revista fevereiro - "política, teoria, cultura"

   POLÍTICATEORIACULTURA                                                                                                    ISSN 2236-2037



 

Ruy FAUSTO

Crônica das eleições francesas de 2017

 


A eleição de Emanuel Macron para a presidência da França, e a vitória estrondosa do seu partido nas eleições legislativas, é um fato novo na política francesa e provavelmente também na política mundial. O evento exigeuma análise muito cuidadosa bem como certa independência em relação aos quadros explicativos tradicionais.  É pelo menos a impressão de quem intui uma insuficiência do próprio discurso para dar conta dessa sequência um pouco insólita de acontecimentos.
No início das eleições, o jogo parecia mais ou menos decidido, pelo menos nas suas grandes linhas. Há dois anos, conversando com alunos num seminário na USP, afirmei de modo taxativo: “o Front National estará certamente no segundo turno da eleição presidencial e a esquerda ficará fora”. Os alunos sorriram diante de tanta presciência. Mas eu repetia o que todos sabiam e a previsão se confirmou.Faltavam apenas os detalhes...
No começo imediato, novas certezas. As pesquisas continuavam confirmando a passagem do Front National para o segundo turno. A novidade foi o resultado das prévias da direita. Alain Jupé, o grande favorito, foi eliminado; Nicolas Sarkozy, o seu challenger, também eliminado. Vitória do antigo primeiro ministro François Fillon, que começara em terceiro ou quarto lugar.
Na esquerda – já que não tínhamos ilusões com as possibilidades dos nossos eventuais candidatos –, no interior das prévias da direita, preferíamos Jupé, o mais razoável dos candidatos da direita. Republicano não racista nem populista. Preocupava-nos principalmente a candidatura de Sarkozy, que tentava uma reentrée tonitruante. O ex-presidente revelara não só tudo que havia de demagógico e oportunista emsua postura política, mas também uma disposição a se aliar senão à extrema-direita, pelo menos à direita-extrema do seu partido. Era o que ocorrera no final de sua campanha fracassada contra François Hollande.
Víamos o perigo que representava Sarkozy, mas não pensamos em Fillon. De resto, ele não parecia ter maiores possibilidades. Mas num forcing impressionante, de debate em debate,  foi deixando para trás os outros candidatos, e ganhou folgado na reta final. Da noite para o dia, tornou-se o grande herói da direita francesa. O homem que, ao contrário de Sarkozy e de Jupé,  não tinha, nem no passado nem para o futuro, qualquer  problema com a justiça (Sarkozy estava ameaçado de não sei quantos processos, e Jupé pagara por Chirac num affaire de falsos empregos na mairie de Paris). Católico, de esposa britânica, cabelo riscado ao meio, nem muito velho, nem muito jovem, Fillon passara a ser a encarnação ideal de um candidato para a direita francesa. Se tudo andasse nos eixos, ele ganharia a eleição? Difícil prever, no entantotinha grandes probabilidades de vitória.
Mas entrou areia na engrenagem. O semanário satírico independente Le Canard Enchaîné, famoso por suas enquetes e investigações, descobriu uma série de fatos desagradáveis envolvendo o novo heroi da direita. Fillon empregara a mulher e os filhos como assessores parlamentares, o que, pela legislação francesa, é legal, só que, além dos salários serem altos... não havia prova de que a mulher dele tivesse realmente trabalhado. Além disso, ela recebera 100 mil euros de um milionário amigo do casal que se tornara diretor da velha Revue des Deux Mondes, como pagamento... de duas resenhas. Isso pode ser configurado como crime pela lei francesa. Somaram-se outras histórias mais ou menos folclóricas, além das reações contraditórias e desastrosas do candidato em defesa da sua inocência. Resultado: num curto espaço de tempo, Fillon perdeu dez pontos nas sondagens. Os dirigentes do seu partido (Les Démocrates, o nome de rebatismo da antiga UMP) hesitaram bastante: substituiriam ou não o candidato? Não houve unanimidade mas, principalmente, não conseguiam chegar a um acordo sobre quem o substituiria (os jupeístas tentaram relançar o seu “campeão”, que fora o segundo colocado nas prévias; Sarkozy queria outro nome, o seu protegido Baroin...). A eleição “imperdível” se transformou num alçapão.
O candidato natural da esquerda seria o presidente François Hollande. Mas ele batia recordes de impopularidade. Na realidade, sua gestão foi muito apagada, para não dizer mais. Prometeu rever os rumos da política europeia. Não deu nenhum passo nesse sentido. Prometeu começar a transição energética, desmontando pelo menos uma velha central nuclear. Nem isso fez. Sua política econômica de oferta não deu resultado, pelo menos enquanto durou o seu mandato. Depois de muito hesitar, anunciou uma declaração. Fez muito suspense, e no final disse que não seria candidato à reeleição. Coisa muito anômala, mas que lhe pareceu inevitável. Uma prévia da esquerda já havia sido convocada, prévia mais ou menos fictícia, da qual participaria Hollande, e que visava reforçar a candidatura dele. Com Hollande fora do páreo, a“primaire” mudou de figura. Apresentaram-se vários candidatos, (alguns do PS, outros de pequenos partidos aliados) entre os quais o ex-primeiro ministro Valls, típico social-liberal, e Benoît Hamon, um representante do grupo mais à esquerda do PS, o qual se recusara aliás a apoiar um voto de confiança em favor de Hollande, entretanto presidente eleito pelo seu partido.De modo bastante surpreendente, Benoît Hamon, em cujo programa figurava um projeto de alocação monetária universal, saiu vitorioso. Não participaram da prévia nem Jacques Mélenchon, candidato que rompera com o PS e organizara o seu próprio partido, o Parti de Gauche (na origem, aliado do PC) e, depois, o movimento France Insoumise, nem Emmanuel Macron, que fora Ministro da Economia de Hollande (depois de ser secretário geral adjunto da presidência), e que veioa fundar um novo partido ou movimento, o En Marche (posteriormente La République en Marche).
A extrema-direita tinha desde há bastante tempo a sua candidata, Marine Le Pen, dirigente do  Front National, que se empenhava em “desdiabolizar”o seu partido, tomando distância em relação ao radicalismo neofascista do pai, Jean-Marie Le Pen. A linha econômica da filha é de resto diferente da do pai. Este professava um liberalismo econômico bastante marcado. A filha se apresenta como defensora das camadas mais pobres, e combina um racismo anti-imigrantes (árabes, especialmente) – nisso pai e filha não se separam – com propostas do tipo aposentadoria aos 60anos, garantia do emprego e outras. Infelizmente, ela tinha sucesso: o Front Nacional era (e talvez ainda seja) o partido que tinha mais votos entre os operários e empregados não-abstencionistas.
Esse foi o quadro geral da política francesa às vésperas das eleições de maio/junho. Uma extrema-direita que tinha a certeza de chegar ao segundo turno. Uma direita que estivera também quase certa disto, mas que desabara com a desgraça do seu candidato. Um partido socialista que escolhera um candidato da sua ala esquerda. Mas desde logo ficou claroque boa parte do partido não apoiaria efetivamente a candidatura de Benoît Hamon. Finalmente, os dois átomos livres, originários do PS.De um lado, Jacques Mélenchon, bom orador e debatedor, com um considerável carisma pessoal, mas carregando consigo algumas taras hereditárias de certa esquerda: simpatias por Chávez e pelo bolivarismo, admiração pelos irmãos Castro, simpatia pela direção chinesa e assim por diante. De outro, Macron, ex-ministro de Hollande, que pretendia ter passado da esquerda para o centro.
Macron e o seu movimento foram crescendo de maneira surpreendente. No início, poucos acreditavam no seu sucesso (ele tinha posturas meio ridículas na campanha e cometera certo número de gafes), mas pouco a pouco foi se impondo. À medida que Fillon despencava, Macron ia subindo nas pesquisas e aparecia como o candidato favorito. A candidata do Front Nacional mantinha sempre um mesmo nível de preferência do eleitorado – um nível alto –,  enquanto Mélenchon, que, no início, vinha atrás de Hamon, logo o superou. De tal forma que, afinal, e um pouco surpreendentemente, a expectativa era de vitória de Macron, havendo uma grande incerteza quanto ao segundo colocado. Le Pen, Fillon (apesar da queda) e Mélenchon estavam estatisticamente empatados. Nos últimos metros, Macron perdeu algum terreno e a previsão de que ele seria o primeiro deixou de ser muito segura. Porém, Macron obtivera o apoio de François Bayrou, encarnação do centro, político que já fora ministro, e cujo partido o Modem sempre tivera uma votação relativamente modesta. Bayrou é um intelectual, professor “agregé” de letras clássicas, mas também criador de cavalos no sul da França. Representa uma espécie de centro rural, que retoma a tradição do centrismo na política francesa.
Macron ganhou no primeiro turno com alguma folga, mais de 24% dos votos (mais de 8 milhões e meio de sufrágios); Le Pen obtém pouco menos de 7 milhões e 700mil votos (mais de 21% dos votantes), Fillon teve pouco mais de 7 milhões e 200(pouco mais de 20%), Mélenchon  7 milhões e “poeira“ (quase 20%), Hamon quase 2 milhões e 300(6,3 %), Nicolas Dupont-Aignant, direita “soberanista” (anti-Europa), 4,7%, quase 1 milhão e 700mil votos. Houve ainda algumas candidaturas de extrema-esquerda e também algumas de direita, que tiveram pequena votação.
Mélenchon não foi para o segundo por uma diferença de aproximadamente 800 mil votos. Fillon por menos que isto. Hamon ficou fora da jogada. Classificaram-se para o segundo turno Macron e Le Pen.
Ficamos aliviados com a derrota do FN, e também com a de Fillon, mas não propriamente contentes com a vitória de Macron. Hamon e Fillon fizeram um apelo em favor do voto Macron no segundo turno, para derrotar a extrema direita. Mélenchon se recusou a fazer o mesmo, embora tomasse posição pública contra o Front National (“não se deve votar no FN” – ou coisa parecida –,mas sem dar apoio a Macron). Propôs então um plebiscito entre os seus partidários para decidir a posição a tomar: alguns dias depois, teve-se o resultado. O partido de esquerda confirmou a seguinteposição: condenação do Front National, mas recusa em pedir voto para Macron. O que significava: quem quiser que vote em branco, anule o voto ou se abstenha. Pode-se dizer que a posição de Mélenchon repercutiu mal. Naquela mesma semana, entre os dois turnos, o candidato “soberanista” (anti-Europa) Nicolas Dupont-Aignant fez um acordo com o Front National e apoiou Le Pen para a disputa do segundo turno.
O grande acontecimento da quinzena separando os dois turnos da eleição presidencial foi o debate Macron/Le Pen. Havia grande expectativa em torno disso. Uma atuação muito medíocre ou desastrosa de Macron poderia significar a vitória de Le Pen. Aconteceu o contrário. Um psicólogo italiano – não sei se mais ou menos charlatão –, que privava com o Front National, teria aconselhado a tática de desestabilização do candidato de Em Marcha. Segundo o psicólogo, Macron seria um psicopata narcisista, que desmoronaria facilmente diante de uma atitude provocativa por parte da sua adversária. A teoria é evidentemente mítica, embora seja verdade que, no debate coletivo, Macron revelara certa fragilidade com as suas fórmulas meio ocas no registro do “nem esquerda nem direita”. Le Pen se aproveitara disso, dando algumas estocadas eficazes que punham  a nu a falta de conteúdo de algumas das intervenções do adversário. Talvez com base nisso, a candidata do Front National se lançou de corpo inteiro numa tentativa de desestabilização do candidato de Em Marcha. Mas atentativa fracassou e acabou funcionando como um bumerangue. Decidiu o destino dacandidata de extrema-direita. Le Pen denunciou sucessivamente, e de maneira peremptória, o seu adversário como agente da alta finança, evitando qualquer tipo de justificação mais precisa; e tentou ironizar inclusive imitando o candidato de Em Marcha, mas de modo tão infeliz que algumas vezes o público nem percebeu do que se tratava. Chegou até mesmo a fazer uma referência indireta, de muito mau gosto, à antiga história de amor entre Macron e a  professora que viria a ser sua mulher. E, pior do que tudo, embrulhou-se no debate, quando se discutiu a situação de duas firmas em crise, nas quais o governo interveio tentando impedir seu fechamento e a consequente despedida dos trabalhadores. No final, ainda insinuou, sem nem um início de prova, que Macron talvez tivesse despósito ilegal no exterior. Essa última jogada fora decidida no quadro de uma acusação caluniosa, que se desencadeou mais ou menos ao mesmo tempo, através das redes sociais. Enfim, deu um show de má-fé, violência, baixo nível e incompetência.
Le Pen perdeu vários pontos depois do debate, que, de resto, deu origem a uma crise interna no Front National. Florian Philipot,o dirigente, até então muito chegado a Marine Le Pen, que parece ter sido o principal responsável pela estratégia adotada ­– dirigente que representa a ala nacionalista-populista do Front National – ficou em posição difícil, no quadro de uma crise internaque ainda não terminou. Mais recentemente, Le Pen parece se distanciar de Philipot, que fundou um movimento dentro do FN, o que é uma jogada temerária, dada a natureza desse partido.
Contando com o apoio de dois ex-adversários, e uma atitude pelo menos de recusa do Front National (ainda que sem apoio explicito), Macron se saiu bastante bem no debate, mantendo a calma, desmascarando a incompetência da adversária, e desenvolvendo bem os seus argumentos (frequentemente bastante técnicos), mesmo lá onde as suas posições aparecem como frágeis à luz de uma crítica de esquerda. Macronfoi eleito com folga no voto do segundo turno. Ele acabou obtendo pouco mais de 66% dos votos, mais de 20.700.000, contra pouco menos de 34%, 10.638.000 votos, em favor de Marine Le Pen.O Front National teve um resultado decepcionante para as suas expectativas, embora tenha tido uma votação bastante alta em termos absolutos, não longe dos 11 milhões de votos, a mais alta da sua história. As eleições legislativas confirmaram a vitória do macronismo. No segundo turno houve uma ligeira correção, mas o partido de Macron obtém a maioria absoluta, mesmo sem os votos do seu aliado, o Modem de François Bayrou: o La République en Marche, de Macron, ganha 308 deputados – maioria absoluta, num total de 577 deputados – o que com os 42 do MoDem, seu aliados, forma uma maioria pró-governo de 350 deputados; o Les Républicains, principal partido da direita obtém 112 deputados, que, com mais 7, “diversos direita”, dá 119; o centro-direita, muitas vezes aliados deles, tem 18 deputados. O Partido Socialista com seus aliados (radicais de esquerda, mais “diversos de esquerda”) ficou com 45; o PC com 10, o Front National com 8. Esses dois últimos partidos não podem formar grupo parlamentar, o que é uma grande desvantagem. Não é o caso do movimento de Mélenchon, que passa a barra legal dos quinze deputados, elegendo 17. Dado importante, a abstenção foi muito grande, mais de 56% no segundo turno (a abstenção na eleição presidencial foi, para os dois turnos, respectivamente de 22,23 e de 26%).

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O que representa Macron? Que perspectivas pode ter hoje a esquerda?

Quaisquer que sejam as explicações, é indiscutível que assistimos a um terremoto no interior da política francesa. Um PS reduzido a um pequeno partido, uma direita ferida embora não decomposta, uma extrema-direita que obteve quase 11 milhões de votos, mas passa por uma crise interna, uma nova extrema-esquerda menos étoile montante do que supôs o seu líder, mas que, de qualquer modo, tem muito voto e supera o PS, e not least, um movimento fundado há pouco mais de um ano, que se pretende nem de direita nem de esquerda, e que ganha em todos os tabuleiros, assegurandi uma maioria esmagadora na Assembleia Nacional, depois de eleger o presidente (que, por sua vez, nomeou um primeiro-ministro de sua inteira confiança). Houve alívio, repito, com a derrota de Le Pen. Sua vitória seria uma catástrofe; e também com a derrota e desmoralização de Fillon. Este se transformara numa espécie de segundo candidato da extrema-direita: a variante pro-europeia, arquiliberal e estritamente católica; o Front Nacional é antieuropeu, tem um verniz estatizante, e combina fanáticos católicos,com ateus e até neonazistas “arianos”.
Macron é certamente uma figura atípica, assim como o seu primeiro-ministro Édouard Philippe. O presidente eleito foi uma espécie de discípulo do filósofo Paul Ricoeur, escrevia na revista de centro (ou centro-esquerda) Esprit, e pertencia em princípio à família da esquerda, tendo sido membro do gabinete de Hollande e depois seu ministro das finanças.Por outro lado, foi meio discípulo de Rocard, e reivindica a figura de MendèsFrance, que encarnava um centro-esquerda. Sem falar na sua história familiar, simpaticamente atípica.  Pelo que conta o ex-ministro da economia grega Vaoufakis, Macron teria feito esforços para dar uma saída para a crise grega que não sacrificasse o país, tendo visto os seus esforços frustrados, pela ação em contrário de Hollande e de Merkel. Phillippe, com sua barba de estudante radical, era um prefeito de Havre muito preocupado com as iniciativas culturais. Além do que, aceitara colaborar para o jornal de esquerdaLibération, onde escrevia uma coluna “ponto de vista da direita”... Ele é, na realidade, um representante bastante típico da direita mais “republicana”, cuja figura principal é Alain Jupé. Em compensação, foi quadro da empresa Areva, uma das duas firmas que compõe o setor nuclear francês.
Macron, como se sabe, trabalhou algum tempo com o banqueiro Rotschild, o que lhe foi cobrado bastante, principalmente pela extrema-direita. O movimento En Marche, rebatizado La République en Marche foi fundado no primeiro semestre (6 de abril) de 2016, e em pouco mais de um ano conseguiu desorganizar, senão fazer explodir, os três principais partidos franceses.
Diante dessa verdadeira bomba política, os recursos explicativos se revelam um pouco insuficientes. Digamos que a apreciação da esquerda oscilou entre um juízo relativamente otimista e um pessimista. No período mais recente, é o pessimista que vai se impondo.
A primeira das duas visões ressalta a derrota das extremas-direitas, e o que o movimento de Macron pode ter de positivo: nenhum preconceito contra os imigrantesou impulso racista, uma abertura para as questões “de sociedade”, uma recusa do liberalismo extremo do tipo do de François Fillon. E, entretanto, é a segunda possibilidade que se cristalizou.
O primeiro governo constituído por Macron misturava gente que vinha da direita com um pessoal originário da esquerda, mais os centristas de Bayrou. Porém Bayrou foi obrigado a renunciar, por causa de um problema de abuso do seu partido na utilização do trabalho dos assessores aos seus deputados europeus (supõe-se que os assessores trabalhavam simplesmente para o MoDem, e não como auxiliares de deputados europeus). Entrou também no governo o socialista de direita Collomb, o mais velho da equipe, prefeito de Lyon. Também o ex-ministro do interior Le Drian. Porém a economia fica nas mãos de gente originária da direita: o ex-candidato a candidato da direita, Le Maire, que se tornou ministro da economia, mais outro direitista, o ex (?) sarkozista, Gérald Darmanin, no “budget”. A surpresa foi a escolha do ecologista midiático Nicolas Hulot, figura de bastante prestígio, e que recusara sucessivas ofertas de direita e de esquerda, para fazer parte do governo. Hulot é a grande “presa” de Macron, e deveria assegurar o seu compromisso com a causa ecológica, bastante popular em diversos meios.
O governo Macron vai se revelando com a reforma das leis do trabalho. O projeto do governo (ele já obteve da Assembleia o direito de legislar por decretos, no que se refere a essas leis) vão claramente no sentido do que quer a central patronal, MEDEF. Teto para as indenizações patronais, no caso de desligamento sem justificação, privilégio para os acordos no nível da firma em relação aos acordos de setor, flexibilização e ampliação da latitude deste, neutralizando as disposições legais etc. Só em alguns pontos o projeto parece ser favorável aos trabalhadores: prevê-se a possibilidade que os patrões cubram o gasto da inscrição em sindicato. E a indenização por despedida legal (a distinguir das indenizações por despedida não justificada) aumentam. Esse quadro é essencial como dado básico para levantar pelo menos algumas hipóteses sobre a natureza do “macronismo”.
Até aqui, a imprensa de esquerda, além de se debruçar sobre essa reforma das leis do trabalho, tem se preocupado (e nisto, a esquerda e a direita não macronista convergem), com o estilo “vertical” de poder que encarna o novo governo. Seus candidatos a deputados tiveram de assinar um compromisso de que acompanhariam o governo no seu voto, e tanto o presidente como o primeiro-ministro insistiram no tema da disciplina e da fidelidade.O governo ensaiou mesmo um processo contra Libération por ter divulgado um documento governamental “perdido”,  com propostas básicas para a reforma da lei do trabalho. Sob esse aspecto, o governo Macron aparece com um perfil neobonapartista, que evidentemente se agrava (na aparência, senão na substância), com a vitória eleitoral estrondosa que obteve Pela República Em Marcha, nas eleições legislativas.
A hipótese pessimista, que hoje é, sem dúvida, bem mais do que uma hipótese, interpreta a “revolução macronista”, a partir do célebre dito de Lampeduza, “mudar tudo para deixar tudo como está”. Claro que a fórmula simplifica um pouco as coisas, mas há indícios de que caminhamos para um governo que, no plano da economia, pelo menos – mas há alguma coisa de conservador também fora desse registro: no campo da educação, por exemplo –vai nessa direção.
Até aqui, os interesses dominantes tratavam de impor as suas exigências, através de partidos de direita. Seus representantes podiam ser mais ou menos jovens, mas dominavam os de mais de 50. A representação feminina fora sempre quantitativamente insuficiente.Em matéria de honestidade, não se pode dizer que eles tenham sido sempre irreprocháveis. Finalmente, se a competência das administrações de direita era variável, não faltavam casos de responsáveis que revelavam uma competência de nível muito inferior à que se poderia exigir.
O La République en Marche se apresenta como um movimento que quer alterar isso tudo. Em vez dos homens de 50ou 60anos, ponhamos jovens até os 50(a começar pelo presidente, que não tem 40). Estabeleçamos a paridade homens/mulheres, pelo menos no número global de ministros e secretários de Estado (os cargos “régios” continuaram a ser ocupados quase exclusivamente pelos homens). Sejamos intransigentes em matéria de lisura e honestidade administrativas (pelo menos na aparência: Macron já teve de enfrentar um problema com o secretário geral do seu partido e futuro deputado, acusado de desmandos em favor da sua mulher na administração de uma “mutuelle” [cooperativa], na Bretanha; o governo contornou o problema, aparentemente sem nenhum desgaste!). Vamos reunir os “melhores e os mais brilhantes” (de fato, parece haver gente de muita experiência e capacidade técnica entre os conselheiros do presidente). Finalmente, substituamos os partidos de direita por um partido do centro, isto é, um partidoque se diz nem de direita nem de esquerda, ou, melhor ainda, de direita e de esquerda. Isso posto, façamos mais ou menos a política de sempre.Exemplo, a já mencionada reforma das leis do trabalho.
Em resumo, em vez da direita velha, machista, desonesta e incompetente, ponhamos em campo um centro jovem, sem preconceito, inatacável em termos de honestidade administrativa, e de alta competência. Como já indiquei, tudo isso é pelo menos em parte, só aparência, já que, pelo menos no plano da economia, o que faz o novo governo não é diferente da política tradicional. Os interesses de classe são mascarados pela ilusão da juventude, da ausência de preconceito, da honestidade e da competência.  O macronismo aparece, sob esse aspecto, como uma formidável operação de mistificação das oposições de interesse e de classe. Ele o é, em boa parte, o que não significa que essa aparência não tenha nenhuma consistência em si mesma (a paridade homem/mulher, por exemplo, limitada ou não ao conjunto dos cargos, não deixa de ser uma realidade). A observar em geral que o macronismo não mexeu, que eu saiba, na seguridade social, e que não representa de forma alguma um neoliberalismo extremo (aliás, os neoliberalis radicais estão descontentes).Trata-se de um governo de centro direita, com características próprias e relativamente originais.
O governo Macron representa certamente uma renovação de quadros. Uma tecnocracia mais jovem toma o lugar dos tecnocratas tradicionais. Essa mudança já se anunciava com a candidatura de Dominique Strauss-Kahn, e não é à toa que vamos encontrar um número importante de “strausskahnianos” na equipe de Macron. Strauss-Kahn, que tinha boas possibilidades de vitória, e cuja candidatura se frustrou pelas razões conhecidas, era um pouco um Macron “avant la lettre. Por outro lado, o novo governo põe no poder uma antiga tendência da política francesa, a qual, até aqui, estava fadada a um constante fracasso ou semifracasso: o centro, isto é, o antigo e sempre presente projeto de uma política que se pretendesse nem de direita nem de esquerda. É uma velha história, a de uma tendência que pareciacada vez ascendente, mas terminava sempre num impasse, e que agora teria encontrado o seu caminho, seja no perfil geral do projeto de Macron, seja no fato político que representou a sua aliança com o Modem de François Bayrou. O centrismo fora representado por figuras como a de Jean Lecanuet, mas Giscad D‘Estaing também tivera pretensões a centrista. Está em discussão o problema das relações  que existem entre o macronismo  e esse centro (centro-direita) histórico. O que poderia dizer é que o apelo ao centro (e à juventude etc), aparece como uma necessidade para os interesses dominantes, no sentido de que o desgaste dos partidos tradicionais é uma evidência. Desgaste político, moral, técnico talvez. Ninguém acredita mais nas equipes e na ideologia tradicional. Não há como continuar governando sem um novo discurso, e sem uma nova equipe (e equipe de gente “nova”, não por acaso).  Os interesses dominantes têm de se modernizar de tempos em tempos, as suas equipes e a sua ideologia, um pouco como as marcas industriais têm que ser substituídas, mesmo se o produto não muda muito.
É sintomático que a nova liderança fale em nome do progresso. Para ela, o mundo estaria dividido entre progressistas e conservadores. Já me referi aos antecedentes “centristas” do macronismo. Tomando uma duração maior, o projeto político de Macron e mesmo a sua filosofia, tem alguma a ver com o Saint-Simonismo, precisamente um “progressismo” que se pretende modernizador e pluriclassista (Macron só exclui os “conservadores”). O ministro Collomb se declara saintsimoniano e não socialista, e remete às tradições “progressistas” da cidade que governou, Lyon. De fato, o macronismo lembra essa filosofia de tecnocratas esclarecidos. Mas o progressismo tem o seu preço. Vivemos numa época em que o “progresso”, por boas razões, não tem boa fama. Macron e Philippe são favoráveis a que progresso? Há um dado importante a esse respeito: Philippe foi quadro da Areva, é amigo da tecnocracia “nuclear”, e põe suas fichas na exploração desse tipo de energia. Como deputado, foi até votar contra a lei de conversão energética. A entrada de Hulot no governo teria mudado a situação?  Hulot promete uma série de medidas destinadas a reduzir as emissões de CO2 e de metano (retirada de automóveis que consomem muito combustível, melhoria do isolamento dos edifícios, aumento do preço do carvão, proibição da exploração do gás de xisto, fechamento de centrais a carvão, nenhuma nova autorização para explorar hidrocarbonetos etc.). No que se refere ao nuclear (que nunca foi o forte da crítica de Hulot), ele se dispõe a por em prática a lei votada por Hollande, que projeta reduzir o peso do nuclear de 75 a 50%, até 2025. Tudo isso é um progresso em relação a Hollande, mas subsistem muitos furos (por exemplo, apenas as autorizações futuras para a exploração de hidrocarbonetos, são vedadas, em forma geral) e não se sabe o quanto disso tudo será cumprido. De resto, em muitos casos só uma solução radical como as propostas pelos dois candidatos socialistas poderia inverter realmente o processo. Por exemplo, Hulot se compromete a introduzir um máximo de segurança no futuro depósito de lixo atômico de Bure. Muito bem. Entretanto, com mais ou menos segurança, nos termos do seu projeto, o depósito continuará lá...
Assim, liberalismo em matéria econômica, progressismo insuficientemente crítico e  neobonapartismo suigenerissurgem como  os pecados dos novos governantes. Diante do fenômeno, a esquerda está num impasse. Hamon pagou o preço de ser, ao mesmo tempo, o candidato do PS,e o candidato rejeitado por boa parte dos dirigentes do PS. Mélenchonse embriagou com as sondagens e deu provas de certo sectarismo. Bem entendido, um e outro têm méritos. Os dois tinham um sério projeto ecológico, ambos se serviram de conselheiros econômicos de esquerda respeitáveis (Piketty, para Hamon, Jacques Généreux para Mélenchon). Infelizmente, os dois correram separados e o resultado foi o que conhecemos. Não tão ruim, dadas as circunstâncias, para o caso de Mélenchon, mas, das presidenciais às legislativas ele perdeu terreno. Na realidade, a esquerda não tem nem terá qualquer possibilidade de êxito, se não seguir o caminho da frente comum. Caso contrário, voltaremos a viver a situação antiga: um partido mais radical, para o melhor como para o pior, e mais forte; um outro, mais moderado, também para o melhor como para o pior, que tenta enfrentar o desafio. O mais forte é incapaz de propor um trabalho conjunto, e está essencialmente preocupado em tirar o mais fraco, do caminho. Este se esvai em ambiguidades (pro PS, contra o PS), e, talvez por má consciência, hesita em fazer a crítica da outra vertente (se bem feita, essa crítica não enfraqueceria a esquerda, pelo contrário). Mas Mélenchon faz atualmente um trabalho ao mesmo tempo dentro e fora do parlamento, que parece eficaz. Quanto ao movimento sindical, creio que o seu destino será enfrentar o novo governo.
Assim, a esquerda se vê numa situação difícil, vive uma espécie de vazio, que exige uma recomposição. Nesse sentido, a situação não é tão ruim assim: todo mundo sabe que é preciso encontrar uma saída e vai dando alguns passos nessa direção. O jogo de apoios e rejeições que marcou o processo eleitoral das legislativas mostra pelo menos um certo número de convergências que talvez tenham futuro (France Insoumise, a legenda de Mélenchon apoiou alguns candidatos socialistas não macronistas, Hamon, por sua vez, apoiou o candidato de Mélenchon contra o social-liberal Manuel Valls.) Deve haver alguma pressão das bases – certamente ela existe fora dos partidos – visando impor, ou pelo facilitar, uma frente única de esquerda, com base ecológica, anticapitalista e democrática. Ou a esquerda envereda por aí, ou – se ficar fazendo o jogo de aparelhos como o do PS, ou então se deslumbrar com “novos” líderes carismáticos – estará perdida e morta, como aliás pretende tanto a velha direita como a nova, macronista. O desgaste provável, talvez a curto prazo, que atingirá o governo Macron deve facilitar essa reorganização. Resta saber se a esquerda socialista, de um lado, e Mélenchon (ou o seu movimento) saberão dar os passos necessário para efetuar uma verdadeira virada política. Não esqueçamos também, para completar o quadro da situação, que o Front National continua ameaçando, principalmente se a questão do desemprego continuar sem solução.
A direita se sai melhor do que a esquerda, mas com um grupo dividido, entre uma ala mais centristas pró-Macron e uma ala de direita radical. Os fatores contra Macron são a grande abstenção, e o fato de que as sondagens mostram que o país está dividido pela metade, em relação ao seu projeto de reforma das leis do trabalho.
Sob esse aspecto, um embate no Congresso – mas sem derrota possível do governo, em termos de votos – e também fora dele, já se anuncia.
17/6/2017

 

 


    
    

 








fevereiro #

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ilustração: Rafael MORALEZ