercrítica ficou concentrada na denúncia de um modo de empirismo, mais observável na estratégia descritiva característica das mais recentes pesquisas de Telles notadamente inspiradas pela tese um tanto apocalíptica do desmanche neoliberal. Nesse sentido, "[o] que antes foi dito sobre a cidade e seus problemas, a 'questão urbana', parece ter sido esvaziado de sua capacidade descritiva e potência crítica em um mundo que [desmanchou e] fez revirar de alto a baixo o solo social das questões então em debate" (TELLES & CABANES, 2006, p. 13). Dois corolários teórico-normativos implicados nessa estratégia de análise são aquilo que chamei de renúncia utópica, bem como uma sorte de fatalismo a ela associado. Ali, foi o recurso a um Adorno, certamente não aquele de A dialética, que permitiu ver a limitação crítica do empirismo que, por e ao se fechar no aqui e agora, "converte o resultado de um vir-a-ser em um 'ser-deste-modo-e-não-de-outro' absoluto" (ADORNO, 2008, p. 335). No entanto, porquanto circunscrita por e em meio a negatividades categoriais esvaziadas, a análise empirista tanto encerra um fatalismo quanto leva a ele, a um falso e desnecessário destino. Incapaz de ver além dos dados e de ver neles qualquer resquício de potencialidade, essa perspectiva parece perder sua capacidade crítica, pois ela foi totalizada ou, para falar como Adorno, absolutizada pelos dados; "[a] possibilidade mesma de constituição de sujeitos políticos [todos eles?] foi erodida em suas bases" (TELLES, 2006b, p. 186).

Mas não é apenas nesse sentido que o tom hipercrítico compartilhado pelos pesquisadores do Cenedic tem a sua verve crítica fortemente comprometida. Em um comentário ao clássico Teoria tradicional e teoria crítica, o próprio M. Horkheimer (1980b) sugere que "a crítica não é idêntica ao seu objeto". Exemplo a contrario dessa sugestão pode ser vista na análise publicada em A Era a respeito do orçamento participativo (OP) em São Paulo (RIZEK, 2007). Em sintonia com a mais recente grade intelectiva do Cenedic, esta autora visa "questionar e problematizar a ideia mais ou menos corrente de que os dispositivos de participação política são necessariamente expedientes que constituem esferas públicas de interlocução" (idem, p. 129); e mais, seu texto quer "estabelecer contrapontos", fazendo "questionamentos que rompem com um suposto caráter virtuoso quase apriorístico conferido aos dispositivos de participação" (idem, p. 130). Embora o imaginado caráter virtuoso e essencialmente democrático das dinâmicas associativas e de suas formas participativas de interação com o Estado já tenha sido criticado na literatura especializada (DAGNINO, 2002; GURZA LAVALLE, 2003), seria possível dizer também que a crítica do virtuosismo civil não aproxima a análise das formas participativas de uma postura hipercrítica - não necessariamente.

É interessante e sinuosa a ginástica mental implicada nessa análise do OP. De um lado, são destacados os (renitentes) potenciais contidos na participação: a visibilidade e o reconhecimento conquistados por atores vulneráveis através do OP, a natureza pedagógica dessa experiência, o aumento considerável dos conflitos, o crescimento na quantidade de delegados e a identificação de um ideal de governo compartilhado em algumas subprefeituras paulistanas são alguns desses potenciais. De outro lado, no entanto, são identificados vários e efetivos limites: o OP em São Paulo foi tímido, pois não teve impactos redistributivos substantivos, não conseguiu servir de arma do Executivo contra o Legislativo, não rompeu com práticas clientelistas e não fez diferença no orçamento municipal. Entre potenciais e limites, mas tomando-os como alternativas excludentes, a autora se questiona:

se a experiência do OP se contrapõe ou acaba por ratificar as relações de clientelismo (...); sobre a possibilidade ou impossibilidade de construção de mecanismos democráticos que instituíssem ou buscassem recompor dimensões distributivas (...); sobre a construção ou o truncamento do OP como um fórum pelo qual pudessem se constituir e ganhar visibilidade os conflitos legítimos pelo uso e apropriação equânime dos territórios e serviços urbanos (RIZEK, 2007, p. 146) (Grifos meus).

Como veremos ao final do texto, uma das raízes desse tipo antitético de análise, centrada no tudo ou nada do isso ou aquilo, está nas disputas interpretativas herdadas dos anos 1980, quando da gestação dessa bandeira e dessa esfera participativas. Para o que nos interessa, vale notar que, para a critica hipercrítica, não há escolha entre o potencial e seus obstáculos, pois essa escolha já foi feita teoricamente. Guiada pelo desmanche e pelo ornitorrinco, a análise apocalíptica anuncia outro luto, mais um. "O OP paulistano, diante do fim da gestão de Marta Suplicy, parece fadado ao fim (...) o futuro do OP pode ser igual ao de muitas outras experiências semelhantes: o fim" (RIZEK, 2007, p. 155). Mas esse diagnóstico, para retomar Horkheimer, é idêntico ao seu objeto: "o OP em São Paulo não existe" (p. 147), diz um informante de Rizek; neste mesmo sentido, um ex-conselheiro afirma que as relações clientelismo são "o atestado de óbito do OP" (p. 145); enfim, para uma ex-delegada, trata-se de "verniz de democracia" (p. 144). Daí, da identidade com estes dados, a conclusão de que "talvez seja possível passar dos indícios à certeza de seu caráter tímido [do OP], acanhado, quase invisível" (idem, p. 155). Luto e melancolia não deixam ver mais que o dado, para além dele, e empurram a crítica, tornada acrítica, para sua identificação completa e eloquente com ele - "[n]ostálgico fim de uma promessa de publicização, de constituição de sujeitos na cena pública, de saída da esfera da necessidade, vulnerabilidade, isolamento político, em uma palavra, da mera subsistência" (idem, p. 155).

Tal como outras conclusões parciais apresentadas em A era da indeterminação, essa conclusão já estava dada, desenhada e circunscrita pela postura hipercrítica. Isso quer dizer que entre o tudo e o nada não há opções, pois este último foi conscientemente ou não eleito de antemão - é o exato oposto do mesmo mundo anteriormente escrutinado, é a lógica do quanto pior, melhor. Aproximando o primeiro Horkheimer de Habermas, é possível dizer que a embocadura cognitiva predominante no Cenedic ao menos até A era é idêntica ao objeto que quer e julga julgar: a política e sua morte. A postura hipercrítica carrega, nos termos da crítica de Habermas a Foucault, uma espécie de criptonormativismo que diagnostica e lamenta a morte da política. No entanto, analogamente às aporias de A dialética do esclarecimento, o diagnóstico do desmanche que aponta para morte da política traz no momento exato de sua enunciação o fim da crítica, dado que o mundo administrado e politicamente esvaziado triunfa também sobre esta última e sobre suas categorias "alheias", "sem sentido", "girando no vazio". Essa mutação na lógica da crítica importa, pois a esvazia de capacidade política e afasta a possibilidade do exercício criativo do pensamento que, para ser crítico, não pode se reduzir à constatação do mundo concreto, tal como ocorre no empirismo, nem se deixar seduzir por esse mundo, como é o caso das análises que se identificam e coincidem com ele.

Que o tânatos da normatividade hipercrítica seja elucidado por um exercício analítico não desfaz, porém, a necessidade de uma sociologia das disputas político-intelectuais que, um dia, informaram as categorias e os sociólogos do Cenedic. Para finalizar, vamos observar a disputa interpretativa travada, desde meados dos 1980 ou antes, ao redor do papel e do estatuto político, ou não, dos movimentos sociais. Utilizando-se de um breve conjunto de análises das chamadas comunidades eclesiais de base, as CEBs, veremos como o compromisso normativo com a emancipação distingue e definitivamente afasta uma postura crítica de outras posturas interpretativas.

 

Em cena e em disputa, novos personagens e o basismo

 

Uma pugna vibrante, ainda que discreta, marcou as ciências sociais brasileiras desde fins dos anos 1970. Pari passu às transformações político-institucionais e à emergência pública de discursos encarnados, por exemplo, no novo sindicalismo e nos novos movimentos sociais, a antropologia, a sociologia e a ciência política acolheram "a noção de cidadania e de direitos como uma das ideias fundantes sobre o Brasil de hoje" (PAOLI, 1989, p. 40) (Grifos no original). Bem no meio dessas transformações estavam atores sociais, fossem eles trabalhadores ou populações pauperizadas organizadas nas franjas das cidades e no campo, historicamente rotulados por aquilo que lhes faltava, por uma suposta e imposta negatividade. Sujeitos ao "paradigma da classe subordinada", esses atores não teriam consciência de classe, seriam atrasados ou, no melhor dos casos, seriam apenas epifenômeno de sua posição de classe (CHAUÍ, 1978; SADER, TELLES & PAOLI, 1983; SADER & PAOLI, 1986). O modo de contar essa história repleta de faltas e de quasi sujeitos muda, ou muda parcialmente, entre as décadas de 1970 e 1980, "quando novos personagens entraram em cena" (SADER, 1988). Para o que nos interessa aqui, é justamente no modo de contar essa história que foi disputada a interpretação sobre os e as personagens que defenderam aquelas "ideias fundantes".

Os sobrenomes e títulos que circundaram e se envolveram diretamente ou não nisso que chamamos de disputa interpretativa são muitos e vão de Weffort, Moisés e Werneck Vianna a Maroni, Lopes Leite e Durham, para citar apenas estes. Seja como for, seria possível situar duas posturas que grosso modo se imprimiram nas ciências sociais: uma mais ligada a autores como Eder Sader e Maria Celia Paoli, marcada por uma forte aposta na emergência e na potência dos novos personagens, e outra mais ligada à produção e orientação de Ruth Cardoso. Este lado da pugna se manteve muito cautelosa ao falar dos movimentos sociais e de seu caráter político: "decretar o nascimento de novos atores políticos, portadores de uma força transformadora, sem que a análise demonstre concretamente a novidade de seu papel mediador entre sociedade civil e o Estado parece incompleto", nos diz Cardoso, e prossegue; "[os] movimentos de bairro, quando vistos por sua face reivindicativa, não parecem capazes de grandes transformações, mas quando os vemos como expressão de uma nova identidade, é possível pensar que venham a ser uma nova peça no jogo político" (CARDOSO, 1983, p. 219; 238). Do outro lado do debate, o modo pelo qual Sader e Paoli escolheram apreender as formas populares de mobilização enfatizava a promessa nelas contidas. "Os pesquisadores das ciências sociais dos anos 80 se viram diante de um momento político marcado por movimentos vários de luta contra opressões diversas, a maioria de base popular, cuja promessa tirava de cena os atributos de 'alienação' e heteronomia tradicionalmente atribuídos aos trabalhadores" (SADER E PAOLI, 1986, p. 61). 

Momento particularmente rico dessa pugna se deu ao redor das chamadas comunidades eclesiais de base. Por um lado, R. Cardoso se opunha a analistas "frequentemente entusiasmados" com as CEBs e, especificamente, com seu potencial para abrir "brechas na rígida hierarquia eclesiástica" (1982, p. 54). "Para compreender o funcionamento das CEBs, aqui e agora, é bom olhar bem a nossa volta e procurar ver a especificidade da situação brasileira" (CARDOSO, 1982, p. 55) (Grifo meu). A "especificidade" para a qual ela aponta é "o Estado brasileiro [que] estava transformando sua forma de gerir a coisa pública (...) [e] o país vivia uma reorganização econômica e uma redefinição política, a partir das quais o Estado apresentava uma nova face para dialogar com a população" (idem, p. 56). Como que antecipando alguns teóricos estadunidenses, Cardoso visa, a meu ver corretamente, desmistificar a ideia de que o crescimento observado nas CEBs, ou nas formas de mobilização a ela ligadas, seria produto de uma tendência espontânea, dado que mudanças nos executivos locais seriam também fatores importantes para esse mesmo crescimento. Mais que isso, ela coloca em xeque a ideia (ou a idealização) de que as dinâmicas das CEBs seriam essencialmente igualitárias. "Entre os iguais não há opositores. Os inimigos são sempre os poderosos (...). Seria ingênuo, entretanto, admitir que (...) todas as diferenças desaparecem como por encanto. O outro lado dessa solidariedade entre iguais é a existência de um controle social bastante rígido que propicia a homogeneidade de crenças e de comportamentos" (CARDOSO, 1982, p.57). Os depoimentos levantados não deixam dúvidas: "disciplinar conflitos" e "vigiar uns aos outros" (idem) - é isso que foi ouvido e visto concretamente nas bases. "O igualitarismo é condição de existência desses grupos e sua grande virtude. Mas as manifestações ficam limitadas por um modelo ético subjacente e um intenso controle que evita divergências" (idem, p. 58).

Em que pesem outras interpretações a respeito da homogeneidade, ou não, das comunidades de base, também E. Sader se debruçou sobre as CEBs, tomando-as como "matrizes discursivas" em relação às quais se constituíram diferentes sujeitos e projetos políticos dos anos 1970 em diante. No entanto, à diferença do realismo etnográfico de Cardoso, a postura de Sader parte do reconhecimento de que a "compreensão das potencialidades dos movimentos sociais exige que nos voltemos para seus processos de constituição" (SADER, 1988, p. 21), nos quais o catolicismo de base teve papel central. Sua análise não é senão pautada pela ênfase na potência, mesmo ali onde as declarações nativas de igualitarismo não coincidem efetivamente com as práticas. "A recusa dos militantes das CEBs em reconhecer diferenças de níveis [hierárquicos] entre seus membros (...) não deve ser vista como pura ideologia (...). A motivação constantemente referida das CEBs é a da participação ativa e consciente de cada um, e esse objetivo pesa na avaliação de cada atividade tanto ou mais que seu êxito específico" (idem, p. 157). Nessa chave crítica, que é herdeira de Gramsci antes que dos frankfurtianos, as dinâmicas e alcances das CEBs são reenquadradas. "Por mais insignificantes que possa parecer a iniciativa local", diz Sader (p. 160), "o fundamental terá sido a experiência da possibilidade de intervir coletivamente sobre a realidade dada". Como se nota, ser capaz de negar a empiria e de reconhecer a potência da experiência, seja nas CEBs ou em outras realidades, depende de uma vontade intelectual e crítica: "[no] lugar do pedido de um favor aparecem as reclamações de um direito. Esses valores foram produto da própria vida dessas comunidades" (idem, p. 162).

Essas passagens sobre as CEBs bastam para notar a estrutura antitética que por longo tempo dominou o debate sobre o papel dos movimentos sociais na construção democrática brasileira. De um lado, deu-se ênfase às limitações internas e às idealizações externas aos movimentos. De outro, foi enfatizado criticamente o potencial inscrito nas ações e mobilizações dos novos personagens que então entravam em cena. Naqueles embates, espontaneísmo, autonomismo e basismo eram armas utilizadas dentro de um campo político-intelectual ainda não plenamente autonomizado e dirigidas tanto a autores quanto a atores (político-partidários) que queriam ver nos movimentos sociais uma força política, em duplo sentido, institucional e extrainstitucional. Em meio a esse jogo de ataques e contra-ataques, Chico de Oliveira, ele próprio, revidou: "Uma certa Sociologia [...] e uma Ciência Política bastante formalizada não conseguia[m] captar [o processo de democratização], [...], ambas olhavam com desprezo os movimentos sociais e viam neles o basismo. (...). A Sociologia e a Ciência Política olhavam para os movimentos sociais como uma coisa persistente, chata (...) e denunciada muitas vezes como um movimento da antipolítica" (OLIVEIRA, 1994, p. 11). Àquela altura, porém, essa posição de crítica não tinha sido ainda totalizada pelo desmanche e era politicamente útil à compreensão das fontes reais e potenciais de emancipação.

 

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